Maria Joaquina da Silva, a Dona Fiota (1928-2012). Guardiã e transmissora da remanescente tradição oral na cidade de Bom Despacho, em Minas Gerais -  (crédito: Arquivo pessoal/Reprodução)

Maria Joaquina da Silva, a Dona Fiota (1928-2012). Guardiã e transmissora da remanescente tradição oral na cidade de Bom Despacho, em Minas Gerais

crédito: Arquivo pessoal/Reprodução

Uma questão da prova de linguagens do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) pôs em foco uma língua falada em Bom Despacho, cidade no Centro-Oeste de Minas Gerais, que virou patrimônio imaterial do município no fim do ano passado. A questão girou em torno da consolidação de identidade linguística por meio da Língua da Tabatinga, herança afro-brasileira ainda cultuada por um pequeno grupo de falantes na região mineira. 

 

Tanto para estudiosos do tema quanto para a secretária de Cultura de Bom Despacho, Rosimaire dos Santos, o exame nacional pôs à mesa aspectos de pertencimento e ancestralidade que permeiam a presença da língua na cidade e sua relação com a memória e a cultura africana nacional.

 

Questão sobre a Língua da Tabatinga no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) deste ano

Questão sobre a Língua da Tabatinga no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) deste ano

Reprodução/Inep

 

 

Autora do livro “Pé preto no barro branco: a língua dos negros da Tabatinga”, Sônia Queiroz conta que esse modo de falar surge no Brasil Colônia (1530-1822) como resultado da mescla de várias línguas trazidas pelos escravizados nos navios negreiros, misturados intencionalmente. “Entendo que a população de Bom Despacho, ao longo do século 20, foi se identificando com a Língua da Tabatinga, assumindo-a como patrimônio do município”, diz.

 

Pesquisadora sobre racismo linguístico do Departamento de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Thainá Rocha da Silva explica que essa e várias outras línguas usadas por escravizados surgem dentro de um contexto de privação. “Eram pessoas de diferentes lugares da África trancafiadas nos mesmos espaços em uma estratégia de represália, ou seja, eram diferentes línguas juntas como forma de privar a comunicação entre si e evitar o embate contra o sistema colonial”, explica.

 

 

A “Língua do Negro da Tabatinga” também era conhecida como "a Língua dos Negros da Costa". Isso porque todos os escravizados eram trazidos ao Brasil a partir da costa africana, mesmo aqueles capturados no interior. Tanto Sônia quanto Thainá sublinham a ideia de que é como se não pudesse haver povos negros diversos, apenas o africano escravizado, sem distinção de suas origens. “Todos os escravizados eram ‘armazenados’ no litoral africano até o momento da embarcação com destino ao continente americano”, explica a escritora. Para ela, a permanência da língua na cidade é uma memória viva do nosso passado.

 

A pesquisadora da UFMG ressalta que a referência à Língua da Tabatinga no Enem e outros vestibulares reforça a luta anticolonialista no quesito linguagem. Para ela, esse reconhecimento da língua atribui relevância cultural a ela, além de enriquecer e aprofundar o debate, principalmente por meio do recorte racial. Ela destaca, ainda, o “apagamento” como um dos desdobramentos do racismo linguístico. “São heranças invisibilizadas, que surgem nesse corpo de resistência”, avalia. “Fiquei muito feliz quando vi essa representatividade e protagonismo negro no exame, para além da redação, também sobre a herança afro-brasileira. O fato de haver Jovens escrevendo e pensando sobre isso lança luz sobre o tema”, comenta Thainá.

 

 

Barbara Freitas, historiadora e servidora do município de Bom Despacho, foi a responsável pelo pedido de registro da língua como patrimônio imaterial da cidade ainda em dezembro de 2023. Ela comenta que a salvaguarda reconhece e valoriza a cultura e o movimento negro no Brasil. Ainda conforme Bárbara Freitas, o número de falantes da Língua da Tabatinga na década de 1980 era em torno de 200 pessoas. “Esse número certamente não é o mesmo, e por isso o esforço de preservação. Pois, por se tratar de um bem imaterial, se perde na história com muito mais facilidade”.

 

De Dona Fiota a Marli

 

Marli Costa, de 63 anos, morou por anos na região de Tabatinga – hoje Bairro Ana Rosa – e é, atualmente, uma das poucas falantes da língua, que aprendeu ainda aos 5 anos, com Dona Fiota. Maria Joaquina da Silva, a Dona Fiota, foi a “matriarca” da língua no século 20. Ela frequentava escolas e ensinava o modo de falar construído pelos escravizados às crianças e o espalhava na região. A língua era também uma forma de comunicação secreta da equipe de trabalhadores rurais que ela chefiava.

 

“Gosto tanto de encontrar com alguém que ainda fala um pouco da língua. Aprendi tudo que sei com a Maria Joaquina. Ela falava: ‘Nossa língua não pode acabar, a gente foi muito humilhado. É a nossa destreza para nos defendermos’. Carrego comigo ainda”, revela Marli. Ela conta que trabalhava com Dona Fiota em “serviços da roça”. “No canavial, os coronéis que tomavam conta da gente eram muito ruins”, lembra. “A nossa língua era nossa forma de defesa”.

 

 

Pedro Henrique Costa, neto de Marli foi um dos mais de 390 mil estudantes de Minas Gerais que fizeram a prova do Enem em 2024. Quando ela soube que a língua foi citada na prova, ficou “feliz e emocionada”. Não é para menos: “Foi criada pelos ancestrais dessa senhora que nos ensinou e é a nossa herança quase extinta perdida por entre nomes de comércio da cidade. Fico triste (por a língua estar desaparecendo), pois não quero que se acabe.” Segundo Marli, o nome do lugar onde a língua prosperou significa argila, que toma forma mole e esbranquiçada. “Era o bairro dos pretos com os pés sobre barro braco”, diz. Nesse ponto, vale mais uma lembrança, que expõe a diversidade cultural brasileira: a palavra tabatinga tem origem indígena.

 

*Estagiária sob supervisão da subeditora Rachel Botelho