Imagine dirigir a 80 quilômetros por hora e de olhos vendados. Embora pareça algo impensável, esse é o efeito causado pelo uso do celular ao volante, segundo um estudo da Associação Brasileira de Medicina de Tráfego (Abramet). O hábito, cada vez mais comum, tem contribuído para o aumento significativo de acidentes de trânsito. Somente entre janeiro e setembro deste ano, Minas Gerais registrou 364 acidentes relacionados ao uso do celular por motoristas, um aumento de quase 30% em comparação ao mesmo período de 2023, quando foram contabilizados 288 casos. Esses números refletem um salto de 309% ao longo de uma década, apontando para a crescente dependência tecnológica e seus impactos no trânsito.
Os principais tipos de acidente ocasionados pelo uso de celular são colisão traseira, atropelamento, batida lateral e até engavetamentos. Belo Horizonte concentra quase metade das ocorrências deste ano, com 158 acidentes, seguido por Contagem (32) e Betim (18). As avenidas Cristiano Machado, Amazonas e Antônio Carlos são as principais vias onde ocorrem colisões causadas por motoristas distraídos pelo celular. As principais infrações, como segurar ou manusear o aparelho, acarretam multas de até R$ 293,47 e perda de até sete pontos na carteira de habilitação, mas não têm sido suficientes para conter o problema. A Organização Mundial da Saúde (OMS) destaca que o uso de smartphones ao volante aumenta o risco de acidentes em 400%.
A situação ainda pode ser mais grave do que os números sugerem. De acordo com Fernando Sette Junior, assessor de educação para o trânsito da Coordenadoria Estadual de Gestão de Trânsito (CET-MG), os registros oficiais são apenas uma parte da realidade. O uso de celular ainda pode estar inserido na estatística de causa presumida, como “falta de atenção”, que concentra mais de 107 mil registros no estado e não indica exatamente o tipo de desatenção. “O uso do celular é um problema sério, mas os dados são difíceis de apurar. Temos quase 110 mil sinistros no trânsito por falta de atenção, muitos dos quais podem estar relacionados ao celular. É muito provável que os 364 acidentes relatados sejam apenas a ponta do iceberg”, comenta. A subnotificação é outro fator relevante, já que muitas ocorrências não chegam às autoridades. “Muitas vezes, os motoristas resolvem entre si e não formalizam o boletim de ocorrência, o que faz com que os números reais sejam ainda maiores.”
REAÇÃO COMPROMETIDA
Dirigir com atenção reduzida é um caminho certeiro para acidentes, e o uso do celular ao volante compromete a capacidade de reação dos motoristas, elevando significativamente esse risco. De acordo com pesquisa da instituição inglesa RAC Foundation, enviar mensagens pelo smartphone pode retardar o tempo de reação em até 35%. A distração provocada pelo celular no trânsito ocorre em três níveis: manual, visual e cognitivo. Alysson Coimbra, especialista em segurança viária e diretor da Associação Mineira de Medicina de Tráfego (Ammetra), alerta: “Quando o motorista manuseia o celular, ele deixa de observar a via por, em média, 4,5 segundos — um tempo perigosamente longo”, alerta.
Esse lapso de atenção afeta diretamente a capacidade do motorista de reagir a obstáculos repentinos, como uma frenagem brusca ou um pedestre atravessando a rua. O celular ainda compromete o uso correto dos retrovisores, o que aumenta a insegurança. “A partir do momento em que o motorista está com o celular na mão, ele deixa de olhar para o trânsito com a concentração necessária. Foca apenas no que está à sua frente, ignorando as laterais e a traseira do veículo”, aponta. Um estudo da Abramet aponta que digitar uma mensagem de texto enquanto se conduz um veículo a 80 km/h equivale a dirigir com os olhos vendados por um percurso de até 100 metros. “A 80 km/h, isso significa que ele percorre o equivalente a um campo de futebol sem olhar para a frente”, destaca o diretor da Ammetra.
Igualmente conectados e distraídos, os pedestres estão se tornando vítimas frequentes de acidentes de trânsito, seja por negligência ao atravessar ruas ou por se deslocarem sem a devida atenção. De acordo com dados do SUS, o número de internações de pedestres por acidentes de trânsito em Minas Gerais cresceu quase 15% em um ano. O salto foi ainda maior em BH: 33,4%, conforme mostrou reportagem publicada anteriormente pelo Estado de Minas. “O uso do celular pelo pedestre durante a travessia é uma das maiores preocupações. Da mesma maneira que o motorista, o pedestre faz essas travessias de maneira insegura, acessando o celular. Muitos atravessam a rua sem desviar os olhos do telefone, e muitos ainda usam fones de ouvido, o que os desconecta do ambiente ao seu redor, tanto visual quanto auditivamente”, ressalta Coimbra.
DEPENDÊNCIA TECNOLÓGICA
A pessoa que faz uma pausa na atenção que deveria estar direcionada ao trânsito, ao retomar a atividade anterior, já está com o foco comprometido. É o que alerta a psicóloga especialista em trânsito Adalgisa Lopes, presidente da Associação de Clínicas de Trânsito do Estado de Minas Gerais (ACTrans-MG). “Uma pessoa que fica 15 minutos olhando para a tela do celular, na próxima atividade que ela fizer vai ter uma baixa de atenção, por conta do excesso de estímulo”, afirma Adalgisa. Profissionais que dependem do celular para trabalhar, como motoristas de aplicativo e entregadores, estão entre os mais vulneráveis, destaca a especialista. “É alarmante o número de acidentes fatais envolvendo jovens motoristas, muitos dos quais utilizam plataformas digitais como principal fonte de renda”, observa.
A mudança de comportamento impulsionada pela internet e pela hiperconectividade gerou um quadro de dependência tecnológica que afeta todas as faixas etárias. Para a presidente da ACTrans-MG, a população se encontra em um estado de “adoecimento mental”, no qual a busca por gratificações instantâneas, como as notificações de redes sociais, está comprometendo a capacidade de atenção. “A ansiedade de querer ver o que está acontecendo no celular, mesmo enquanto dirigimos ou atravessamos a rua, gera uma dependência perigosa. Isso está comprometendo nossa capacidade de prestar atenção nas atividades mais básicas e essenciais, como conduzir um veículo”, diz Adalgisa.
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A urgência de estar sempre conectado também transformou o próprio ato de se deslocar em uma extensão de inúmeras tarefas cotidianas. “O ato de dirigir, que deveria exigir total atenção, muitas vezes é utilizado para comer, acessar informações, finalizar trabalhos ou enviar e-mails. Vivemos em uma sociedade que não se organiza adequadamente para o momento de conduzir um veículo”, afirma o diretor da Ammetra. Ele ressalta ainda o impacto da sobrecarga de informações: “Estamos constantemente bombardeados e, com a ansiedade de resolver tudo o mais rápido possível, acabamos tomando decisões arriscadas ao volante”, analisa.
MUDANÇA DE PARADIGMA
Apesar das penalidades previstas no Código de Trânsito Brasileiro para o uso de celular ao volante, que vão desde multas de até R$ 293,47 e acúmulo de pontos na carteira de habilitação, especialistas acreditam que a abordagem atual é insuficiente para combater o problema. “Não estamos agindo da maneira correta e eficaz para corrigir os fatores que levam a esse descrédito pela vida, pela legislação e que coloca em risco, principalmente a vida de outras pessoas, porque por mais que esse condutor menospreze o risco, ele está colocando outra pessoa inocente em uma situação de extrema vulnerabilidade. Não existe, até agora, nenhuma ação eficaz que corrija essa atitude, que muitas vezes é resultado de problemas psicológicos e culturais mais amplos”, afirma Alysson Coimbra.
A reeducação da sociedade para um uso mais consciente do celular no trânsito é um dos maiores desafios enfrentados pelos órgãos de trânsito. Iniciativas como campanhas educativas e intervenções em escolas e empresas têm sido realizadas ao longo dos anos, mas o impacto ainda é limitado. Em 2024, foram promovidas mais de 40 ações educativas pela CET-MG, mas a resistência cultural à mudança continua sendo um obstáculo significativo. “Muitos acreditam que conseguem manusear o celular e dirigir ao mesmo tempo, sem perceber o quanto isso compromete sua atenção e coloca outras vidas em risco. Tem essa falta de percepção, as pessoas acham que nunca vai acontecer com elas”, reflete Fernando Sette Junior. Como medida imediata, ele recomenda manter uma distância segura do veículo à frente e respeitar o limite de velocidade da via. “Assim, mesmo que o motorista à frente esteja distraído, o condutor terá tempo para reagir. Esse tempo de reação é fundamental”, aconselha.