Leito da Barragem da Pampulha, após o esvaziamento ocasionado pelo rompimento do dique de contenção, transmitia o cenário de 'terra arrasada' no local -  (crédito: Arquivo EM)

Leito da Barragem da Pampulha, após o esvaziamento ocasionado pelo rompimento do dique de contenção, transmitia o cenário de 'terra arrasada' no local

crédito: Arquivo EM

A ruptura da barragem do Parque Lagoa do Nado, na quarta-feira (13/11), trouxe à tona outro fato igualmente assustador na história de Belo Horizonte, que completará 127 anos no próximo dia 12. Há sete décadas ocorria, na mesma região, o “estouro” da represa da Pampulha (inaugurada em 1938 para o abastecimento de água na cidade). A capital registrava o rompimento da estrutura de 20 metros de altura, construída na primeira administração (1935 a 1938) do prefeito Otacílio Negrão de Lima (1897-1960).

 

 

Antes do acidente histórico, passageiros que sobrevoavam a lagoa, chegando ou partindo do aeroporto, podiam ler as palavras Pampulha e Belo Horizonte gravadas em letras gigantes na estrutura de cimento, alvenaria e terra — a fenda, conforme mostram as fotos aéreas feitas pela equipe da extinta revista O Cruzeiro, atingiu exatamente as sílabas “zon” e “pulha”. Pelos relatos de antigos moradores, a região, embora ainda não muito povoada, ficou em polvorosa, pois a represa começou a arrebentar na parte da manhã e só terminou à noite. Antes de tudo acontecer, as autoridades pediram, pelo rádio, que as pessoas evacuassem a área. Muitas casas foram destruídas e houve inúmeros desabrigados, a maioria pessoas de baixa renda.

 

 

O então governador de Minas, Juscelino Kubitschek (1902-1976), que havia sido prefeito de BH entre 1940 e 1945, quando foi inaugurado o Conjunto Moderno, hoje Patrimônio Mundial, declarou: “Vamos construir em tempo recorde.” Uma foto daqueles dias é emblemática. Durante os trabalhos de engenharia, JK, ao lado da primeira-dama, Sarah Kubitschek (1908-1996), tendo o espelho d’água ao fundo, come um sanduíche, enquanto alguém lhe serve, ao que parece, um café. O registro fotográfico está no livro “Juscelino Kubitschek, uma Fotobiografia”, organizado pelo cientista social e gestor cultural Fábio Chateaubriand Borba. A pesquisa mostrou que o governador “não saía de lá (da Pampulha) até se sentir seguro de que a situação estivesse contornada”.

 

 

O rompimento na Lagoa do Nado impressionou o aposentado José Waldimiro de Lima, de 79 anos, que amigos e familiares chamam de Calu. Morador do Bairro Suzana, na Região da Pampulha, ele explica que, na década de 1950, a comunidade não tinha esse nome e reunia, no máximo, de 20 a 30 pessoas. “Quando vi a água da Lagoa do Nado descendo com toda força, pensei: Nossa Senhora! O que é aquilo? E me lembrei exatamente do estouro da Barragem da Pampulha”.

 

 

Caçula de uma família de 10 irmãos, com o pai viúvo, Calu diz que as autoridades, alguns dias antes, começaram a pedir para as pessoas deixarem as moradias. “Saímos de casa só com a roupa do corpo. Um homem, num jipe, avisava para as pessoas irem embora logo e procurarem um local seguro. Foi um período muito difícil na nossa vida e na cidade.” O que mais impressiona o aposentado é que tais situações continuem ocorrendo em BH e outras cidades mineiras. “Esses locais devem sempre fiscalizados, as pessoas correm riscos”, afirma ele, nesse momento, de pé à beira do Córrego do Onça, nas proximidades do vizinho Bairro Dona Clara, onde a prefeitura faz obras. “A água desceu tomando conta de tudo. Não havia ainda a Avenida Cristiano Machado, esses bairros. São momentos difíceis de a gente esquecer.”

 

 

Explicações



Por que ocorreu o rompimento, em 20 de abril de 1954, na Pampulha? Quem responde é o diretor do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte (APCBH)/Fundação Municipal de Cultura, historiador Yuri Mello Mesquita, estudioso do tema. “O vazamento na represa, resultado de uma fissura, foi detectado em 16 de abril daquele ano. Na época, a cidade, com cerca de 500 mil habitantes, registrava uma série de problemas estruturais, entre eles ruas com muitos buracos, lixo sem recolher, enchentes e falta de água e de escolas.”

 

Nesse cenário, em que ainda não havia a Companhia de Saneamento de Minas Gerais (Copasa), a prefeitura era a responsável pelo fornecimento de água e tratamento do esgoto urbano. Então, o prefeito (de 1951 a 1954) Américo Renné Giannetti (1896-1954) e o governador Juscelino Kubitschek se uniram para encontrar uma solução: a primeira foi abrir duas comportas do reservatório, a fim de esvaziá-lo, e tentar soldar a fissura. “O fato criou uma comoção na cidade, e, desde o dia 16, as autoridades foram a público passar uma mensagem de tranquilidade, dizendo à população que a barragem não se romperia”, afirma Yuri, autor da dissertação de mestrado Jardim de asfalto — Água, meio ambiente e canalização e as políticas públicas de saneamento básico em Belo Horizonte (1948-1973).

 

Ao mesmo tempo, ressalta Yuri, começaram as campanhas de vacinação dos moradores das áreas atingidas pela água da Pampulha, que afetou a região do Vale do Ribeirão do Onça, chegou ao Rio das Velhas, passou por Santa Luzia, na região metropolitana, e seguiu em direção ao Rio São Francisco. “Havia o temor de epidemia de doenças de veiculação hídrica. BH tinha muitas epidemias de esquistossomose e gastroenterite.” O Estado de Minas documentou todas as etapas e estampou a manchete: “Fendeu-se a represa da Pampulha na manhã de sexta-feira.” O texto dizia: “A torrente violenta causou estragos de monta, destruiu obras, arrasou casas e colocou muitas famílias ao desabrigo.”

 

“Imenso lodaçal”

As áreas atingidas haviam se transformado num “imenso lodaçal de onde emanam fétidos odores”, segundo a edição do “Diário da Tarde”, de 22 de abril de 1954. Antes de seguir para a solenidade do Dia de Tiradentes (21 de abril), em Ouro Preto, o presidente Getúlio Vargas (1882-1954) visitou a capital mineira e ofereceu recursos: “Belo Horizonte precisa e merece o apoio do governo da União”, afirmou ao lado de JK e do prefeito.

 

E o que disse o engenheiro construtor Ajax Rabelo? As explicações dele foram as seguintes: “O acidente é quase comum em barragens de terra, como no caso da Pampulha. A barragem é muito grande, feita sobre aterro e a pressão da água, enorme, pois na Lagoa da Pampulha estão 18 milhões de metros cúbicos de água. Daí, pode-se imaginar a pressão (…). Houve um movimento maciço da barragem que trincou o concreto, fato comum em barragens de terra”.

 

Passado o “sufoco”, foi convocado para a empreitada de reconstrução o engenheiro Luiz Vieira, vindo do Rio de Janeiro (RJ) e colaborador da obra em 1937. Segundo Yuri Mello Mesquita, não se chegou a um consenso sobre causas e responsabilidades do rompimento. Ocorreu, na sequência, um jogo de empurra, com acusações mútuas das autoridades municipais e estaduais, além de culpa ao prefeito anterior, responsável por erguer a barragem.

 

Conforme os jornais da época, não houve registro de danos ao patrimônio arquitetônico moderno projetado, na década anterior, por Oscar Niemeyer (1907-2012) — Igreja de São Francisco, Casa do Baile, Cassino, atual Museu de Arte da Pampulha, e outros monumentos que maravilham os olhos do mundo.

 

Um novo bairro

A construção da barragem da Pampulha se deu bem antes da implantação do conjunto arquitetônico moderno projetado por Niemeyer. Ao erguer a estrutura para captação de água, inaugurada em 1938, o então prefeito Otacílio Negrão de Lima já vislumbrava a possibilidade de a região se tornar “um novo e pitoresco bairro”, conforme os relatórios da sua administração.

 

Neste século 21, o episódio do rompimento da barragem, em 1954, é uma página virada na história da Pampulha, que atrai os olhos do mundo para a importância arquitetônica e se tornou Patrimônio Mundial, título concedido pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco), em 16 de julho de 2016. No entanto, não muito longe dali, a ruptura na Lagoa do Nado, guardadas as devidas proporções de volume, tempo e espaço, volta a assombrar os moradores de BH que, com população quase quatro vezes maior da de 1954, convivem com enchentes monumentais, falta de infraestrutura para conter tanta água e, principalmente, trânsito caótico a cada temporada chuvosa.

 

CRONOLOGIA


  • 1938 – Inauguração da barragem da Pampulha. O objetivo inicial é fornecimento de água à população;
  • Década de 1940 – Implantação do conjunto arquitetônico moderno projetado por Oscar Niemeyer;
  • 1954 – Em 16 de abril, fenda na estrutura leva autoridades a emitir alerta para população abandonar casas;
  • 1954 – Em 20 de abril, barragem arrebenta, inunda o aeroporto e atinge toda a região do vale do Ribeirão do Onça.

 

Capital em alerta climático

Belo Horizonte tem cinco regionais sob forte risco geológico devido ao acúmulo de chuvas: Venda Nova, Pampulha, Norte, Nordeste e Leste. O alerta foi emitido pela Defesa Civil de BH e vale até amanhã (18/11). Já choveu 64% do previsto para o mês na cidade. Há risco de deslizamentos, desabamentos e escorregamentos. A orientação das autoridades é de, a qualquer sinal de perigo, ligar para o 199, com funcionamento de 24 horas, e relatar o cenário para a Defesa Civil.