Em um cenário de mudanças climáticas aceleradas, Minas Gerais emerge como um dos estados mais vulneráveis do Brasil. É o que aponta um estudo divulgado ontem (19/11) pelo Instituto Trata Brasil – organização voltada para saneamento básico e proteção dos recursos hídricos do país –, que detalha os impactos de fenômenos como tempestades, ondas de calor e secas sobre os sistemas de abastecimento de água e saneamento.
O diagnóstico para o estado, historicamente marcado por contrastes climáticos, é um prenúncio de dias mais difíceis: enquanto algumas cidades enfrentarão longos períodos de estiagem, cenário já comum na parte mineira do Polígono da Seca, outras vão sofrer com tempestades que arrastam tudo em seu caminho e ondas de calor mais frequentes. O estudo analisou modelos climáticos dos anos de 1895 até 1994 para entender as condições históricas consideradas normais no Brasil e, a partir daí, descrever como se comporta o cenário histórico recente e as projeções climáticas até 2050.
De acordo com o relatório, 78% dos municípios mineiros estão em risco alto ou muito alto de sofrer com tempestades extremas, caracterizadas pela precipitação máxima em um único dia. Minas tem risco também de chuvas prolongadas por até cinco dias consecutivos em 72% dos municípios, especialmente na Zona da Mata e Sul do estado. “Já é sabido que teremos mais eventos extremos, seja de calor ou de tempestades. E a gente precisa ter estruturas robustas de abastecimento de água e uma correta distribuição para não ter impactos para a população”, afirma Luana Pretto, presidente-executiva do Instituto Trata Brasil.
Esses eventos extremos, caracterizados por chuvas intensas e concentradas em curtos períodos, representam uma ameaça à infraestrutura de saneamento, como mananciais e estações de tratamento, aponta Pretto. Tempestades intensas provocam o acúmulo de sedimentos nos mananciais, tornando o tratamento de água mais complexo e, muitas vezes, ineficaz. Além disso, a força das tempestades pode também romper tubulações e interromper o fornecimento de água para milhares de pessoas, especialmente em áreas vulneráveis.
“Quando a gente tem um período longo de chuva, geralmente há acúmulo de sedimentos nos rios, então, a água fica mais turva, mais suja. E muitas vezes as estações de tratamento não estão projetadas para tratar esse tipo de água e acabam não conseguindo atingir todos os parâmetros de potabilidade exigidos pelo Ministério da Saúde. Os sistemas, muitas vezes, não estão preparados para lidar com volumes tão altos de precipitação, o que agrava os danos à infraestrutura e à saúde pública”, alerta Pretto
ONDAS DE CALOR
Outro destaque do estudo é a ameaça representada pelas ondas de calor. Segundo as projeções, 58% dos municípios mineiros enfrentam uma probabilidade muito alta de sofrer com os impactos desse fenômeno no abastecimento de água. Entre os problemas apontados estão o aumento da evapotranspiração, que reduz significativamente os volumes de rios e reservatórios, e a elevação da demanda por água devido ao consumo exacerbado durante períodos de calor extremo.
As previsões do Instituto Trata Brasil apontam que o estado pode vivenciar até nove ondas de calor adicionais por ano até 2050, agravando ainda mais a pressão sobre os sistemas de abastecimento. Apesar de não detalhar quantas ondas de calor temos hoje, a correlação do cenário de aumento da temperatura e as infraestruturas de saneamento básico, tanto no acesso à água quanto na coleta e tratamento do esgoto, mostram que a infraestrutura existente não suporta esse aumento de demanda que está por vir. “Isso pode sobrecarregar ainda mais os sistemas de abastecimento, além de comprometer a qualidade e a quantidade de água disponível, e exigir estratégias para minimizar as perdas e gerenciar os recursos hídricos”, aponta Pretto.
Em entrevista anterior a reportagem do Estado de Minas, o superintendente da Unidade de Negócio Metropolitana da Companhia de Saneamento de Minas Gerais (Copasa), Ronaldo Serpa, reconheceu a preocupação com os impactos de extremos climáticos, como ondas de calor e períodos de seca prolongados, no abastecimento da população. “A água está diretamente relacionada com a situação climática. Um dos problemas acontece quando temos uma onda de calor muito elevada e, principalmente associada a umidade relativa do ar muito baixa. Isso aumenta o consumo e causa reflexos, principalmente nas regiões mais distantes do nosso sistema de produção”, disse.
FANTASMA DA CRISE HÍDRICA
Enquanto algumas regiões enfrentam tempestades que arrastam tudo pelo caminho, o Norte de Minas e Vale do Jequitinhonha terão que lidar com estiagens ainda mais prolongadas nos próximos anos. Historicamente marcado por secas severas e chuvas concentradas em poucos meses, esses territórios agora enfrentam um agravamento causado pelas mudanças climáticas, que podem adicionar até 30 dias consecutivos a mais sem chuva por ano.
O padrão de chuva zero por meses consecutivos agrava o que já era um cenário complicado na parte mineira do Polígono da Seca. No último período de estiagem, que se estendeu por quase seis meses, mais de 300 cursos d'água secaram no Norte do estado, afetando diretamente cerca de 20 mil famílias que dependem dessas fontes para abastecimento de água potável e produção de alimentos, segundo a Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater-MG). Estiagens severas trazem impactos duradouros para a vegetação e os recursos hídricos. Os municípios mais afetados ainda sofrem com uma combinação de condições naturais desfavoráveis, desmatamento e degradação da vegetação nativa.
As projeções do estudo do Instituto Trata Brasil trazem à lembrança a crise hídrica de 2015, quando os reservatórios da Copasa chegaram a operar com menos de 40% de sua capacidade. Na Grande BH, o segundo maior reservatório do Sistema Paraopeba operava com 5,73% de sua capacidade. Imagens de arquivo do Estado de Minas mostram o reservatório de Vargem das Flores, em Betim, com as margens retraídas e um vale de terra seca e rachada exposto pela estiagem.
DESIGUALDADES AGRAVADAS
Para a presidente-executiva do Instituto Trata Brasil, a intensificação dos eventos climáticos extremos amplia desigualdades no acesso à água e ao saneamento. Áreas rurais e periféricas têm redes de abastecimento mais frágeis e, muitas vezes, convivem com sistemas de esgoto precários. “Quando temos uma chuva intensa, a gente vê rompimento das estruturas de esgotamento. Às vezes, as estruturas de drenagem estão erroneamente ligadas à de coleta de tratamento de esgoto e há uma infiltração dessa chuva para as redes do esgoto”, aponta.
Durante tempestades, por exemplo, áreas sem coleta adequada de esgoto sofrem com transbordamentos, que contaminam rios e áreas residenciais e expõem a população ao risco de doenças. Já em períodos de calor extremo, moradores de regiões sem acesso regular à água tratada sofrem com o mau-cheiro intensificado e ainda recorrem a fontes alternativas, muitas vezes inadequadas e perigosas. “Estamos falando em impactos tanto para as estruturas quanto para a população, que muitas vezes vai tomar uma água com uma qualidade duvidosa por conta desses processos de tratamento durante os períodos de tempestade”, completa a presidente-executiva do instituto.
PLANEJAMENTO
Pretto reforça que as projeções para 2050 exigem planejamento imediato e a adoção de políticas públicas voltadas à mitigação e adaptação, com foco especial em regiões mais vulneráveis. “Mesmo que o evento extremo aconteça, a população precisa continuar recebendo água, coletando e tratando o seu esgoto. Esse é o principal ponto”, afirma. Entre as medidas sugeridas estão a modernização das infraestruturas de saneamento, a ampliação de sistemas de monitoramento e a redução das perdas de água tratada, que ainda são significativas em Minas Gerais. Além disso, o estudo sugere integrar políticas de saneamento e gestão de recursos hídricos aos esforços de adaptação climática.
Para Cristiana Nepomuceno, bióloga e advogada especialista em Direito Ambiental, a chave para mitigar os impactos das mudanças climáticas em Minas Gerais está na conscientização e execução efetiva das leis já existentes, como o Plano Nacional de Mudanças Climáticas e a Lei de Recursos Hídricos. "A nossa legislação ambiental é robusta e bem estruturada. No entanto, o que falta é a aplicação prática dessas normas. O papel aceita tudo, mas o desafio está em tirar as boas intenções do papel", afirma.
Cristiana destaca que a educação ambiental é fundamental para mudar a mentalidade da população e das autoridades. "É preciso começar cedo, lá na escola, para que as crianças aprendam a importância de preservar o meio ambiente. Sem essa base, seguimos vendo desperdício, como pessoas usando mangueiras para varrer calçadas em plena seca", lamenta. Segundo a especialista, medidas como o reaproveitamento de água, a redução de descartes inadequados e a recuperação de áreas degradadas são estratégias essenciais a curto e longo prazo.