“Sou sobrevivente de um modelo falido.” É assim que Sidnei Marques, o rapper SLK 22, classifica a história da sua vida. Aos 37, ele está em prisão domiciliar há seis meses, após ficar 17 anos detido no sistema prisional de Minas Gerais, passando por 16 estabelecimentos de segurança pública diferentes no período. Em meio ao vai e vem carcerário, ele chegou a ficar por nove meses no chamado Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), no qual o preso fica em uma cela sozinho, sem direito à visita da família. “Eu pensei várias vezes em me matar. Fui completamente abandonado, esquecido. O que salvou a minha vida foi um grilo, que pousava perto da cela. Conversei várias vezes com ele para manter minha cabeça ativa e sobreviver”, diz.
A realidade trazida por SLK 22 é representada por números da Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen), do Ministério da Justiça e Segurança Pública, segmentados pelo Núcleo de Dados do Estado de Minas. Semestralmente, o órgão levanta informações para fazer um raio-x do sistema prisional brasileiro e elaborar políticas públicas a partir delas. O último foi fechado em junho deste ano e quantificou o tamanho da falência da segurança pública brasileira. Em Minas Gerais, a base aponta para uma superlotação de 66,8% das unidades prisionais: 149 das 223 abrigam mais pessoas que deveriam. Não estão nesse recorte aquelas que registram, de acordo com a Senappen, ocupação de exatamente 100% (são seis estabelecimentos nessa situação).
Minas Gerais tem hoje 58.644 vagas em suas penitenciárias. No entanto, os dados do governo federal mostram que o estado custodiava 72.568 presos em junho. Portanto, havia um déficit de 13.924 vagas naquele momento. A maior taxa de ocupação, segundo o levantamento, é do Presídio de Itapagipe, no Triângulo Mineiro. A Senappen registra uma capacidade para 65 detentos, mas a unidade abriga 202, uma superlotação de 311%.
Os números do governo federal apontam para uma situação também grave no Presídio de Bocaiuva, no Norte do estado. Com 60 vagas, a unidade prisional computava 178 detentos no meio deste ano, uma ocupação de 297%. Outros 36 estabelecimentos ultrapassam a marca de 200% de ocupação no levantamento.
Ao considerar as grandes penitenciárias de Minas Gerais, aquelas com capacidade de ao menos 500 detentos, apenas três das 20 cadeias do tipo não estão superlotadas: justamente os complexos públicos privados administrados em Ribeirão das Neves, na Região Metropolitana de BH; e o Ceresp Gameleira. Maior unidade do estado com 1.664 vagas, o Complexo Penitenciário Nelson Hungria, em Contagem, também na Grande BH, registra ocupação de 149%. A maior superlotação entre os estabelecimentos com capacidade de ao menos 500 presos é da Penitenciária de Três Corações, no Sul de Minas: 226% (1.236 detidos para 546 lugares).
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“Unidades superlotadas oferecem vários riscos. Desde rebeliões e fugas até um estresse muito grande para os profissionais que trabalham no sistema, com adoecimento, pedidos de afastamento e aumento da violência por conta desse estresse”, afirma Robson Sávio Reis Souza, pós-doutor em direito humanos e presidente do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos Humanos (Conedh).
O sociólogo e especialista em segurança pública Luís Flávio Sapori acrescenta que o problema não é só responsabilidade do Governo de Minas. "É preciso ter claro que essa superlotação é uma situação nacional, até mesmo internacional. A maneira de diminuir o problema é dar maior celeridade aos processos penais, fazer mutirões periódicos nas varas criminais das principais comarcas do estado. A responsabilidade maior é do Judiciário. Além disso, Minas Gerais precisa construir novas vagas. Mas, isso demanda investimento, que muitas vezes o governo estadual não tem. Precisamos do apoio do governo federal para isso", diz.
Para quem viveu a realidade de perto, a sensação é de que quase nada funciona de fato no sistema prisional, que se torna, na prática, uma escola do crime. “Tem uma falha grande, que é a falta de ressocialização do cara que está lá dentro. Se eles realmente usassem os profissionais da maneira correta, talvez o número de integrantes de facções não seria tão grande. Eu sou uma exceção e tenho consciência disso. Fui resgatado pela música. Deixei de ser o talibã (como era conhecido no crime) para me tornar o SLK 22, um artista”, afirma Sidnei Marques, personagem que abre esta reportagem. Também influenciador digital, ele conta com 143 mil seguidores no TikTok e 20 mil no Instagram.
Estado se posiciona
Em nota, o Departamento Penitenciário de Minas Gerais (Depen-MG) informou que “a superlotação é uma realidade em todos os estados da federação, não sendo uma peculiaridade do sistema prisional mineiro”. Ainda assim, ressaltou que o governo “está trabalhando para ampliação do número de vagas no sistema prisional do Estado e consequente redução do déficit”. Segundo a pasta, “há cinco unidades previstas para serem entregues que, juntas, somam 2.282 novas vagas”. Esses estabelecimentos estão em Ubá (Mata), Itaúna (Central), Frutal (Triângulo), Lavras (Sul) e Poços de Caldas (Sul).
O Depen também informou que o estado investiu R$ 74 milhões na “melhoria estrutural de várias unidades do sistema prisional” recentemente. “Além disso, há inúmeras parcerias com prefeituras e com o Poder Judiciário que possibilitam reformas que permitem a ampliação de vagas e a melhoria estrutural de diversas unidades de pequeno e médio porte”.
Sem condenação
Outro dado levantado pela Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen) escancara a falência do sistema prisional de Minas Gerais. Mais de um terço da população em cárcere não está efetivamente julgada pelos eventuais crimes que cometeu. Dos 72.568 detentos em unidades mineiras, 27.193 ainda não têm pena definitiva aplicada pela Justiça, portanto 37,4% dos detentos estão nessa situação.
“Isso é um absurdo. Muitos desses presos não oferecem riscos à sociedade. Se houvesse uma iniciativa eficiente do Ministério Público, do Poder Judiciário e do sistema prisional para averiguação de processos, isso poderia resultar num alívio para essa superlotação. Esse dado vai na contramão de todas as normativas internacionais de proteção e defesa dos direitos humanos. Ou seja, ninguém deveria estar preso sem condenação”, afirma Robson Sávio Reis Souza, presidente do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos Humanos (Conedh).
O especialista em segurança pública Luís Flávio Sapori destaca que a prisão temporária é permitida pela legislação penal, portanto não há erro das polícias nesse sentido. Para ele, o problema recai sobre o Judiciário. “Nosso maior problema está na superlotação de presídios com presos provisórios, aguardando julgamento. É aí que a questão é mais grave. A qualidade das celas é precária, os detentos estão amontoados. O provisório está previsto em lei. Ele não é um problema a princípio, porque foi custodiado pelo flagrante do crime cometido. Não há ilegalidade. O maior problema é o tempo de duração dessa detenção. Alguns estudos mostram que esse prazo pode superar a barreira dos dois anos, dependendo do estado. Essa culpa é da Justiça criminal, que demora para julgar”, diz.
Em Francisco Sá, no Norte de Minas Gerais, o rapper SLK 22 chegou a conhecer um detento que ficou quatro anos na cadeia sob acusação de homicídio, mas foi absolvido posteriormente pela Justiça. “Aí eu te pergunto: quem vai devolver esse tempo ao cara? Como ele vai recuperar os laços com a família? Eu mesmo fiquei quase quatro anos sem condenação na cadeia. Em quatro anos, você consegue se formar em algo e ser alguém na vida. Ninguém te devolve esse tempo”, afirma.
Em conversa com o Estado de Minas, o desembargador José Luiz de Moura Faleiros, supervisor do Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e das Medidas Socioeducativas do TJMG, informou que o tribunal tem investido na criação de Centrais de Audiência de Custódia (Ceacs) para diminuir o número de detentos sem condenação. "As Ceacs têm competência para receber e processar, em regime de plantão, expedientes de comunicação de prisão em flagrante ou decorrente de mandado, ocorrida nos limites de sua extensão territorial, mesmo que determinada por juízo diverso, e para realizar a respectiva audiência de custódia", diz.
A audiência de custódia é vista por ele como "uma poderosa maneira de racionalização da porta de entrada do sistema prisional", pois a partir dela o juiz(a) pode optar, por exemplo, por penas alternativas ou até mesmo pela liberdade. "Não medimos esforços para atuações que visem fomentar, junto aos(as) magistrados(as), a revisão jurídica da prisão daqueles acautelados que estão em privação de liberdade provisória. Em 2023, foi publicada uma portaria do Conselho Nacional de Justiça (170/2023), que estabeleceu procedimentos e diretrizes para a realização de mutirões processuais penais nos Tribunais de Justiça do país durante os meses de julho e agosto daquele ano", afirma.
Segundo o desembargador José Luiz de Moura Faleiros, Minas Gerais "foi um dos estados mais exitosos na execução do mutirão (realizado em 2023), com reavaliação de centenas de prisões provisórias, com redução drástica do número de pessoas privadas de liberdade sem condenação em definitivo.
Guerra contra as drogas é efetiva?
A Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen) registra 52 tipos de crimes diferentes em sua base de dados sobre o sistema prisional, elaborada semestralmente. Em Minas Gerais, como ocorre em todo o Brasil, o tráfico de drogas é responsável pela maior parte das condenações: 8.071 no total. No Complexo Penitenciário Nelson Hungria, por exemplo, a maior cadeia do estado, 30,5% dos detentos têm condenação por esse tipo de infração. Para efeito de comparação, a segunda tipificação mais comum em todo o estado, independentemente da unidade prisional, é a soma dos roubos simples e qualificados com 4.535 condenações. Em terceiro, estão os homicídios simples e qualificados, que punem 2.954 pessoas atrás das grades no estado.
A liderança do tráfico de entorpecentes não surpreende os especialistas ouvidos pelo Estado de Minas, mas reforça a análise de que a guerra às drogas não surte o efeito esperado para diminuir a criminalidade.
“O tráfico é o crime que mais aprisiona no Brasil e no mundo ocidental. É o que mais recruta indivíduos, principalmente jovens, pelo seu caráter lucrativo. É um problema internacional e complexo. Com essa decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que define o limite entre usuário e traficante em 40 gramas, pode ser que diminuamos esse problema. Estudos recentes a que tive acesso mostram que grande parte dos indivíduos que estão detidos por tráfico no Brasil foi presa por portar até 25 gramas de maconha, ou até 10 gramas de cocaína. Muitos desses casos são usuários, que foram presos, julgados e condenados como traficantes”, diz Luís Flávio Sapori, especialista na área da segurança pública.
O professor, no entanto, lamenta a possibilidade de reversão da decisão do STF por meio da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 45/2023, conhecida como PEC das Drogas. O texto tem autoria do senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG) e já passou no plenário da sua Casa de origem. Agora, aguarda a criação de comissão temporária para sua análise na Câmara dos Deputados. O objetivo da matéria é tornar crime qualquer porte de drogas, independentemente da quantidade.
Além de inefetiva, a política defendida pelo senador Rodrigo Pacheco é vista como favorável às facções por parte do coordenador do Núcleo de Estudos Sociopolíticos da PUC Minas, Robson Sávio Reis Souza.
“Essas prisões de pequeno tráfico e uso de drogas não só deixam de resolver o problema, como corroboram com o fortalecimento das facções, que arregimentam boa parte dos seus membros dentro do sistema prisional. O combate ao tráfico de drogas deve ser feito a partir da inteligência, principalmente a partir do desmonte das operações financeiras das facções. Tem a ver com crimes financeiros, corrupção, empresas de fachada, lavagem de dinheiro…”, afirma.
Mudança de paradigma?
Sobre o atual número de prisões por tráfico de drogas em Minas Gerais, o supervisor do Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e das Medidas Socioeducativas do TJMG, desembargador José Luiz de Moura Faleiros, afirma que o tribunal "sempre foi uma instituição atenta e sensível em relação à necessidade de implementação de práticas jurídicas que propõem uma abordagem diferenciada da justiça em relação ao indivíduo condenado e que sofre com a dependência química".
"As pessoas (detidas por tráfico de drogas), sobretudo dentro do Poder Judiciário brasileiro, devem receber um tratamento dirigido e focado em programas de reabilitação, prezando pela justiça terapêutica. Isso já vem sendo adotado em outros estados brasileiros e envolve a reabilitação de usuários de substâncias entorpecentes que tenham condutas criminosas advindas do uso de drogas", afirma.
Segundo o desembargador, a Corte mineira realizou em 2022 um estudo de viabilidade para apresentar proposta de criação do "Programa Redução de Danos", com objetivo de diminuir os crimes ligados às drogas. "É preciso ter em mente que ainda há muito o que se fazer em relação ao encarceramento em massa, sobretudo de pessoas presas pela prática do crime de tráfico ilícito de entorpecentes com uma pequena quantidade de droga. Entretanto, é visível a mudança de paradigma das cortes superiores do Poder Judiciário em face do tema (a já citada decisão do STF, por exemplo), o que, certamente, irradiará nos tribunais estaduais, gerando debates e ações necessárias para mudanças sociais urgentes", diz.
Metodologia
O Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias é feito semestralmente pela Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen). No raio-x, estão disponíveis dados de quantitativo geral de custodiados no Brasil e por unidade federativa, bem como dados relacionados às informações criminais, às ações de reintegração social, à saúde, à população estrangeira, à monitoração eletrônica e às mulheres e grupos específicos. Os dados foram segmentados pelo EM com a linguagem de programação Python.