Brumadinho e Itatiaiuçu – A pressa do casal para encaminhar o gado para o curral e de colher no brejo os talos de maria gondó para fazer salada é ditada pelo céu e pelo Córrego dos Quéias. O tempo fechado, com nuvens escuras de chuva, aumenta o medo de que uma tempestade faça soar as sirenes contra rompimento de quatro barragens sem garantias de estabilidade no vale do riacho, bem acima da fazenda de onde Nísio Ronaldo de Oliveira, de 60 anos, e sua mulher, Lourdes Pereira de Souza, de 69, tiram o sustento, em Brumadinho, na Grande BH.
“Eu tenho muito medo, ainda mais quando chove. Tem essa tal de campainha de alerta (referindo-se à sirene), que diz que caso acontecer um rompimento, vai alertar. Mas não dá tempo, não. Água não tem cabelo, não. A água desce igual desesperada. Desce arrasando tudo”, analisa Lourdes, temerosa. “Não me importo de ser indenizado (e removido pela mineradora). Aqui é um cantinho muito bom. É aqui que eu vivo. É aqui que eu mexo com as minhas criações. Mas, se tiver uma oportunidade de tirar a gente daqui seria bom, porque ficar no risco também não pode, né? A gente corre risco demais aqui com a nossas criações”, completa Nísio.
As barragens que preocupam os produtores rurais pertencem à mineradora Emicon Mineração e Terraplanagem, que foi procurada pela equipe de reportagem do Estado de Minas por meio telefônico e por mensagem de e-mail, sem retorno até o fechamento desta edição.
Assim como o casal Lourdes e Nísio, um total de 42 mil pessoas em Minas Gerais vive abaixo das cristas de barragens de mineração que não têm condições de estabilidade atestadas por engenheiros especializados. Para algumas, nem sequer um laudo sobre as condições da estrutura foi feito. Uma situação que traz ainda mais receio com a intensificação das chuvas de fim de ano.
Ao todo, 17 barramentos mineiros não tiveram estabilidade garantida e outros seis não tiveram esse levantamento enviado para a Agência Nacional de Mineração (ANM). Um dado que reforça a atenção para a segurança dessas estruturas, todas elas dentro do conjunto de 44 barragens embargadas em território mineiro, como mostrou reportagem do Estado de Minas na última edição.
Consideradas em conjunto, as 42 mil pessoas que vivem nas áreas ameaçadas por barragens sem condição de estabilidade atestada são mais numerosas do que a população individual de 772 municípios de Minas Gerais. Os moradores mais vulneráveis se encontram nas chamadas Zonas de Autossalvamento, onde, em caso de um desastre como nas catástrofes de Mariana (2015) e Brumadinho (2019), equipes de resgate não teriam sequer tempo de chegar. Pessoas que vivem nessas comunidades são instruídas a fugir por rotas predeterminadas, mas não devem tentar ajudar outras, sob o risco de morrerem antes de conseguir.
INFORMAÇÕES EXIGIDAS
O laudo que atesta a solidez de uma barragem é chamado Declaração de Condição de Estabilidade (DCE) e pode ser exigido na versão Relatório de Inspeção de Segurança Regular (RISR), que é uma inspeção semestral, ou pela Revisão Periódica de Segurança de Barragem (RPSB), que varia de 2 anos a 7 anos dependendo do risco potencial que o barramento representa e é um raio-X mais completo das condições da estrutura.
Em relação às falhas na documentação que atesta a segurança dos reservatórios, uma das condições que mais se destacam é a da Emicon Mineração e Terraplanagem Ltda., em Brumadinho, na Grande BH. A mineradora tem quatro barramentos listados no Sistema Integrado de Gestão de Barragens de Mineração (SIGBM) da ANM e, apesar de todas estarem em nível de 1 emergência, com necessidade de intervenções urgentes, nenhuma enviou para a agência o DCE/RISR.
As barragens Quéias, B1A, Dique B3 e Dique B4 ficam na Serra da Conquista, dentro da sub-bacia do Córrego dos Quéias e estão todas embargadas, figurando também dentro das mais altas categorias de risco e de dano potencial associado, segundo a ANM. Juntas, elas retêm 118,3 mil metros cúbicos (m³)de rejeitos.
Embora o volume não seja tão grande quanto os 9 milhões de m³ que vazaram de Brumadinho em 2019, as barragens sem certificação de estabilidade representam um risco significativo não apenas para os moradores das proximidades. Elas também colocam em perigo usuários da rodovia BR-381 (Fernão Dias) e podem contaminar a água da Barragem Rio Manso, da Copasa, localizada a 8,5 quilômetros de distância e que é usada por 1,5 milhão de consumidores. O sistema Rio Manso é abastecido por afluentes que podem ser contaminados pelas operações de mineração Brumadinho, incluindo as Barragens Quéias e B1A, sem atestado de estabilidade.
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A Barragem Quéias é a maior e mais preocupante, estando a menos de um quilômetro da Rodovia Fernão Dias e a 5,5 quilômetros do reservatório de Rio Manso. Essa estrutura de contenção de rejeitos de minério de ferro possui 15 metros de altura e pode armazenar um volume de 75.000m³.
Atualmente, segundo a ANM, a barragem Quéias está em nível 1 de emergência, devido a intervenções em andamento que ainda não resolveram os problemas. A 500 metros dela, encontra-se a B1A, com 37 metros de altura e capacidade de 22.460m³ de rejeitos de minério de ferro. Também está classificada em nível 1 de emergência, o que indica a necessidade de intervenções para garantir a estabilidade.
OS CAMINHOS DA DESTRUIÇÃO
Em uma situação de colapso, caso os rejeitos das barragens da Emicon cheguem ao reservatório Rio Manso, da Copasa, devastariam pelo caminho 10 estradas rurais, uma ponte rural e cinco barramentos de água com finalidades diversas (irrigação, abastecimento e piscicultura). Em termos ambientais, a ANM considera que os danos seriam “significativos”, pois a região afetada abaixo da barragem apresenta área de interesse ambiental relevante ou áreas protegidas em legislação específica.
“Aqui é um risco para mim e para todos nós. Já tiraram os vizinhos e estão pagando aluguel. Eu passo aqui no risco (referindo-se à área ameaçada em caso de rompimento) todo dia. Mexo com meu curral é aqui. Passo por aqui para ir para a minha casa. Fico mais aqui do que na minha casa. Tem muito sítio aqui, então carros passam, caminhões e trabalhadores das hortas”, detalha o agricultor Nísio Ronaldo de Oliveira, que vive com a mulher, Lourdes Pereira de Souza, à sombra das barragens da Emicon.
A chuva aumenta a sensação de medo do casal de Brumadinho. “Quando chove, eu tenho muito medo. Eles (enviados da mineradora que é proprietária da barragem) passam aqui e sempre falam que não precisa se preocupar, não. Que (as barragens) estão sem perigo. Mas se não tem perigo, por que passam avisando?”, desconfia Lourdes.
“Esses dias eu estava com muito medo, porque ela (a barragem) estava muito cheia. Achei melhor deixar o gado mais para cima. Se caso chegar a descer água, não mata o gado – as vacas de leite, os cavalos... É muito difícil para nós. Eu tenho medo, mas a gente tenta o que pode”, afirma a agricultora.
O PROCESSO DE DESMANCHE
Entre as 23 barragens sem garantias de estabilidade listadas pela Agência Nacional de Mineração (ANM), 14 estão em processo de descaracterização, ou seja, estão sendo desmanchadas e o local onde ficam teoricamente será revertido a uma condição próxima à natural. Seis barramentos têm Estruturas de Contenção a Jusante (ECJ) que são outras barragens feitas para impedir que rejeitos cheguem até comunidades, estradas e locais preservados em caso de rompimento.
Quando a DCE não é entregue ou apresenta resultado negativo, a barragem é automaticamente embargada. “Uma DCE negativa ocorre quando o RISR (Relatório de Inspeção de Segurança Regular) conclui que a barragem não atende a algum requisito técnico necessário para garantir sua estabilidade. Esse relatório é elaborado por profissionais qualificados”, informa a ANM.
10 VEZES O RISCO DE MARIANA
Ao todo, as barragens sem garantias em Minas retêm 441.987.363,19 metros cúbicos de rejeitos. Um volume quase 10 vezes maior do o liberado pelo rompimento da Barragem do Fundão, em Mariana, em 5 de novembro de 2015. A devastação sobre a Bacia do Rio Doce entre Minas Gerais e o Espírito Santo deixou 19 pessoas mortas após o despejo de 45 milhões de m³ de rejeitos de minério de ferro da mina da Samarco.
Desses barramentos, 10 foram construídos e depois ampliados pela técnica de alteamento a montante, o mesmo método das barragens que se romperam em Brumadinho e em Mariana e que foi proibido no Brasil após os desastres. Todas essas estruturas terão de ser desmanchadas em Minas Gerais até 2035, após acordo com o Ministério Público (MPMG). Desde 2019, um total de 19 foram descaracterizadas.
Oito barramentos têm a instrumentação que monitora suas condições em desacordo com o projeto original de segurança. Esses equipamentos são fundamentais para conhecer o estado da estrutura ao medir a pressão da água, movimentação do solo e deformações que podem indicar problemas estruturais.
Há vários problemas estruturais apontados pela ANM entre as barragens em situação crítica. Em 10 delas, não há confiabilidade nas estruturas extravasoras, como vertedouros, descarregadores de fundo e canais de fuga. Foram detectados problemas de percolação (infiltração) em 12 estruturas interditadas, podendo ocorrer vazamentos de água em estruturas como paramentos, taludes e ombreiras. Em cinco barragens foram identificadas deformações e recalques, como trincas e abatimentos.
Em 16 estruturas se observaram processos de deterioração dos taludes e paramentos das barragens, como falhas de proteção, crescimento de vegetação arbustiva, erosões superficiais, ferragens expostas, sulcos e erosões. Um total de nove estruturas foram descritas com problemas nos sistemas de drenagem superficial, entre eles trincas, assoreamento ou abatimentos.
Se uma catástrofe como um rompimento se repetir em uma dessas 23 estruturas, o risco ambiental é considerado “muito significativo” pela ANM em 10 casos, e “significativo”, em 11 situações, por ser a área possivelmente afetada de interesse ambiental relevante ou áreas protegidas em legislação específica, aponta a ANM.
Os possíveis impactos socioeconômicos são considerados “altos” em 13 barramentos interditados pela ANM, uma vez que se identificou “alta concentração de instalações residenciais, agrícolas, industriais ou de infraestrutura de relevância socioeconômico-cultural na área afetada a jusante (abaixo) da barragem”, informa a agência.