Em uma rua do Bairro Goiânia, Região Nordeste de Belo Horizonte, uma escola chama a atenção pelo projeto pedagógico inspirado na vida e na obra de uma mineira que foi da dura realidade de catadora de papel a escritora reconhecida internacionalmente. Na instituição municipal estudam 680 alunos do 1° ao 4° ano, do 6° ao 9° e da Educação para Jovens e Adultos (EJA), em um projeto que nasceu da vontade de transformar estudantes em leitores e mostrar que a trajetória de Carolina Maria de Jesus (1914-1977), que se tornou autora traduzida em 13 idiomas, pode servir de inspiração para transformar vidas.

 

A coordenadora pedagógica da escola, Alexandra Aparecida Eustáquio, explica que a instituição já funcionava no prédio como uma espécie de anexo da Escola Municipal Honorina Rabello, localizada no mesmo bairro. “A escola foi crescendo, e este prédio estava vazio. Era um prédio de escola estadual. A Honorina já usava o espaço para aulas de Educação para Jovens e Adultos, emprestando as salas. Quando (a escola) precisou abrir o 6º e 7º anos, lá não tinha espaço e foi ocupando este prédio”, relata.

 

Ela diz que a procura por vagas na escola Honorina Rabello aumentou no pós-pandemia. “A comunidade precisava de vagas. A escola foi se tornando quase independente, funcionando em três períodos: manhã, tarde e noite. Começamos a trabalhar na perspectiva de virar outra escola, desvinculada da Honorina Rabello.”

 

Nesse processo, segundo ela, era preciso escolher um nome para a nova unidade. Os estudantes da EJA, então, sugeriram o nome de Carolina Maria de Jesus. “A história da Carolina é muito parecida com a da comunidade, com os alunos da EJA”, reflete a coordenadora.

 

O nome sugerido foi votado e aprovado. “Para nós, foi uma alegria, porque a trajetória da Carolina é de superação. É uma mulher negra, favelada, com uma história de luta e vitória. Muitos dos nossos alunos têm histórias parecidas, se identificaram”, resume.

 

"Em todos os eventos este ano, tentamos homenageá-la de alguma forma ou contextualizá-la para a comunidade. A partir disso, fizemos um planejamento de aulas"

Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press


Vida e obra


Desde o início, a escola propõe aos estudantes trabalhos e dinâmicas voltados para a vida e obra da escritora mineira. “Já tínhamos a ideia de querer trabalhar as questões étnico-raciais, o antirracismo. É um grupo que gosta dessa temática, desse trabalho. Os professores de língua portuguesa trabalham as obras dela, principalmente 'Quarto de Despejo' e 'Diário de Bitita'.”

 

A coordenadora conta que no kit literário, os alunos da EJA receberam um exemplar da obra mais conhecida de Carolina, “Quarto de Despejo”, em que ela narra seu dia a dia na favela do Canindé, em São Paulo, entre os anos de 1955 e 1960.

 

Na quadra da escola há uma imagem da autora, feita em grafite, na parede. “A gente fica tentando respirar Carolina Maria de Jesus. Em março, ela faz aniversário, e comemoramos aqui, com os alunos. Estamos sempre buscando contar essa história, para os meninos não esquecerem.”

 

Outra iniciativa que envolveu os estudantes foi a criação do logotipo da escola. “Os meninos é que desenharam. Mandamos confeccionar a bandeira da escola com o nome e a imagem dela. Temos tentado trazer a história dela todos os dias, no dia a dia.”

 

A coordenadora conta que a inspiração na vida da escritora é usada nas mais diversas situações. Em uma oportunidade, por exemplo, não havia muito recurso financeiro para a realização da Feira de Cultura. “Conversamos com os professores e lembramos que a Carolina trabalhava com papelão, era catadora. Pedimos que eles usassem a criatividade. Foi um trabalho muito bacana, usaram muito material reciclável. A história dela está impregnada na gente.”

 

 

Alexandra pontua que o trabalho maior fica com os professores, que apresentam as obras da escritora aos alunos. Porém, a memória dela é evocada em todos os momentos possíveis. “Uma escola que tem esse nome não pode esquecer da leitura. É uma coisa que privilegiamos também, os projetos literários. Uma escola com esse nome não pode ser racista. Estamos sempre levantando essa bandeira.”

 

Em 30 de junho, quando as estátuas de Carolina Maria de Jesus e da antropóloga Lélia Gonzalez foram inauguradas no Parque Municipal Américo Renné Giannetti, no Centro de BH, alunos da escola participaram da homenagem. A coordenadora conta que conversou com a filha da escritora, Vera Eunice, que também esteve na inauguração. “Falamos com ela a respeito da escolha do nome. Que temos a mãe dela como uma referência. Queríamos que ela viesse (conhecer a escola)”, afirma.

 

A iniciativa mais recente é o lançamento, neste mês, da primeira edição do “Bitita Notícias”, um jornal feito por alunos e professores da escola. O nome é uma referência ao apelido da escritora e, segundo o editorial da publicação, pretende “registrar o que de mais importante aconteceu, acontece e está por acontecer” na escola.

 

A intenção da instituição de ensino é que, em 2025, as edições sejam trimestrais ou semestrais. “Por falta de verba, apenas uma edição foi impressa, em folha A3 colorida, por sala.” Há ainda uma versão em PDF distribuída para os estudantes e a comunidade.

 

Dificuldades com a escassez de verba

 

A coordenadora pedagógica Alexandra Aparecida Eustáquio acredita que a representatividade da escritora Carolina Maria de Jesus pode ajudar a transformar a vida dos alunos. “A história dela é muito emocionante. Cada um absorve de uma maneira, mas para eles verem que é possível alcançar os sonhos, buscar o que eles sonham, já que muitos não têm perspectiva.”

 

Um entrave, porém, tem atrapalhado que essa iniciativa seja expandida. “Temos muitas dificuldades, principalmente com a questão material. Até hoje não recebemos verba da prefeitura. Queremos fazer várias coisas, mas ficamos impedidos por isso. Temos sido criativos. Eu brinco que na pobreza é que somos mais criativos.”

 

Ela diz que o processo de desvinculação da escola Honorina Rabello foi demorado e que a documentação só ficou pronta no início do ano. “Mas até hoje nossa caixa escolar está vazia. Os professores propõem levar as crianças a um museu ou à Biblioteca Pública Estadual, por exemplo, para terem mais contatos com as obras literárias.” A biblioteca da escola tem um acervo reduzido.

 

“Tudo o que a gente podia fazer, fizemos. A documentação da nossa escola está toda pronta e não temos verba para nada. O Honorina Rabello é que nos auxilia até hoje, com transporte escolar de alunos que vêm da Vila da Luz, Jardim Vitória, e complementação de merenda”, afirma, destacando que a falta de recursos inviabiliza também a reforma no prédio.

 

Exemplo iluminado: os alunos Vitória Sales e Davy Oliveira contam o que aprenderam com a escritora

Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press


Regularização


Em nota, a Secretaria Municipal de Educação (Smed) sustenta que a escola recebe recursos via repasse à outra unidade a que já esteve vinculada. “Todos os valores de custeio das atividades da unidade de ensino, como merenda, transporte escolar e insumos para as aulas, são repassados para o caixa escolar da Escola Municipal Honorina Rabello, que transfere a parte correspondente à Escola Municipal Carolina Maria de Jesus. Dessa forma, a unidade não esteve em nenhum momento desassistida.”

 

A pasta diz ainda que o caixa escolar próprio da unidade está em fase final de constituição. “A previsão é que os trâmites sejam concluídos neste mês e que em novembro o caixa escolar esteja constituído, o que permitirá o recebimento direto dos recursos repassados pela Smed.”

 

 

Plantando sementes


Professora de literatura e língua portuguesa na escola, Vanessa Cristina explica que, inicialmente, a ideia era fazer com que Carolina Maria de Jesus fosse o cerne dos projetos na unidade. “Em todos os eventos este ano, tentamos homenageá-la de alguma forma ou contextualizá-la para a comunidade. A partir disso, fizemos um planejamento de aulas.” A iniciativa foi estendida às demais disciplinas. “Fizemos um plano de aula que contemplasse a história dela e as várias vertentes. Tem a questão da poesia, mas também de ela ter sido catadora. Assim, a gente pode trabalhar com reciclagem, por exemplo. Nas aulas de língua portuguesa e literatura, estudamos a biografia. Então, a maioria dos meninos sabe de cor quem é Carolina Maria de Jesus”, conta, acrescentando que os alunos fizeram poemas para homenagear a escritora.

 

“Os trabalhos envolveram todas as séries, até a EJA, com o objetivo de divulgar a história dela para os estudantes e a comunidade”, acrescenta. Uma exposição foi feita para que os trabalhos fossem apresentados. “Houve trabalhos lindíssimos. A EJA fez a representação do ‘Quarto de Despejo', usando objetos. Tivemos pintura, contação de histórias. Alguns alunos fizeram várias estações, em uma sala, que contavam a história dela.”

 

Carolina Maria também se aventurou na música, como cantora e compositora. “Sempre que possível, tentamos lembrar os alunos e a comunidade das similaridades que existem entre a história dela e as de muitas mulheres da comunidade, de mãe solo, que cuidou sozinha dos três filhos. Os meninos conseguiram perceber essa identificação e que é possível, mesmo dentro desse contexto social vulnerável, ter um olhar poético para a vida e tirar disso alguma coisa voltada para a arte”, conta a professora.

 

“A memória dela aqui é muito viva. Eles conseguiram absorver, admirar, projetar em mulheres que eles convivem. Ter um outro olhar sobre a questão do preconceito, pelo fato de ela falar do jeito que falava e escrevia. Apesar de usar vocabulário, às vezes, até rebuscado, ainda cometia alguns erros de ortografia e gramaticais. A essência não estava nisso, a potência dela como poetisa e mulher estava em outras coisas. Acho que ajuda nessa identificação”, completa.

 

 

A professora conta que, atualmente, os alunos estão escrevendo um livro com temática indígena. “Eles dizem que não sabem escrever corretamente, sentem vergonha. A gente sempre lembra da Carolina. Se ela fosse se levar por essa questão da falta ou defasagem da escolarização, não teria feito a carreira que fez. Isso também ajuda a desbloquearem para escrita.”

 

A educadora acredita que o projeto está “plantando sementes” tanto em relação à literatura quanto para a vida dos alunos. “Acho que é uma semente muito real, porque também atingiu a comunidade. Foi o mais surpreendente. Quando fizemos a feira e as famílias vieram, em uma das salas tinham dados estatísticos em relação às mães. Tinha gente que saía chorando, elas se identificavam. É uma realidade muito forte. Até os meninos ficaram sensibilizados em relação a isso”, lembra.

 

Para a professora, esses resultados mostram que o projeto pedagógico faz sentido. Ela ressalta a grandeza da homenageada e o fato de a escola ser pequena, nova, mas já ter certo destaque na rede municipal. “O nome já chama a atenção, as pessoas procuram se informar sobre os projetos desenvolvidos aqui. Acho que isso tem incentivado outras escolas. Nossa escola foi pautada para transformar alunos em leitores.”

 

Ela diz que também trabalha em outra instituição de ensino e que, na prática, é muito difícil fazer com que os estudantes adquiram o hábito da leitura. “E, por incrível que pareça, a gente consegue abrir o livro e passar 50 minutos lendo. Coisa que, às vezes, não conseguimos em outras escolas. Acho que isso é fruto da valorização da literatura através da figura da Carolina. Faz muita diferença.”


Inspiração


Davy Miguel Oliveira, 12 anos, do 7° ano, diz que conheceu a autora quando se transferiu para a escola. Sobre o que mais aprendeu em relação a ela, o menino cita o racismo. “Ela conseguiu enriquecer, mas por causa do preconceito, a sociedade parou de comprar os livros dela, deixando ela pobre de novo. Isso é muito ruim, porque era uma ótima escritora. Uma coisa interessante é que os livros dela tem alguns erros de português, porque ela não sabia escrever direito, mesmo assim fizeram muito sucesso.”

 

“Acho muito legal a escola ter o nome dela, porque era uma mulher negra, periférica, que viveu a vida toda lutando contra o racismo e a pobreza”, diz o aluno, que relata um trabalho inspirado na vida de Carolina sobre mulheres que fazem dupla jornada. “Ela teve várias profissões ao longo da vida e sempre teve que se virar sozinha com a família dela.”

 

O menino diz que usou como exemplo a própria mãe. “A gente tinha que escolher uma pessoa muito especial que tivesse dupla jornada. Escolhi minha mãe, que é babá e cuidava de casa, já que meu pai mora em outra cidade. Falei sobre a dificuldade dela de conciliar o trabalho com os deveres de casa.”

 

Ele conta que no dia da apresentação, a mãe não pode estar presente. “Mas eu tirei foto, mostrei pra ela. Ela gostou.” A apresentação ganhou ainda elogios da professora. “Ela me deu dois pontos a mais, porque disse que a apresentação foi muito boa. Depois disso, a minha mãe me levou para passear, porque disse que estava orgulhosa de mim.”

 

Vitória Sales, 11 anos, da 6ª série, diz que já tinha ouvido falar de um dos livros da autora. “Ela faz parte da nossa cultura. Aprendi muito sobre a história dela, onde nasceu, como foi a vida, que morou na favela, conseguiu estudar.” Ela diz que a trajetória da autora a inspira. “Uma das carreiras que quero seguir é ser escritora. Gosto muito de ler e escrever histórias.”

 

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Quem foi Carolina Maria de Jesus?

Escritora, compositora, cantora e poetisa, nasceu em Sacramento, no Alto Paranaíba, em 14 de março de 1914. Enfrentou desde cedo as dificuldades da vida nas favelas de São Paulo, onde foi morar em 1947. Apesar das limitações educacionais, demonstrou notável habilidade literária, capturando a realidade das camadas mais marginalizadas da sociedade brasileira. Seu primeiro livro, “Quarto de Despejo: Diário de uma favelada” (1960), é um relato autobiográfico que revela as duras condições de vida enfrentadas por ela e sua família. A obra, produzida com o auxílio do jornalista Audálio Dantas, se tornou um sucesso internacional, traduzida para 13 idiomas e distribuída em mais de 40 países. Em vida, Carolina publicou cinco livros que venderam mais de 1 milhão de cópias. Foram publicados outros quatro livros póstumos. Morreu em 13 de fevereiro de 1977, aos 62 anos, vítima de uma crise de insuficiência respiratória.

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