A líder comunitária Roseni Aparecida Ambrósio Silvério, de 46 anos, tinha as mãos tremendo ao passar pelo ponto de encontro de emergência próximo ao centro de Brumal, distrito do município de Santa Bárbara, na Região Central de Minas, na última quinta-feira (31/10). Dominik Almeida, de 3, perguntava à mãe, Ana Paula Almeida: “A sirene é aqui?”. O menino e a irmã Lavínya, de 5, não desgrudam da mãe. Dois dias antes, na terça-feira (29/10), alarme do sistema de emergência da barragem de contenção de rejeitos Córrego do Sítio (CDS) II havia sido acionado indevidamente, assustando os moradores. Em caso de rompimento da estrutura, os rejeitos podem atingir até 5 mil pessoas que vivem no entorno. Apesar de ter sido um alarme falso, o medo foi e segue real.

 

 

“Na hora vem a memória da sirene, da correria, e a gente lembra de Mariana e Brumadinho. Não queremos que chegue a esse ponto”, diz Roseni, referindo-se às duas barragens de mineração que se romperam, respectivamente, em 2015 e em 2019, em desastres que, juntos, provocaram 291 mortes. “Uma pessoa da comunidade infartou. Outros tropeçaram e se feriram no meio do desespero. Imagine o que é escutar essa sirene e correr como se fosse a sua única chance de sobreviver”, narra Roseni, sobre o alarme falso de 29 de outubro.

 

A AngloGold Ashanti, empresa responsável pela barragem II do Complexo Córrego do Sítio (CDS II), lamentou o acionamento equivocado, pediu desculpas aos moradores em nota e afirmou que está investigando os motivos do disparo indevido. O falso alarme será apurado também pelo Ministério Público de Minas Gerais (MPMG). Por meio da Promotoria de Justiça da Comarca de Santa Bárbara, o MPMG contatou as autoridades competentes e tomou medidas para apurar o incidente.

 



 

Mas, para Daniela Ferreira, de 37, isso não é suficiente. “Esta já é a sexta vez. Depois, a empresa simplesmente solta uma nota de esclarecimento e pede uma desculpinha fajuta. E os transtornos que a gente passa? E a correria para sair das nossas casas, correr atrás de filho, tirar a mãe de dentro de casa?”, questionou, emocionada.

 

Silvana e maria mantêm documentos e fotos em uma bolsa pronta para eventual fuga

Leandro Couri/EM/D.A Press


Vídeos feitos no dia registraram crianças chorando e idosos passando mal. Deritina Ferreira, mãe de Daniela, de 81, que é cardíaca, foi uma das pessoas que precisaram de atendimento médico devido ao pico de pressão causado pelo susto. Ao lembrar do momento em que ouviu o alarme, a irmã de Daniela, Silvana Ferreira, de 41, se emociona. Ela conta que colocou a mãe e a irmã no carro e acelerou para a escola em busca da filha, Nicole, de 8. Ali, encontrou Ana Paula, que também correu para buscar o filho.

 

 

O sistema completo de comunicação de emergência das barragens da unidade CDS conta com 23 sirenes instaladas e 45 pontos de encontro, sendo oito em Barão de Cocais e 37 em Santa Bárbara. Segundo Silvana, nem todas as sirenes foram acionadas e, por isso, as professoras da escola não sabiam da situação. As duas mães contam que tiveram que tirar os filhos praticamente à força do local para irem ao ponto de encontro de emergência. Lá, esperaram cerca de 40 minutos até que a notícia de que era um alarme falso chegou, passada por amigos, via celular. Segundo elas, ninguém da Defesa Civil, da Anglo ou das forças de segurança foi avisar que estava tudo bem. Foram momentos de terror e angústia, uma vez que familiares e amigos ficaram para trás.

 

“Para nós, moradores, só fica o constrangimento, o transtorno e os danos psicológicos e morais”, afirma Daniela, indignada. Silvana conta, ainda, que enquanto passava apressada com a família, acreditando que a barragem havia se rompido, vizinhos riram da situação como se ela fosse “louca”.

 

Segundo ela, parte da população de Santa Bárbara e Barão de Cocais já não acredita nas sirenes depois de tantos acionamentos indevidos. “A sirene toca e muitos nem saem de casa. Eles ficam em casa vendo todo mundo que tem medo real correndo. Estes são os que vão morrer aí na lama se acontecer o pior”, relata. “É melhor ser tachada de louca do que estar morta”, completa.

 

 

Daniela, Roseni, silvana e Ana paula diante da placa que consideram errada em rota de fuga, por estar voltada para a barragem. Mineradora afirma que posicionamento é correto

Leandro Couri/EM/D.A Press


COTIDIANO de aflição

A família acredita que não teria sobrevivido se a barragem tivesse se rompido de verdade, devido à proximidade entre a casa onde vive e a CDS II. Daniela mora com a mãe, Deritina, o irmão e o filho na comunidade de Carrapato, em Santa Bárbara, a 400 metros da barragem. Ao lado, mora a irmã, Silvana, com o marido e três filhos. Eles estão em uma Zona de Autossalvamento (ZAS), onde cada pessoa deve fugir sozinha em caso de tragédia, pois não há tempo de equipes de resgate as socorrerem.

 

Dos fundos do terreno, Daniela consegue ver partes da barragem. Ela conta que já perdeu as contas de quantas vezes se levantou de madrugada para olhar a estrutura e verificar que se a família ainda estava a salvo: “A gente não dorme, não tem paz”.

 

Em frente à residência onde mora tem uma placa de “Rota de fuga”, indicando o caminho para um ponto de encontro de emergência. Entretanto, a seta aponta a direção da própria barragem, levando os moradores a se sentirem inseguros em seguir a sinalização. “Se houver realmente um rompimento, acho que vai pegar o ponto de encontro e tudo no caminho. Não tem como a gente se salvar. Para mim, isso aí é uma tragédia anunciada. Daqui a pouco nós seremos a próxima Bento Rodrigues. Estamos em uma zona de extermínio”, desabafa Daniela. “Eu vou ser sincera, vocês estão correndo risco de morrer aqui junto com a gente se ela se romper, e essa reportagem nem chega a lugar nenhum do Brasil”, completa.

 

 

A mulher ainda afirma que, se tivesse condições financeiras, já teria saído do local. Para ela, a empresa e o poder público não dão a devida atenção para a situação da comunidade. “O que eu sinto é que nós não temos valor algum para eles. Nós somos vidas na hora de pagar impostos, pagar dívidas, cobranças, mas na hora do nosso direito, não existimos”, diz.

 

Questionada sobre a rota e o ponto de encontro, a AngloGold afirmou que eles são adequados. “A distância até o ponto de encontro 13 é de 100 metros, percorrida em aproximadamente 1 minuto e 23 segundos, permitindo que o morador se desloque com tempo suficiente. Dessa forma, a escolha do PE13 como ponto de evacuação é adequada”. A mineradora ressaltou também que “definitivamente, esta não é uma possível área de inundação”.

 

 

Mapa

Soraia Piva


DÚVIDAS E COINCIDÊNCIAS


Daniela e Silvana contam que na manhã de terça-feira em que a sirene soou viram que havia pessoas no terreno da CDS II e foram até o local para se informar sobre o que estaria acontecendo. Lá, encontraram outros moradores, mas não conseguiram informações. Então, se deslocaram até o centro de Brumal, a cerca de 4,5 quilômetros de distância, para resolver pendências. No caminho de volta, passaram pelo carro que viram no terreno da mineradora e, segundo elas, o alarme de emergência tocou cinco minutos depois.

 

Elas acreditam que não se trata de uma coincidência e reclamam da falta de transparência da AngloGold com a população local. “Eu acho que eles devem esclarecimentos para a população, nós merecemos respostas. Só porque a gente não é ninguém do poder público, a gente não tem o direito de saber o que que está acontecendo?”, questionou Daniela, revoltada.

 

Desde aquele dia, toda a família tem dificuldade de dormir. Silvana apresentou quadros de ansiedade e crise de pânico e a filha passou a dormir em um colchão no chão do quarto da mãe, pois tem medo de ficar sozinha. Ao Estado de Minas , a AngloGold Ashanti informou que se tratava de uma atividade de rotina de manutenção, com poda de vegetação e limpeza. Além disso, esclarece que o fato de ter uma equipe no local não tem nenhuma ligação com o acionamento indevido das sirenes.


A VIDA EM UMA BOLSA

 

Quem também viveu momentos de desespero em 29 de outubro foi Maria Crisostomo, de 81, e sua filha Silvania Crisostomo, de 57, que moram em Brumal. Elas acreditaram que a barragem havia se rompido e estavam em perigo. Maria estava a caminho de alimentar suas galinhas quando ouviu a sirene de emergência. “Só corri, fechei a porta e peguei minha bolsa”, conta. Um vizinho se disponibilizou a levá-la até o ponto de encontro de carro, mas antes de ela sair de casa, a notícia de que era alarme falso chegou. “Nós vimos as mães saindo correndo. Minhas filhas e netas saíram correndo no meio dessa bagunça. O que você acha que fica no coração de uma avó? De uma mãe?”, pergunta a idosa.

 

Já Silvania estava limpando a cozinha depois do almoço quando chegou o aviso. “Meu marido estava dormindo. Eu fiquei sem saber o que fazer. Quando saí à rua, vi todo mundo correndo desesperado. No ponto de encontro, todo mundo estava em pânico”, relata. Ela conta ainda que mantém uma bolsa com documentos, notebook e as fotos da família sempre preparada para uma situação de emergência desde o rompimento da Barragem do Fundão, em Mariana, na Região Central de Minas, em 5 de novembro de 2015. Elas perderam um familiar em Bento Rodrigues, subdistrito destruído pela lama na tragédia, que completou nove anos ontem.

 

“A gente já sabia que tinha essa barragem aqui, mas não tinha medo dela, sabe? A gente não tinha noção do que era uma barragem de rejeitos. Depois do que aconteceu em Bento Rodrigues, eu comecei a me alertar. Tive síndrome do pânico e ansiedade”, diz Silvania. Entre as fotos, estão recordações de momentos em família, como viagens e casamentos. “Se algum dia acontecer com a gente, vou estar preparada para pegar a bolsa e sair. Podemos perder o lugar onde moramos, mas a nossa história a gente não vai perder, porque o mais importante do ser humano é a história”, defende.

 

Maria, por sua vez, diz que a presença da mineradora na região gerou muitos empregos, mas que não compensa a insegurança de viver tão próxima de uma barragem. “Para ser sincera, a riqueza vai embora e fica só o medo e insegurança com a gente. Só isso que sobra para nós, os pequenos. Eles geram riquezas, e o que é que eu recebo com isso? Nada, só o pânico”, reflete.

 

vista do reservatório, que está em processo de descomissionamento: ansiedade é constante para as famílias que moram na zona de autossalvamento, abaixo da estrutura

Leandro Couri/EM/D.A Press


Seis toques indevidos e um rastro de traumas

 

Ao longo dos últimos cinco anos, as sirenes da barragem do Complexo Córrego do Sítio, da AngloGold Ashanti tocaram seis vezes em Barão de Cocais e Santa Bárbara, na Região Central de Minas. Todas eram alarmes falsos. “A gente está morrendo um pouquinho a cada dia. porque o estado psicológico está abalado. Não tenho palavras, não tem como gritar, não tem como pedir socorro. Não temos para onde ir”, disse Silvana Ferreira, que mora no distrito de Brumal, no entorno da barragem CDS II, emocionada. A estrutura não opera mais, está sendo desfeita e, segundo a empresa, é segura. De acordo com o boletim mensal da Agência Nacional de Mineração (ANM) divulgado em 7 de outubro, a CDS II passou do nível “baixo”, em agosto, para “médio”, em setembro, na Categoria de Risco (CRI). Moradores pedem celeridade no desmonte do barramento.

 

Uma decisão da Justiça mineira, proferida em 2023 em pedido de tutela antecipada, determinou que a mineradora não acionasse indevidamente o sistema de alerta para os moradores do município de Santa Bárbara, sob pena de multa de R$ 500 mil para cada alarme falso. Além disso, o Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) informou que, em 3 de outubro deste ano, ajuizou uma ação contra a empresa “pleiteando a adoção de medidas que mitiguem ou reponham os impactos e danos causados pela situação atual de reiterada violação de direitos humanos e fundamentais e do bem-estar das comunidades”, incluindo os acionamentos indevidos de sirenes. O pedido foi negado pela Justiça em primeira instância, e o Ministério Público está elaborando recurso.

 

Para Silvana, a pior de todas as falsas emergências foi em 2021, quando o pai ainda era vivo, em um dia de muita chuva, o que fazia a situação mais assustadora e dificultava qualquer mobilização. Na ocasião, as sirenes tocaram duas vezes em um intervalo de poucas horas. Depois disso, o pai teve depressão, que, segundo a filha, teria sido causada pela impossibilidade de tirar a família da zona de perigo, e morreu em decorrência de um uma parada cardíaca. “Estou indignada com tudo. Muita gente tem esperança, mas a única coisa que eu tenho hoje em dia é fé, porque o único ser que eu sei que pode fazer algo por nós hoje é Deus”, diz Silvana.

 

Roseni Silvério era moradora da comunidade, mas se mudou para uma área fora da zona de perigo há pouco tempo. Segundo ela, a sensação era de que estava torturando os filhos quando morava na região. “Pensei: nem que seja a última coisa que eu faça, meus filhos não vão morrer aqui desse jeito”, lembra. Desde 2022, quando houve um acionamento indevido, a filha Maria Eloah, hoje com 13 anos, convive com o trauma. Roseni afirma que a menina perdeu a infância e nunca mais foi a mesma. Já o filho, Matheus Emanuel, de 9, tem transtornos alimentares, relacionados à ansiedade.
Hoje, Roseni integra o Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM) e luta pelo direito dos moradores de Santa Bárbara e Barão de Cocais. “O que a gente vê é um relacionamento abusivo, porque as pessoas não têm condição de sair daquele lugar. Mas nós não vamos desistir”, afirma. No último sábado (2/11), dezenas de moradores da região se reuniram em manifestação na estrada que vai para o distrito de Barra Feliz, na área de alagamento da barragem, e seguiram até a portaria da CDS II. Os manifestantes pediram esclarecimentos da empresa e dos órgãos do estado sobre o acionamento indevido. Além disso, exigiram o descomissionamento célere da barragem, equipe de saúde especializada em recuperação de traumas e garantia de moradia temporária para as famílias e reparação integral dos danos e impactos socioeconômicos.

 

“Nossas crianças tiveram suas infâncias interrompidas pelo medo. Meninas menstruando aos 9 anos, com episódios de crise de pânico laudados por profissionais e que não poderiam permanecer na residência. Mas que até hoje não tiveram seus direitos resguardados”, disse Roseni, inconformada. Na segunda-feira (4/11), Silvana Ferreira e Roseni foram até a Prefeitura de Santa Bárbara para solicitar a mudança da família para um local seguro. Lá, Silvana recebeu a informação de que era necessário agendar uma reunião para tratar do assunto, mas o agendamento foi negado. Enquanto aguardavam, oficiais da Guarda Municipal solicitaram que elas deixassem o local. Segundo Roseni, eles alegaram que elas ameaçaram invadir o gabinete do prefeito : “Estávamos lá pacificamente e nos trataram como bandidos”, disse a líder comunitária. “Mas tiveram reunião com representantes da AngloGold. Estão brincando com nossas vidas”, afirmou Silvana. A Prefeitura de Santa Bárbara disse que não se pronunciará sobre o assunto.


A ESTRUTURA


Com 82 metros de altura e 540m de comprimento, a Barragem CDS II tem capacidade para 9,8 milhões de metros cúbicos de rejeitos de mineração – praticamente a mesma quantidade que vazou da estrutura da Vale que se rompeu em Brumadinho, em 25 de janeiro de 2019. O barramento contém elementos tóxicos que podem causar uma catástrofe ambiental e social caso cheguem aos mananciais da região, como o Rio Conceição, sendo os mais críticos para a saúde e o ecossistema o cianeto de sódio e o ácido sulfúrico.

 

Em junho de 2023, foram identificadas rachaduras de até 300m na estrutura da CDS II, o que deixou os moradores da região inseguros. À reportagem, a mineradora garantiu que, atualmente, não há infiltrações, trincas ou falhas na estrutura. A suspensão das atividades na barragem foi anunciada em agosto de 2023. Agora, ela se encontra em processo de descaracterização – o que significa desmonte e reintegração do espaço à natureza –, que deverá ser concluído até 2026.

 

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OUTRO LADO


Segundo a AngloGold Ashanti, as barragens da unidade Córrego do Sítio (CDS) estão seguras e estáveis. Elas contam com monitoramento 24 horas, com câmeras e instrumentos de controle, e passam por inspeções constantes, além de contar com Declaração de Condição de Estabilidade (DCE) emitida por auditoria externa, afirma a empresa. Na última quarta-feira (30/10), a empresa recebeu a visita de representantes da Agência Nacional de Mineração (ANM), da Fundação Estadual do Meio Ambiente (Feam) e defesas civis municipais e estadual. No mesmo dia, afirma ter iniciado visitas de porta em porta prestando esclarecimentos para a população. Diz ainda que oferecerá apoio psicológico.

 

Por sua vez, a Defesa Civil estadual informou que ajudou a orientar a população sobre o equívoco da mineradora e reafirmou o compromisso com a segurança de todos.

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