No município de Araçuaí, no Vale do Jequitinhonha, no último dia 9 de outubro (9/10), os termômetros atingiram 42,8ºC, temperatura mais alta no estado e o segundo maior índice no Brasil em 2024, ficando atrás apenas de Oeiras (Piauí), com 43,1ºC. Em 19 de novembro de 2023, a cidade mineira enfrentou 44,8ºC, recorde histórico no Brasil, de acordo com o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet). Em São Romão, no Norte de Minas, houve o registro de 43ºC, em 25 de setembro do ano passado, uma das marcas mais elevadas do país em 2023.
O cenário de Araçuaí e São Romão se repete em várias cidades pelo território nacional, onde os moradores têm se acostumado com termômetros acima de 40ºC, confirmando que o aquecimento atingiu as regiões brasileiras nos últimos 60 anos. Nesse período, a elevação da temperatura foi maior do que a média global, chegando até 30ºC na média das temperaturas máximas diárias em algumas regiões brasileiras, aponta o relatório Mudança do Clima no Brasil – síntese atualizada e perspectivas para decisões estratégicas.
O estudo, lançado na última quarta-feira (6/11), em Brasília, é um recorte para o Brasil do recente relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) e de outros estudos científicos atuais, elaborados em conjunto pelo Ministério de Ciência, Tecnologia e Informação com as organizações sociais da Rede Clima, o WWF-Brasil e o Instituto Alana.
De acordo com o levantamento, desde o início da década de 1990, o número de dias com ondas de calor no Brasil subiu de sete para 52, até o início da década atual. “Eventos extremos, como secas severas e ondas de calor, serão mais frequentes, com probabilidade de ocorrência de eventos climáticos sem precedentes”, aponta o relatório.
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CONSEQUÊNCIAS NO CAMPO
Os mineiros já sentem diretamente os reflexos do aumento da temperatura, decorrente das alterações do clima, que se verifica com mais intensidade em regiões semiáridas, como Norte de Minas e os vales do Jequitinhonha e do Mucuri. Mas, as ondas de calor também são sentidas por moradores de outras partes do estado e em Belo Horizonte. A elevação da temperatura traz consequências para a agricultura e a economia, afetando a disponibilidade de recursos hídricos.
“O aquecimento global impacta a vida das pessoas. No ano passado, tivemos duas fortes ondas de calor, com temperaturas altíssimas como ocorreu em Araçuaí. Tivemos temperaturas quase ou acima de 40 graus em várias regiões do estado. Isso acaba prejudicando, principalmente o pessoal mais idoso e as crianças, com a baixa umidade relativa do ar. Então, o impacto é severo”, afirma o meteorologista Ruibran dos Reis, do Climatempo.
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Ele destaca que a elevação da temperatura tem provocado “um impacto enorme” na agricultura do estado, afetando duramente a produção de café. Também provoca prejuízos na pecuária, com a morte do gado por nas regiões mais castigadas pela estiagem prolongada.
Ruibran salienta que, junto com o aumento da temperatura, é enfrentada a redução dos recursos hídricos. Ele lembra que pesquisa divulgada recentemente apontou uma diminuição da vazão do Rio São Francisco em cerca de 60% nas últimas décadas. “Eu já tinha verificado isso há mais de 30 anos, (quando) o Rio Paracatu e outros rios de Minas estavam diminuindo a vazão. Então, o impacto do aquecimento global está se fazendo muito grande aqui no estado, no aumento da evaporação e no aumento de dias sem chuvas”, descreve o especialista.
Como medidas para amenizar os impactos das mudanças do clima e elevar a disponibilidade hídrica, Ruibran sugere a recuperação de nascentes e o plantio de árvores. “Assim vai reter boa parte do dióxido carbônico emitido pelos carros e pelas indústrias. A plantação de árvores também vai diminuir as temperaturas nas grandes cidades ou até mesmo cidades médias”, pontua. “Isso, infelizmente, não está acontecendo”, observa. O meteorologista lembra ainda que o Brasil e Minas Gerais enfrentam problemas com o desmatamento e as queimadas.
DESMATAMENTO E QUEIMADAS
Na mesma direção, o ambientalista Apolo Heringer Lisboa, idealizador do Projeto Manuelzão, afirma que o desmatamento é o grande vilão no agravamento da escassez hídrica diante das mudanças climáticas e do aquecimento global. “O desmatamento desconfigura o ciclo hidrológico. Temos um desmatamento exponencial, sobretudo para fornecer minério, fornecer alimentos para a Europa, para Estados Unidos, Japão, China. O desmatamento aqui é para exportação de commodities, um desmatamento generalizado, uma monocultura extensiva e isso destrói o clima, destrói as fontes de água”, lamenta.
Ele salienta que, ultimamente, um outro problema passou a se somar ao desmatamento e agravar os impactos das mudanças climáticas: a exploração desenfreada de água do subsolo, por meio de abertura de poços tubulares, sobretudo na região do semiárido, na região cárstica. “Estão criando um problemão, uma pressão negativa no solo, puxando água dos rios, puxando água de reservas e das lagoas”, descreve o ambientalista.
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A meteorologista Anete Fernandes, do Inmet, explica que a análise dos impactos das mudanças climáticas é complexa e “requer estudos de uma série de dados”. Ela ressalta que a elevação da temperatura também está associada à “variedade climática”, lembrando que, no ano passado, ocorreram várias ondas de calor em função da atuação do fenômeno El Niño.
Anete assinala que ao se fazer uma comparação entre 1991 e 2020 com um espaço de tempo igual (30 anos) anterior, de 1961 a 1990, vai se verificar que as temperaturas mínimas em Belo Horizonte aumentaram. Segundo ela, o crescimento das temperaturas mínimas na capital mineira está vinculado à mudança na ocupação do solo, a chamada “ilha de calor”.
“Se a gente comparar, por exemplo, as médias (de temperatura) de 1991 a 2020 com (o período) de 1961 a 1990, a gente verifica que houve um aumento. Mas, isso está associado ao efeito da ilha de calor, diretamente relacionado à alteração do uso do solo e também à questão da umidade do ar”, relata a especialista.
Por outro lado, a meteorologista afirma que os belo-horizontinos, assim como a população mundial, não estão livres de sofrerem os impactos dos eventos extremos do clima, como chuvas intensas e secas prolongadas.
CENÁRIO PREOCUPANTE
O relatório Mudança do Clima no Brasil – síntese atualizada e perspectivas para decisões estratégicas, baseado em estudos científicos, ainda apresenta projeção sobre os extremos climáticos esperados para os próximos 30 anos. De acordo com os pesquisadores, se o limite do aquecimento global de 20C for atingido, em 2050 os efeitos para a saúde humana e a agricultura serão mais severos. Nesse cenário, a população afetada por enxurradas no Brasil aumentará entre 100 e 200%. Doenças transmitidas por vetores como os da dengue e malária também causarão mais mortes.
A Amazônia, por exemplo, perderá 50% da cobertura florestal pela combinação de desmatamento, condições mais secas e aumento dos incêndios. O fluxo dos rios serão reduzidos e a seca afetaria mais os estados do Amazonas, Acre, Rondônia e Roraima. O ciclo de chuvas no Brasil e na América do Sul também serão afetados.
O Nordeste, onde vivem atualmente quase 55 milhões de pessoas, segundo dados preliminares do Censo 2022, pode ter 94% do território transformado em deserto. Pessoas que vivem nas grandes cidades brasileiras, como Belo Horizonte, ficarão expostas à escassez de água. A estimativa é que no cenário de mais 20C, 21,5 milhões de pessoas em áreas urbanas sejam afetadas pela quebra do ciclo hídrico e do impacto nas safras, em 2050.
Medidas necessárias
Pesquisadores que participaram da elaboração do estudo sobre a mudança do clima no Brasil consideram ser necessário manter o limite de 1,50ºC no aumento médio da temperatura global e não permitir que as emissões de gases do efeito estufa continuem crescendo. Entre os ajustes imediatos a serem feitos no país estão: zerar o desmatamento em todos os biomas, investir em programas de pagamentos por serviços ambientais para incentivar a conservação, migrar para uma agricultura de baixo carbono, por meio de sistemas agroflorestais e integração entre lavoura, pecuária e floresta. A gestão integrada dos recursos hídricos e a adoção de sistemas agrícolas resilientes às mudanças climáticas são apontados pelos cientistas como saídas para garantir as seguranças hídrica e alimentar. Soluções baseadas na natureza são medidas citadas para adaptar as cidades às mudanças climáticas, com o aumento de áreas verdes que tornem as regiões urbanas mais permeáveis com drenagem natural.