“Se eu dependesse só do SUS, estaria perdida.” O desabafo de Edivânia Patrícia de Paula Santos, de 47 anos, exemplifica as dificuldades de muitos pacientes para conseguir um tratamento oncológico na rede pública de Belo Horizonte. Diagnosticada com câncer de mama em estágio avançado, ela teve que desembolsar cerca de R$ 4.500 em exames particulares para driblar a demora do sistema único.

 

 

Meses atrás, enquanto participava da campanha eleitoral, o agora prefeito reeleito Fuad Noman (PSD), 30 anos mais velho que Edivânia, enfrentou a própria batalha contra um tumor, que o levou a prometer aos belo-horizontinos a mesma agilidade e qualidade de atendimento que recebeu na rede particular.

 



 

O diagnóstico do prefeito ocorreu em julho, às vésperas da campanha eleitoral, e em quatro meses ele completou o tratamento em uma clínica particular. Embora a velocidade de resposta dependa do tipo e do estágio do câncer, a importância da corrida contra o tempo é uma unanimidade quando se fala nesse tipo de doença.


Batalha que poderia ter sido perdida para Edivânia se, diante das limitações do SUS, ela não tivesse recorrido a exames particulares e à ajuda da família para bancar os custos, e manter a celeridade do tratamento. “Acho que eles (os gestores do SUS) não têm dimensão de que o atendimento tem que ser para ontem”, afirma.

 


Ao relembrar as agruras na luta contra o câncer de mama, Edivânia oferece um retrato dos obstáculos que o Fuad terá pela frente para cumprir a promessa de ampliar o acesso ao tratamento oncológico em uma cidade onde 3.597 pessoas foram diagnosticadas com algum tipo de tumor apenas no primeiro semestre deste ano, conforme levantamento feito pelo Estado de Minas no Datasus, ferramenta do Ministério da Saúde. Isso sem contar os pacientes de outras cidades mineiras que dependem da capital para terapia.

 

A batalha de Edivânia

Edivânia recorda com clareza de como sua batalha contra a doença começou, às vésperas do Carnaval de 2022, de forma quase casual, durante o autoexame das mamas. “Eu achei um caroço, e já estava bem evidente”, conta.


A suspeita inicial a levou a um posto de saúde no Barreiro, onde o enfermeiro, depois de comprovar o que ela já havia sentido em casa, fez o encaminhamento para mamografia e sugeriu que ela tentasse entrar na fila de desistência para adiantar o exame, marcado para a semana seguinte.

 

 

Com o alerta em mente, a paciente pediu um encaixe na gerência do posto e, por sorte – ou graças à mão de Deus, como ela define – uma vaga foi aberta no mesmo dia. Mas era apenas o início de uma longa jornada. A mamografia apontou a necessidade de uma ultrassonografia, para avaliação mais detalhada.
Ali, Edivânia recebeu o pedido para o novo exame, acompanhado de um conselho da enfermeira para não esperar pelo procedimento no SUS. “Demora muito, e a gente está vendo que seu caso é urgência”, ouviu da profissional.


Foram R$ 240 pelo ultrassom em uma clínica particular, valor reduzido que um especialista conseguiu ao ver a gravidade do caso. O diagnóstico foi preocupante: câncer avançado, grau 4, em ambas as mamas. “O ultrassom estava apontando que eu já estava no final da minha vida”, conta.

 

A consulta com o oncologista, por outro lado, só veio depois de um mês e meio, tempo excruciante para quem carrega um câncer agressivo. Edivânia conseguiu iniciar o tratamento no limite dos 60 dias previstos pela Lei 12.732/2012, que estipula o prazo para pacientes oncológicos. Ainda assim, em Belo Horizonte, a espera pelo tratamento pode chegar a cinco meses, como o próprio prefeito relatou em entrevistas recentes.

 

Da Ansiedade ao acolhimento

A cada entrave burocrático, Edivânia diz que pensava em voltar para o interior para ficar mais perto da família. Foram os agentes de saúde do posto onde ela começou os atendimentos que a acolheram e passaram a acompanhá-la de perto, inclusive depois que seu marido, com quem era casada há 15 anos, a deixou após a primeira sessão de quimioterapia, com três filhas, de 23, 12 e 10 anos. Hoje ela elogia a empatia e o acolhimento das equipes de saúde e dos médicos que a ajudaram em sua jornada.


A complexidade do caso de Edivânia exigiu uma série de exames detalhados antes do início das terapias na Santa de Casa de BH, feitas em conjunto por mastologista e oncologista. Quando os especialistas recomendaram um exame chamado “painel hereditário”, indispensável para entender o histórico familiar e determinar a melhor abordagem de terapia, Edivânia ficou aflita.


O exame, que não é oferecido pelo SUS, custava R$ 3 mil. Sua família então fez uma vaquinha para arrecadar dinheiro, usado também para cobrir outros exames que o SUS não liberava a tempo, como um eletrocardiograma desmarcado às vésperas da mastectomia e que só seria liberado um mês depois, mesmo com a cirurgia já prevista. “Eu, graças a Deus, estou aqui para contar história, mas e os outros que não têm condições de pagar?”, questiona.


Ressonância salvadora

Entre os exames pagos por Edivânia Patrícia de Paula Santos na sua batalha para diagnóstico e tratamento de um câncer de mama agressivo, um foi determinante para evitar um procedimento invasivo e desaconselhável – naquele momento –, legado de uma cirurgia feita em 2018. Graças a uma ressonância feita na rede particular, os médicos descobriram que o que parecia ser uma nova massa cancerígena no abdômen era, na verdade, uma gaze esquecida durante operação de retirada do colo do útero.


“Já estava pronta para operar quando o médico me tirou da mesa de cirurgia, por conta da ressonância que paguei por fora. Se não tivesse feito, ia passar por uma cirurgia completamente debilitada”, relata. O procedimento para remover a gaze ocorreu após o término do tratamento oncológico, no ano passado.


Desafio maior para quem vem de fora

Na batalha para diagnosticar e enfrentar o câncer, Sérgio Lopes Ferreira, de 45 anos, dormiu muitas noites na calçada para não perder consultas. Autônomo e morador de Esmeraldas, na Grande BH, ele dependia do pouco que ganhava como flanelinha nas ruas de Belo Horizonte e de eventuais doações de clientes para manter o tratamento.

 

Siga nosso canal no WhatsApp e receba em primeira mão notícias relevantes para o seu dia


Sem recursos para pagar passagens de ida e volta para a capital, ele dormia nas proximidades da Santa Casa antes de cada consulta. Como ele, seis em cada 10 pacientes oncológicos atendidos em Belo Horizonte vêm de outras cidades, segundo levantamento do Estado de Minas na plataforma Datasus.


Com voz calma e postura contida, Sérgio recorda o início de sua jornada, quase dois anos atrás, quando as primeiras dores surgiram, de maneira lenta, mas constante quase na mesma época em que Edivânia também iniciou sua jornada. Simples, acostumado ao trabalho pesado e a enfrentar as dificuldades com poucas palavras, ele viu a vida virar do avesso. Ele conta que sentia uma “dor esquisita” na barriga e nas costas, as pernas vacilavam, e o cansaço se tornava insuportável.


Após meses de idas e vindas ao posto de saúde com pouco avanço nos diagnósticos e as dores só aumentando, ele viu a situação piorar até que surgiram sangramentos e crises de diarreia. “Alguma coisa tem que estar machucada para sangrar. Eu vi que o negócio apertou, eu mesmo corri atrás. Tenho muitos clientes na rua, pedi ajuda para eles, pedi orientação”, lembra.


Após quase 10 visitas ao posto de saúde, Sérgio encontrou um médico que, finalmente, levou a sério seus sintomas. “Pode não ser nada, mas pode ser algo sério”, ouviu do médico, que entregou um encaminhamento para exames.


Além da lentidão, dados perdidos

As esperanças renovadas se dissolveram ao perceber que, em Esmeraldas, o tempo para conseguir o exame seria longo. Àquela altura, mesmo sem que ele soubesse o câncer já avançava: as dores o impediam de andar, e ele mal conseguia se manter de pé para trabalhar. A liberação para fazer o exame de colonoscopia, por exemplo, saiu mais de um ano depois de Sérgio já ter iniciado tratamento na capital.
Quando finalmente foi atendido na Santa Casa de BH, o lavador de carros precisou recomeçar o processo do zero: ao procurar a Secretaria de Saúde de Esmeraldas em busca de seus registros, descobriu que eles haviam desaparecido do sistema.


Sem esperar pelo retorno, o médico da Santa Casa refez os pedidos e, em 15 dias, Sérgio tinha os documentos necessários em mãos. O diagnóstico: câncer de reto, que foi identificado em 327 mineiros no primeiro semestre de 2024, conforme dados do Ministério da Saúde. No entanto, o tempo de espera custou caro: a doença estava em estágio 3 e havia se espalhado para outros órgãos.


A apreensão em família

Pai de sete filhas – sendo duas de criação –, Sérgio é o único provedor da casa, onde enfrenta a batalha com a esposa, mesmo com as dificuldades do desemprego. “Eu ficava com muito medo pela minha família, pedindo a Deus para que não me levasse agora. Pensava nos meus filhos, tudo criança pequena, e como minha esposa ia se virar sozinha”, conta. Nos piores momentos, era ela quem o incentivava a continuar, garantindo que tudo ficaria bem.


Cada sessão de radioterapia debilitava o corpo de Sérgio, e o trabalho sob o Sol, como flanelinha, exigia um esforço físico quase insuportável. “Eu trabalhava um dia, comprava o que dava e nos virávamos com o que tinha. Chegou um ponto em que eu não tinha nem dinheiro para pagar a passagem”, conta Sérgio, relembrando o aperto financeiro.


Nesse período, foi ajudado por clientes fiéis, que lhe ofereciam pequenas contribuições e, eventualmente, medicamentos. O remédio para a dor, por exemplo, custa R$ 380 por mês, valor difícil de cobrir para alguém que, muitas vezes, mal conseguia se alimentar na rotina de trabalho na rua.


Hoje, com 20 centímetros, o tumor já não ameaça outros órgãos, embora a cirurgia ainda seja necessária para removê-lo completamente. Ele aguarda, confiante, a data marcada para o procedimento, previsto para dezembro.


Para Sérgio, falar sobre o câncer é um dever, uma forma de desmistificar o medo que a doença ainda carrega. “Eu fiquei assustado. Perdi minha mãe pro câncer, perdi meu padrasto pro câncer. Quando chegou o diagnóstico, a primeira coisa que perguntei foi se tinha cura. E deixava claro para minha família que minha vida não acabou, não”, conta.

Às vésperas da campanha eleitoral, o agora reeleito prefeito de Belo Horizonte, Fuad Noman (PSD), enfrentava sua própria batalha contra o câncer. Foi quando surgiu a promessa de tornar o acesso ao tratamento mais rápido e mais próximo daquele que ele próprio experimentou na rede particular. Como primeiro passo para cumprir o que assumiu, Fuad anunciou a abertura de novo hospital em parceria com a Faculdade de Ciências Médicas, na Região Centro-Sul da capital, prevista para este mês.


A unidade, 100% SUS, oferecerá exames, diagnósticos e tratamento oncológico e deve ser inaugurada com a presença da ministra da Saúde, Nívia Trindade, como adiantou o prefeito ao Estado de Minas depois de visita à Brasília, após a eleição para o segundo mandato. Fuad criticou a morosidade no atendimento no sistema público, com pacientes aguardando de 120 a 150 dias – ou até mais – para iniciar o tratamento.


Os relatos de Edivânia Patrícia de Paula Santos, de 47 anos, e Sérgio Lopes Ferreira, de 45 anos, nas páginas anteriores, retratam alguns dos problemas que o prefeito ainda terá que resolver. Apenas no primeiro semestre deste ano, BH registrou 6.907 novos casos de câncer, conforme levantamento feito pelo EM na plataforma Datasus, do Ministério da Saúde. No estado, esse número chega a 35.673 no mesmo período.


O dado mais alarmante, no entanto, é que quase metade dos pacientes diagnosticados em Minas não têm qualquer registro de tratamento nos sistemas do SUS, o que envolve mais de 23.600 pessoas sem confirmação de início da terapia, em um sistema complexo e sobrecarregado, em que apenas 25 municípios dos 853 mineiros têm estrutura oncológica.


Em Belo Horizonte, dos 3.597 casos de câncer entre moradores da cidade, 62,4% (2.247) não apresentam atualizações de tratamento na plataforma do ministério. O subsecretário municipal de Atenção à Saúde, André Menezes, afirma que parte dos casos sem registro se devem a pacientes que requerem apenas acompanhamento clínico e não necessitam de terapias intensivas.


“Alguns tipos de câncer, como os de pele, muitas vezes exigem apenas remoção cirúrgica da lesão, sem necessidade de quimioterapia. Esses pacientes não seguem para o tratamento oncológico tradicional” sustenta Menezes, ressaltando que isso contribui para o que parece ser uma lacuna nos registros.


Já a Secretaria de Estado de Saúde pontua que os casos sem informação de tratamento oncológico podem se referir a diversas situações. Entre elas, casos tratados fora do Sistema Único de Saúde, casos tratados no SUS, mas ainda sem informação nos sistemas, casos ainda sem tratamento e óbitos anteriores ao início do tratamento. Segundo o Instituto Nacional do Câncer (Inca), o painel não recupera dados do Sistema de Informação de Mortalidade e nem da Agência Nacional de Saúde Suplementar.


Burocracia e desencontros

A assistente social Adélia Glória de Souza Muniz, do Instituto Mineiro de Prevenção e Assistência ao Câncer (Impac), viu inúmeros pacientes chegarem à instituição já em estágios avançados da doença, devido à demora na confirmação do diagnóstico e na realização de exames essenciais, como a biópsia.


A burocracia excessiva e a falta de integração entre as etapas do tratamento acabam trazendo impacto também para a qualidade de vida dos pacientes, segundo Adélia. São barreiras que dificultam chegar até o diagnóstico e dele ao tratamento. “Quando chega o tratamento, não que não seja moroso, mas a demora ocorre muito pela quantidade de gente, até por Belo Horizonte ser o polo”, avalia.


Impactos físicos e emocionais

A dificuldade afeta emocionalmente pacientes debilitados, que já enfrentam impactos físicos e psicológicos do câncer. A autônoma Edivânia relembra um episódio desgastante em que, mesmo com a consulta pós-operatória marcada, foi instruída a percorrer diferentes setores do hospital para confirmar o agendamento, devido à falta de integração na rede.


“Ali todo mundo que vai já está debilitado. Imagina eu, com um dreno no corpo, ter que andar de um lado para o outro. Fui direto na médica, mas tem gente que vai embora, acaba desistindo por uma burocracia que chega a ser falta de respeito”, conta ela, observando que já presenciou outros pacientes em situações semelhantes. “O processo todo já dói tanto, e é muita burocracia, tanta correria, tanto papel que você recebe... Tanto visto, tanto carimbo. A burocracia tinha que ser menor”, completa.


O subsecretário de Saúde de Belo Horizonte reconhece a complexidade burocrática do sistema e afirma que a gestão está empenhada em simplificar processos nos atendimentos oncológicos. Menezes, por exemplo, destaca a descentralização dos pontos de entrada do paciente oncológico, que agora pode iniciar seu atendimento em qualquer um dos 153 centros de saúde. “No passado, todos os pacientes oncológicos tinham que dar entrada na central de alta complexidade. Hoje o centro de saúde já faz um cadastro automatizado que entra para nossa central de regulação”, aponta.


A capital mineira atende pacientes de mais de 600 cidades do estado que não dispõem de infraestrutura para tratamento oncológico completo. Menezes observa que a pandemia de COVID-19 intensificou a gravidade dos casos de câncer no SUS, com pacientes adiando consultas e exames de rotina, o que retardou muitos diagnósticos.


Como resultado, os serviços de oncologia passaram a atender cada vez mais pacientes com quadros avançados, que demandam intervenções complexas e ocupam os leitos por períodos mais longos. “Muitas pessoas não sabiam identificar os sintomas, e com isso os ignoraram. Quando finalmente procuram atendimento, já chegam com um quadro avançado, exigindo mais do sistema de saúde,” diz.


Falta também prevenção

Adélia Muniz, do Impac, critica a ausência de uma abordagem preventiva mais eficiente na rede pública. Ela afirma que o SUS define diretrizes para exames preventivos, mas diz que essas recomendações acabam sendo limitadas. “Por exemplo, a mamografia no SUS é indicada a partir dos 45 anos, mas e as mulheres com histórico familiar de câncer de mama? Elas têm que esperar até essa idade?” questiona.


O flanelinha Sérgio, que passou pelo tratamento oncológico, já orienta suas filhas sobre a importância da prevenção. “Sempre falo: se previnam, façam os exames. Quanto antes, melhor; não esperem a idade chegar. É melhor prevenir, para que a doença nunca chegue até vocês”, ensina.

 

 

6.907 pessoas 

foram diagnosticadas com algum tipo de câncer em BH no 1º semestre de 2024. 3.597 delas são moradoras da capital

 

2.247

dos 3.597 diagnosticados com câncer no 1º semestre não têm informação sobre início da terapia no sistema do Ministério da Saúde

 

35.673

foram diagnosticadas com  câncer em Minas no 1º semestre. Para 23.600 delas, não há informação sobre início da terapia

 

 

“Eu, graças a Deus, estou aqui para contar história, mas e os outros que não têm condições de pagar?”

Edivânia Patrícia de Paula Santos, diagnosticada com câncer de mama, contou com
ajuda da família para fazer exames particulares

 
compartilhe