A premissa mais fundamental do sistema prisional é a ressocialização dos detentos. Em Minas Gerais, no entanto, os relatos e os números ilustram um cenário que faz esse objetivo se tornar quase impossível. Números segmentados pelo Núcleo de Dados do EM junto à Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen) escancaram a falta de pessoal para a execução de políticas públicas penitenciárias no estado.

 


Para se ter uma ideia, hoje, Minas Gerais tem 45% das suas unidades prisionais sem assistente social, o profissional que, segundo o próprio portal do Executivo, é responsável por levar “humanização do atendimento na rotina do presídio”. A falta de funcionários não atinge só essa categoria. Na área da educação, 76% dos estabelecimentos do sistema não têm pedagogos, enquanto 91% não computam sequer um professor.

 

Quem está na linha de frente reclama das péssimas condições de trabalho. Um policial penal (antigo agente penitenciário), que conversou com a reportagem em anonimato, por temer represálias, dá sua opinião sobre a rotina diária da categoria. “Há uma desmotivação total. Há vários fatores que impedem o trabalho de qualidade. Hoje, o servidor não faz a refeição na unidade prisional. No meu caso, preciso levar o almoço, o lanche da tarde e a janta, porque a refeição servida onde trabalho é de péssima qualidade. Até para procurar um microondas fica difícil, porque nem todas as repartições têm esses equipamentos. Além disso, o policial penal, que está na linha de frente, não recebe um centavo de ajuda de custo, só aqueles que estão no administrativo”, diz.

 




Para esse policial penal, um dos problemas da atual gestão à frente da Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública é a falta de vagas. Esse quadro gera superlotação, como mostrou o EM na edição de ontem. "Há muito tempo não se inauguram presídios em Minas Gerais. O número de detentos só cresce, mas as vagas permanecem as mesmas. Não existe uma solução a médio e longo prazo", diz.

 

 

A fonte anônima também questiona o alto número de detentos sem condenação, outro problema abordado pela reportagem ontem. "À medida que você mantém uma população sem o trânsito em julgado (processo que já não cabe mais recursos), você a expõe ao risco de ser agredida, morta ou sofrer penitências, porque os presídios não oferecem boa alimentação, saúde nem educação. Essa pessoa, se absolvida, não vai conseguir recuperar o tempo perdido. Muitos passam por isso. Acontece com muita frequência, porque a maior parte dos detentos não tem condição de pagar um bom advogado. Muitos estão detidos por tráfico de drogas, mas, na verdade, são dependentes químicos, usuários", afirma.

 

Na área da saúde, a defasagem se mantém. De acordo com os dados da Senappen, 61% das unidades prisionais mineiras não têm enfermeiros; 46% estão sem psicólogos; 82% não registram dentistas em seus organogramas; 81% não computam clínicos gerais; e incríveis 94% não abrigam psiquiatras em seus corpos técnicos.

 

 

Robson Sávio Reis Souza, pós-doutor em direito humanos e presidente do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos Humanos (Conedh), afirma que a falta de pessoal no sistema prisional puxa o número de denúncias recebidas pelo Conedh. “Estou na presidência há quatro anos, e a maior parte das denúncias que recebemos, quase todas, tem a ver com o sistema prisional. São quase 1 mil denúncias por ano, de todos os tipos: qualidade da alimentação; tortura e maus-tratos; falta de funcionários no sistema; falta de vagas; etc. Recebemos muita reclamação sobre falta de policiais penais, assistentes sociais, médicos, enfermeiros…”, diz.

 

Governo rebate números

Quanto ao efetivo de policiais penais, o Departamento Penitenciário de Minas Gerais (Depen-MG), vinculado a Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp), informou que "finalizou a posse dos 3.405 novos servidores em um dos maiores concursos do sistema prisional. A última turma, composta por 1.134 candidatos, foi nomeada em junho último e se soma aos 2.271 profissionais já empossados este ano". A pasta ressaltou que "nomeou 985 candidatos a mais do que as 2.420 vagas inicialmente previstas no edital”.

 

No que diz respeito ao baixo número de profissionais da área de saúde lotados no sistema prisional, o Depen esclarece que é "importante ressaltar que nos dados apresentados na demanda estão contidas as Apacs (Associações de Proteção e Assistência aos Condenados), que não estão sob a gestão da Sejusp". Ainda de acordo com o governo, os dados da Senappen não mencionam "os profissionais que atuam dentro das unidades, em parceria com as gestões municipais, por meio da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional (PNAISP)".

 

 

Segundo números do governo, "são atualmente 118 estabelecimentos penais (dos 171) atendidos por essas equipes multiprofissionais, em 97 municípios de Minas Gerais, representando cerca de 68,2% das unidades prisionais convencionais sob gestão do Depen-MG". As equipes da PNAISP, novamente de acordo com a gestão Romeu Zema (Novo), "são compostas, minimamente, por médico clínico, enfermeiro, técnico ou auxiliar de enfermagem e dentistas, e, eventualmente, por categorias profissionais da atenção básica, como psicólogo, assistente social, técnico em saúde bucal, dentre outros".

 

Sobre a alimentação servida nas unidades prisionais, o Depen-MG informa que quando há "detecção de situações de descumprimento da garantia da qualidade prevista em contrato, imediatos procedimentos administrativos são realizados, que podem resultar em multas e até mesmo a perda de contrato por parte da empresa executora".

 

"Por força de contrato, quando a direção da unidade prisional identifica algo que torne a alimentação imprópria para consumo, a empresa fornecedora é notificada e realiza a pronta substituição, sem ônus para o Estado", informa o governo.


Sobrevivente do sistema


Uma pena de 21 anos e 11 meses de cadeia significa, praticamente, uma vida em cárcere. A realidade do hoje advogado criminalista Gregório Antônio Fernandes é quase que uma exceção em Minas Gerais, dado o cenário apresentado pela reportagem. Após sentir na pele, como detento, os prejuízos da falta de atenção do estado a essa política de segurança pública, Greg, como é conhecido, hoje se vê prejudicado profissionalmente pela falta de pessoal no sistema prisional.

 

“Esse cenário traz consequências diretas para o aumento da criminalidade. Quanto mais uma pessoa fica dentro desse ambiente hostil, superlotado e sem acesso a nada, numa ausência geral do estado, mais ela está próxima de ser recrutada pelo crime organizado. Quando a gente sonega direitos, quem sofre é a sociedade. O que estamos fazendo é o contrário: em vez de recuperar o cidadão, nós estamos fomentando o crime. Quanto mais tempo ele fica preso, mais vai ter contato com as facções. O cara entra ladrão de galinha e sai ladrão de banco”, diz o advogado criminalista.

 

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Para ele, além de ampliar o pessoal, o primeiro passo para resolver o problema carcerário no Brasil é uma alteração da legislação. "A primeira alternativa é a mudança do nosso Código de Processo Penal. Hoje, basta o testemunho dos policiais. O que eles escrevem no boletim de ocorrência está presente da sentença ao acórdão. É o que vale no fim das contas. Você levar testemunha (ao tribunal) não tem peso. O que tem peso é o boletim de ocorrência. As câmeras corporais ajudam demais. Esse mecanismo já auxilia para reduzir esse sistema inquisitivo, mas é preciso uma reforma mais profunda", afirma Gregório.

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