Uma das mais importantes expedições científicas realizadas no Brasil do século 19 completa 200 anos. Entre maio de 1824 e fevereiro de 1825, passou por Minas o médico e diplomata Georg Heinrich von Langsdorff, o barão de Langsdorff (1774-1852), alemão a serviço do império russo. Estava à frente de um grupo de pesquisadores nas áreas de botânica, zoologia, etnografia e linguística, do qual também fazia parte o pintor alemão Rugendas, então com 22 anos. Se foi importante para o país, essa história tem um final a se lamentar, pois todos os materiais coletados, juntamente com os resultados das pesquisas e manuscritos, se encontram na Rússia. Tudo bem longe dos olhos dos brasileiros.
Uma pintura datada de 1820, obra do francês Armand Pallière, mostra como era o centro urbano de Vila Rica naqueles tempos. Estão lá as igrejas São Francisco de Assis e Nossa Senhora do Carmo, o Palácio dos Governadores, atual unidade da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), e a Casa de Câmara e Cadeia, prédio monumental ocupado há 80 anos pelo Museu da Inconfidência, vinculado ao Instituto Brasileiro de Museus (Ibram). Três anos depois desse registro, a vila se tornaria Imperial Cidade de Ouro Preto e capital da então província de Minas Gerais, pelas mãos do imperador dom Pedro I (1798-1834).
Foi, portanto, esse o cenário conhecido pelo médico e diplomata alemão naturalizado russo, Georg Heinrich von Langsdorff, o barão de Langsdorff (1774-1852) que, há exatos 200 anos, chegava a Minas com uma expedição que fez história. Pesquisas nos campos da botânica, zoologia, etnografia e linguística estavam a cargo de notáveis, incluindo Ludwig Riedel (1790-1861, botânico alemão), Nester Rubtsov (1799-1801, astrônomo russo) e Édouard Ménétries (1802-1861, estudioso francês de insetos, aves, répteis e anfíbios). Também integrou a expedição o pintor Johann Moritz Rugendas (1802-1858), alemão de 22 anos depois celebrizado com o sobrenome Rugendas.
“O legado de Langsdorff, que esteve em Minas durante nove meses, entre maio de 1824 e fevereiro de 1825, significa muito para o Brasil, mas, infelizmente, os materiais resultantes da sua viagem – manuscritos, incluindo seus diários, mapas, desenhos, aquarelas, herbários, animais empalhados, amostras de minerais e outros – chegaram à Rússia e se encontram em museus e outras instituições daquele país”, diz a geógrafa Márcia Maria Duarte dos Santos, especialista em cartografia histórica, docente da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), onde também é pesquisadora do Centro de Referência em Cartografia Histórica.
Numa segunda expedição, igualmente financiada pelo governo russo, Langsdorff perdeu a memória em virtude de uma doença tropical contraída no território das regiões Centro-Oeste e Norte do Brasil, entre 1825 e 1829. “Ainda bem que estava também no grupo o desenhista francês Hercule Florence (1804-1879), que tratou de reunir todo o material e enviá-lo à Rússia. Esse material ficou esquecido até ser descoberto em 1930”, informa a professora, ressaltando que ele foi um dos viajantes naturalistas europeus, a exemplo de Auguste Saint-Hilaire (1779-1853) e Wilhelm Ludwig von Eschwege (1777-1855), que estiveram aqui nas primeiras décadas do século 19. “Foi um período áureo do desenvolvimento do conhecimento botânico, zoológico, mineralógico e etnográfico sobre o Brasil, pelos europeus.”
Em março, a professora Márcia Duarte estará presente, juntamente com outros especialistas, no seminário sobre a vida e a obra de Langsdorff, no Instituto Cultural Amilcar Martins, em Belo Horizonte. No encontro, a professora vai destacar aspectos geográficos referentes ao roteiro da expedição e falar sobre as observações de Langsdorff a respeito das povoações, propriedades agrícolas e os movimentos migratórios da população.
MAR, TERRA E MONTANHAS
Na viagem pela província de Minas, partindo da Fazenda Mandioca, de sua propriedade e conduzida como fazenda-modelo, no fundo da Baía de Guanabara, onde hoje está a cidade de Magé (RJ), Langsdorff passou por Barbacena, São João del-Rei e Tiradentes (Comarca do Rio das Mortes, hoje Região do Campo das Vertentes), Ouro Preto e entorno, Sabará, Caeté e Santa Luzia, na Comarca do Rio das Velhas (atual Região Metropolitana de BH) até chegar ao Serro do Frio, hoje Serro, no Vale do Jequitinhonha. “Não veio diretamente a Ouro Preto, fez um zigue-zague pelo caminho. Visitou muitas fazendas, observou a organização dessas propriedades rurais.”
Os problemas ambientais tão devastadores no século 21 já eram objeto das atenções de Langsdorff, em 1824. “Notava as ações do homem ao revolver a terra, mudando a paisagem. Da mesma forma, verificava as transformações na vegetação e no relevo. Na região do cerrado, por exemplo, se alarmou com o uso do fogo para preparar os terrenos para o plantio, prática condenada, porém usual, nos nossos tempos.”
Em 26 de setembro de 1824, Langsdorff escreveu: “Toda a região percorrida hoje, até onde nossa vista alcançava, está devastada pelo fogo e inutilizada para o cultivo. Dizem que o vizinho mandou investigar e descobriu que o fogo ocorreu por negligência de gente pobre. O fogo espalhou-se, numa distância de 3 a 4 léguas, por campos, morros, capoeiras e matas virgens”. O assoreamento de mananciais, como em Lagoa Santa, também deixava o europeu com o cenho franzido.
SURPRESAS DO CAMINHO
Muitos fatos surpreenderam Langsdorff e os integrantes da sua expedição, da qual faziam parte pessoas de várias nacionalidades – essa “torre de babel” ambulante não era problema para um homem culto que falava alemão, russo, português, francês e outros idiomas. “Ele devotou especial atenção à formação dos arraiais, à organização dos espaços e ao fluxo de migração interna, quis saber de onde vinham as pessoas em direção à província de Minas”, observa a professora. A longevidade da população da região e Sabará também surpreendeu o viajante, então com 50 anos, uma idade considerada avançada no início do século 19.
“Ao passar por Curral del-Rei (onde Belo Horizonte foi construída e inaugurada em 12 de dezembro de 1897, portanto 73 anos depois), Langsdorff vislumbrou o melhor lugar para ser a capital de Minas. Já em Santa Luzia, em outubro de 1824, ao ficar hospedado no casarão do senhor Manoel Ribeiro Vianna, enxergou a necessidade de o Brasil ter uma universidade. E que deveria ser em Minas”, diz a professora Márcia. Na época, havia cursos isolados, mas não uma universidade.
Nos seus diários sobre a viagem ao Rio de Janeiro e Minas Gerais (de 8 de maio de 1824 a 17 de fevereiro de 1825), publicado no Brasil em 1997 pela Editora Fiocruz, o médico e diplomata registrou o seguinte: “Em Sabará, eu havia recusado o convite insistente do Juiz de Fora, sr. Maia, para ficar em sua casa. Fiquei com a impressão de tê-lo ofendido, pois ele havia me esperado e se preparado para me receber. Com isso, achei que deveria aproveitar mais a hospitalidade brasileira: resolvi ficar, em Santa Luzia, na casa do sr. Ribeiro Vianna, Comendador do Cruzeiro, um dos comerciantes mais ricos da província. Eu já tinha ouvido falar de sua generosidade e hospitalidade. De fato, eu não poderia ter sido recebido de forma mais acolhedora, nem com a melhor carta de recomendação. O sr. Vianna, solteiro, morava sozinho na casa mais bonita, prática e organizada do Brasil, aparelhada com todos os utensílios possíveis, ricamente mobiliada e com muito bom gosto”.
E escreveu mais sobre suas andanças: “Estranha a vida do viajante! Hoje cedo estávamos numa hospedaria suja, desconfortável e extremamente cara, onde me cobraram, por dia, entre 5.000 e 6.000 réis, isto é, 1,50 luíses; à tarde, estamos numa casa bem decorada, mobiliada com todo requinte, com vasos de porcelana francesa, flores e gravuras em cobre, e onde qualquer desejo nosso é satisfeito com a maior presteza, como se fosse uma ordem. Se se encontrasse tal recepção em todo lugar, certamente mais pessoas se sujeitariam aos demais transtornos de uma viagem pelo Brasil”.
No mês seguinte, Vianna se casaria com a baiana Maria Alexandrina de Almeida, depois baronesa de Santa Luzia, grande benemérita: mandou construir um hospital (ainda em funcionamento) e um teatro (demolido em 1961). Cinco meses depois, Langsdorff felicitou Vianna pelo matrimônio – “sobretudo porque acredito ter contribuído, de certa forma, para acelerar sua decisão”. E fez um comentário certamente de duplo sentido ao homem, um dos longevos da região: “A água dá virilidade e vigor. Acho que esse é um aforismo de Hipócrates; recordo-me de ter lido as mesmas palavras em alguma obra nova de medicina – talvez de Osiander”.
O sobrado citado por Langsdorff, chamado de Solar da Baronesa, continua de pé, mas figura como um embaçado retrato do passado. Pertencente ao município e localizado na Rua Direita, no Centro Histórico tombado pelo Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (Iepha), a imponente construção, que já sediou escola e a prefeitura local, padece com o abandono e a falta de obras. O processo de arruinamento do prédio é visível com a perda de janelas, furto de fiação elétrica, trincas e outros fatores de insegurança.
Em nota, a Secretaria Municipal de Cultura e Turismo da Prefeitura de Santa Luzia esclarece que os projetos se encontram elaborados, sendo necessária “a atualização das planilhas orçamentárias, que deverá contar com prestadores de serviços tecnicamente qualificados”.
trajetória
Duzentos anos da expedição de Georg Heinrich von Langsdorff, o barão de Langsdorff, a Minas. De 8 de maio de 1824 a 17 de fevereiro de 1825.
Natural da Alemanha, onde se formou em medicina aos 23 anos, estava no Brasil como diplomata a serviço da Rússia.
A expedição saiu da Fazenda Mandioca, de propriedade de Langsdorff, onde hoje é Magé (RJ), e foi até Comarca do Serro do Frio (Serro), no Vale do Jequitinhonha.
A cavalo, Langsdorff visitou vilas e cidades das comarcas do Rio das Mortes (Barbacena, São João del-Rei e Tiradentes), Ouro Preto, recém-elevada à condição de Imperial Cidade e capital da Província de Minas, Rio das Velhas (Sabará, Caeté, Santa Luzia, Lagoa Santa) e Serro do Frio (Serro e Diamantina).
Interesses comerciais em meio às descobertas
Ao contrário de outros cientistas e naturalistas que durante o século 19 viajaram, descreveram e reuniram coleções científicas no Brasil, Georg Heinrich von Langsdorff, o barão de Langsdorff, exercia também funções consulares e diplomáticas no Rio de Janeiro, a serviço do governo russo. O império russo se tornava uma potência, e, desde 1803, começaram as regulares viagens de circunavegação dos navios russos, partindo de São Petersburgo. A baía do Rio de Janeiro se tornava escala constante e predileta nesse percurso. “Os interesses de navegação não tardaram em se combinar com os comerciais, além dos políticos, que fizeram que a Rússia, finalmente, voltasse seu olhar para o Brasil”, assinalou, na apresentação do volume 1 de “Os Diários de Langsdorff”, o organizador e um dos editores da obra, Danuzio Gil Bernardino da Silva.
E como Langsdorff veio parar no Brasil? Um partidário do desenvolvimento do comércio com o Brasil era o conde russo Nikolai Rumiantsev, que ocupava, desde 1809, o posto de chanceler do império. “Com o começo da guerra de 1812, São Petersburgo e Rio de Janeiro eram participantes do mesmo campo estratégico-militar, o anti-napoleônico. Para a (então) capital brasileira, foi enviado como ministro plenipotenciário, Fedor Pahlen, e estabelecido o consulado geral, que Langsdorff assumiu em 1813 (...) Langsdorff fazia tudo para fomentar o comércio dos mercadores russos no Brasil. Ele escrevia que lá encontrariam ferro, lona, resina, breu (pez), cordame de navio. Traçou ainda uma proposta de gráfico (horário) para os navios mercantes russos que partiam desde os portos bálticos até o Rio de Janeiro.”
Conhecer mais sobre a vida do russo no Brasil é fundamental o para entender seus objetivos e os laços com a terra. Assim está na apresentação dos Diários: “Até o início de 1816, Langsdorff ainda não fazia planos futuros de sua vida no Brasil, mas depois tudo mudou. Em dezembro de 1815, foi criado o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarve. Na corte (de dom João VI), já não se falava sobre o regresso à Europa. O Rio de Janeiro deveria ficar, por tempo indefinido, a capital dos Bragança. O Brasil tornava-se, assim, a segunda pátria de Langsdorff.”
A partir da Independência do Brasil (1822), da qual já havia ‘cantado a pedra’ e se mostrava simpatizante, conforme escreveu em cartas a São Petersburgo, Langsdorff deu início à sua expedição, explorando inicialmente as imediações de Nova Friburgo (RJ). Mas apenas dois anos depois, em condições mais favoráveis – pelo prestígio da Rússia na corte de dom Pedro I – o médico e diplomata decide ir à Amazônia, mas falta dinheiro ao governo brasileiro para financiar a viagem. Assim, decide vir para Minas, retornando à Fazenda Mandioca em fevereiro de 1825.
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Viajando a cavalo pelos caminhos de terra da província de Minas, Langsdorff fez atendimento como médico, pois profissional renomado, havia se formado, aos 23 anos, na Universidade de Göttigen, na Alemanha. “Houve situações bem inesperadas. Ao chegar a algumas casas para consultar uma mulher, Langsdorff não podia se comunicar com a enferma, apenas com o marido. O homem era quem transmitia ao doutor o que a esposa estava sentindo”, diz a geógrafa Márcia Maria Duarte dos Santos, especialista em cartografia histórica, docente da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), onde também é pesquisadora do Centro de Referência em Cartografia Histórica.
A viagem seguia e, em muitas localidades, o alemão naturalizado russo descreveu a beleza das paisagens. Em 27 de julho, registrou sobre uma paisagem na Zona da Mata: “Às 10h30, retomamos nossa viagem e avistamos, logo em seguida, a confluência dos rios Bacalhau e Piranga e uma bela cachoeira, não muito grande. Seguimos o Rio Piranga, um rio de volume considerável e navegável, que corre por um vale estreito, indo alcançar, uma légua adiante, a fazenda do sr. João”.
A chegada a São João del-Rei, em 6 de junho, mereceu uma descrição minuciosa. “São João del-Rei fica num vale estreito, mas que se alarga logo abaixo, e é banhado por um ribeirão, rio D’Água Limpa. Para Oeste, veem-se montanhas rochosas altas e abruptas, devastadas pela lavagem do ouro em tempos passados. Para Leste, campos em suave elevação ou colinas. Para Nordeste, um vale bastante extenso, cercado pela Serra de São José, o Campo de Marçal Casado, onde o Marquês de Pombal queria construir a cidade. Na parte Sudoeste da cidade, nas vertentes devastadas dos morros, há uma jazida de ferro, quer dizer, mineral ferruginoso. Cultiva-se o linho e faz-se tecido de ótima qualidade, até adamascado, de excelente qualidade, apenas por diletantismo. Chamaram-nos especialmente a atenção as várias igrejas, não menos de doze, algumas delas ainda não concluídas”.
Sobre Lagoa Santa (Região Metropolitana de BH), teceu elogios, em 4 de outubro, com um lamento: “A Lagoa Santa é uma das lagoas mais bonitas, a três léguas daqui. Ela foi descrita num artigo especial e outrora foi muito procurada por doentes. Entretanto, a lagoa foi sendo assoreada, muita água escorreu e, com isso, ela perdeu muito do seu poder de cura”.
Foi em Barra de Jequitibá (atual Jequitibá), em 1º de novembro, que Langsdorff e Rugendas se desentenderam. A briga foi tão feia, com insultos do jovem de 22 anos ao médico e diplomata de 50, que o pintor abandonou a expedição. Em carta ao vice-cônsul, o chefe da expedição disse que despediu Rugendas por seu “comportamento altamente incivilizado”.
Hoje, admirando Ouro Preto de um ponto na Rua Conselheiro Quintiliano, possivelmente o mesmo usado por Armand Pallière para pintar o quadro de Vila Rica em 1820, raro registro da época em exposição no Museu da Inconfidência, dá para refletir sobre as cidades do início do século 19 e as transformações ao longo do tempo. As condições eram difíceis, havia todo tipo de risco nos caminhos. Vale, então, prestar atenção à última frase do diário de Langsdorff na parte sobre Minas, que não deixa de ter certa conexão com a atualidade: “É impossível fazer uma viagem confortável neste país”.