As conhecidas bolhas da catapora, vista como uma doença simples da infância, podem esconder sérias complicações na vida adulta. Sem a vacina contra a varicela há cinco meses, os moradores de Minas Gerais enfrentam, além do risco de novos surtos de catapora, maior possibilidade de sequelas futuras causadas por herpes-zóster — doença provocada pelo mesmo vírus, que permanece "dormindo" no organismo. O “cobreiro”, como é popularmente conhecido, traz bolhas dolorosas e pode causar desde cicatrizes permanentes até perda da visão ou audição.
Essa realidade ameaça um terço dos brasileiros que já tiveram contato com o vírus varicela-zóster, que tem sintomas bem específicos e causa, inclusive, dores intensas no tronco, braços, pernas ou, em casos mais raros, nos ouvidos. Dados do Sistema de Informações Hospitalares do SUS (SIH), do Ministério da Saúde, acessados pelo Estado de Minas por meio do DataSUS, revelam um aumento de 15,9% no número de internações por herpes-zóster em Minas Gerais no intervalo de um ano, considerando 2022 e 2023. Somente a entre janeiro e setembro deste ano, 249 casos da doença exigiram hospitalização na rede pública do estado, crescimento de 12,1% na comparação com o mesmo período de 2023. O número é o maior para o período de sete meses dos últimos três anos.
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O vírus varicela-zóster, o mesmo que provoca a catapora, pode permanecer incubado no organismo após a recuperação da doença. Anos ou até décadas depois, ele pode se reativar devido a fatores como imunidade baixa ou estresse, desencadeando herpes-zóster. O vírus não deve ser confundido com o da herpes simples, que causa lesões na boca e nos genitais. “Uma vez que não estamos protegidos contra a catapora, temos o risco de desenvolver herpes-zóster. Geralmente a doença acomete um nervo, concentra tudo em uma região, seja lombar ou facial, e dependendo da gravidade, se for na região ocular, por exemplo, pode causar cegueira”, explica o enfermeiro Adalton Neto, membro da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm/MG). Outro agravante é que a catapora, quando contraída por adultos, tem mais riscos de evoluir para casos graves, que podem apresentar inflamação no sistema nervoso, além de infecções na pele e no ouvido.
Embora tomar a vacina contra a catapora não elimine totalmente o risco de desenvolver herpes-zóster, ela reduz significativamente as chances e a gravidade de ambas as doenças. “A vacina da catapora oferece uma proteção de mais de 80% com apenas uma dose. Estudos mostram que dois em cada três adultos, com mais de 65 anos que tiveram a doença desenvolvem herpes-zóster. Quanto mais pessoas vacinadas, menos chances de contrair a catapora e, consequentemente, menos risco de ter herpes-zóster lá na frente”, ressalta.
Minas Gerais está sem o imunizante desde junho, segundo o governo do estado. A última remessa recebida em Belo Horizonte, por exemplo, cerca de 5 mil doses, foi insuficiente para atender à demanda mensal de 6,5 mil doses da capital mineira. Procurada pela reportagem, a Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais (SES-MG) reforçou que a aquisição e distribuição de vacinas é responsabilidade do Ministério da Saúde, e destacou que a pasta vem fornecendo a vacina contra varicela de forma irregular desde agosto do ano passado. A previsão é de que o abastecimento seja regularizado nos próximos meses.
O ministério, entretanto, afirma que não há desabastecimento de vacinas. Em 2024, informa, por meio de nota, foram entregues 1,5 milhão de doses da vacina varicela e 2,9 milhões da tetraviral para todo o país. Para Minas Gerais, segundo a nota, foram enviadas 225,5 mil doses e, até 21 de novembro, 213,6 mil vacinas haviam sido aplicadas. “Questões com um fornecedor internacional têm impactado a oferta da vacina de varicela globalmente. Para atender a demanda nacional, o Ministério da Saúde buscou outros fornecedores e fechou aquisições no total de 8,2 milhões de doses para regularização dos estoques”, diz o texto. O Ministério da Saúde distribui as doses das vacinas aos estados, que, por sua vez, são responsáveis por repassá-las aos municípios. A pasta não respondeu aos questionamentos da reportagem sobre o recebimento dos imunizantes e quando serão distribuídos aos estados.
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ESQUEMA DA IMUNIZAÇÃO
Hoje, o esquema vacinal contra a catapora prevê duas doses: a primeira, aos 15 meses de idade, com a tetraviral —que, além da varicela, protege contra o sarampo, a caxumba e a rubéola— e a segunda, aos 4 anos, com uma dose da monovalente varicela. “A primeira vacina vem nessa forma combinada, que já oferece 80% de proteção. Depois, uma segunda dose, só da varicela, é aplicada aos 4 anos, completando o esquema de duas doses”, explica o representante da SBIm.
Esse esquema combinado confere uma proteção média de 96% aos imunizados.
O Ministério da Saúde, no entanto, não disponibiliza a vacina tetraviral para Minas Gerais, afirma a SES-MG. Assim, a proteção contra catapora em Minas é feita somente pela monovalente, diz a pasta, que não explicou o motivo dessa abordagem. Sem a tetraviral, a imunização contra a varicela deveria ser feita com a monovalente entre os 12 e 15 meses de idade.
Já a vacina contra herpes-zóster é indicada para maiores de 50 anos ou, em casos especiais, a partir dos 18, mas é oferecida somente na rede privada, ao custo médio de R$ 900. O imunizante é recomendado até para quem já teve a doença, para evitar a reincidência. “O tratamento é importante, mas o que vai prevenir o retorno da doença é a vacinação. Ela previne a doença, a reincidência e dores crônicas”, alerta o especialista. A Assembleia Legislativa de Minas Gerais tenta aprovar um projeto de lei, apresentado em agosto, para incluir o imunizante no calendário estadual do sistema público de saúde. Proposta semelhante tramita na Câmara dos Deputados desde 2022.
Cerca de 20% das pessoas infectadas pelo vírus varicela-zóster terão herpes-zóster, segundo o Ministério da Saúde. A analista contábil Euzilene Fernandes Gonçalves dos Santos, de 49 anos, sabe bem o impacto da doença. Em dezembro de 2022, ela começou a sentir um formigamento na testa que rapidamente evoluiu para um quadro doloroso e debilitante. “Parecia que tinha um caminho de formiguinhas, achei que ia sarar e, de repente, uma mancha começou a descer para o meu olho esquerdo”, conta ela, que precisou se isolar durante o período mais crítico da doença. Alertada pela médica sobre o risco de a infecção atingir o globo ocular, Euzilene enfrentou meses de dor intensa e persistente, “constante e local”.
A doença pode deixar sequelas severas, como a neuralgia pós-herpética, uma dor crônica que persiste mesmo após as bolhas secarem. “Ela causa uma sensibilidade muito grande no local, sensação de ardência e queimação, de formigamento. A pessoa, às vezes, não consegue ter contato nem com a própria roupa”, detalha o enfermeiro Adalton. A doença é mais comum após os 50 anos, mas casos em jovens têm aumentado, em parte devido ao estresse, que afeta o sistema imunológico. Mesmo aqueles que não tiveram catapora na infância podem desenvolver a doença na vida adulta.