Fé, cultura e um domingo de muita alegria em Sabará, na Região Metropolitana de Belo Horizonte. No dia da padroeira da tricentenária cidade, a Matriz Nossa Senhora da Conceição, no Bairro Siderúrgica, abre as portas para uma festa esperada há 77 anos. Ao final da missa presidida pelo padre Wellington Eládio, vigário episcopal para as igrejas históricas da Arquidiocese de BH, foi reentronizada a imagem de São José de Botas, do século 18, desaparecida do templo católico na Semana Santa de 1947.
A exemplo da de Nossa Senhora do Carmo, que retornou a Sabará em 17 de setembro, o São José de Botas estava sendo comercializado em um site de leilões. "A entrega de São José teria que ser hoje mesmo, como um presente de Nossa Senhora. Impossível falar em Maria sem pensar em José, e impossível falar em José em Maria. A sagrada família não se separa nunca", ressaltou padre Wellington.
O momento é de "dupla comemoração", por ser de homenagens a Nossa Senhora da Conceição, e de satisfação pela volta do São José de Botas. "O resgate da imagem representa nossa identidade. O patrimônio de Minas já perdeu muito, e felizmente, aqui, conseguimos ter duas peças de volta em três meses", observou o titular da Paróquia Nossa Senhora da Conceição, padre Eribaldo Pereira dos Santos, que concelebrou a missa juntamente com o padre André Costa Santos, da Arquidiocese de Vitória da Conquista (BA). Por enquanto, o objeto de fé ficará na Capela mortuária da igreja.
Para dona Maria da Conceição Silva, que completará 87 anos em janeiro, há um reencontro, pois se lembra da imagem no altar da igreja. "Era muito menina, e achava engraçado ver o santo de botas. Perguntava a minha mãe porque o santo usava sapato". Depois, quando circulou a conversa do desaparecimento, quis saber se a igreja estava com algum problema. E aí minha mãe falou sobre o sumiço da imagem.
"Bem antes do início da celebração eucarística, a frente da igreja já estava tomada pelos fiéis, que vieram de vários cantos da cidade para saudar a padroeira, Nossa Senhora Conceição, como para ver a imagem, com 54 centímetros de altura, em madeira policromada, que volta para o local de onde nunca deveria ter saído. Na porta de entrada, houve um cortejo de homens e mulheres consagrados, neste domingo, a Nossa Senhora.
Flores para a padroeira
Os fiéis lotaram a Matriz Nossa Senhora da Conceição, uma das primeiras de Minas. Com um pequeno vaso nas mãos, a designer de moda Kátia Cunha, sabarense moradora de BH, veio de bicicleta. "Esta igreja faz parte da minha vida. Aqui, fui batizada, crismada e fiz a primeira comunhão. Então, vim trazer estas flores", explicou Kátia, que tem dois filhos.
Para a Integrante da Pastoral da Liturgia e do Conselho Paroquial, Tânia Marcelino Costa, o resgate da peça foi uma bela surpresa, pois "ela desapareceu em 1947", disse Tânia. Ao lado, a enfermeira Dayane Leal, de 29, que sairá vestida de anjo na procissão na noite deste domingo, disse que se trata realmente de um momento especial e histórico na cidade.
Denúncia
Presente à cerimônia religiosa, o coordenador das Promotorias de Justiça de Defesa do Patrimônio Cultural e Turístico (CPPC)/Ministério Público de Minas Gerais, Marcelo Maffra, disse que a imagem de São José de Botas foi objeto de uma denúncia enviada, via plataforma Sondar, em 20 de novembro de 2023: “Foi realizado um parecer preliminar solicitando acesso físico ao bem. Assim, em 26 de setembro de 2024, a escultura foi entregue na sede da Coordenadoria”. A peça foi entregue ao MPMG por meio da campanha “Boa Fé”, que estimula colecionadores, comerciantes, adquirentes e herdeiros a devolver, de maneira espontânea, obras de arte e antiguidades pertencentes ao patrimônio cultural de Minas. Em 2000, o acervo, que incluía São José de Botas pertencente a um parlamentar (já falecido), e quem o adquiriu foi o pai de um antiquário. Por sorte, não houve comprado no segundo leilão, em 2023. "Precisamos da ajuda da comunidade. Sabará tem ainda 11 bens cadastrados desaparecidos. O São José volta para o local de onde nunca deveria ter saído".
Tão logo o objeto de fé chegou à sede da CPPC, em Belo Horizonte, a equipe coordenada por Maffra fez fotografias, aferição de dimensões e verificação do estado geral de conservação para posterior perícia. Entre os documentos consultados, destaca-se comunicação do antigo Departamento do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Dphan, anterior ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional/Iphan), datada de 4 de julho de 1947, na qual o senhor Sylvio de Vasconcellos encaminha, ao pároco responsável pela Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição, levantamento dos bens constantes da Igreja. “A partir desse documento, foi possível inferir que a imagem se extraviou naquele ano”, diz o coordenador da CPPC.
Assim, o setor técnico entrou em contato com o pároco da Matriz Nossa Senhora da Conceição, padre Eribaldo, em Sabará, para confirmar, via reconhecimento, se a imagem entregue ao MPMG era a mesma extraviada do templo. Assim, foi solicitado apoio do pároco para localizar pessoas que pudessem reconhecê-la. Em 25 de outubro de 2024, houve “o reconhecimento formal e expresso da peça como pertencente ao patrimônio cultural de Sabará, vinculado à Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição”. A Igreja Matriz e seu acervo estão protegidos por tombamento federal, em1938. Na sequência, foi solicitado ao MPMG que “a peça fosse restituída aos cidadãos de Sabará, em 8 de dezembro, quando ocorre a solenidade da Imaculada Conceição”.
Segundo as investigações, a imagem, no site de leilões, foi descrita como uma peça em madeira policromada do século 18, com 54 cm de altura. No sondar, a peça também figura como uma imagem de madeira policromada, mas com 50 cm de altura. Em aferição “in loco” foi constatado que tem 54 cm de altura, confirmando o informado no anúncio de venda. “Embora haja essa diferença de 4 centímetros, ela não é suficiente para descartar a hipótese de que se trata de mesma peça, uma vez que, na aferição, pode ocorrer oscilações para mais ou para menos do tamanho real de um bem, desde que não sejam significativas”, contou a historiadora especialista em cultura e arte, do MPMG, Paula Carolina Miranda Novais, que conduziu a imagem até o altar juntamente com a também historiadora Flávia Costa Reis, do Memorial da Arquidiocese de BH.
A chegada até o altar foi emocionante, com o hino a São José entoado pelos fiéis, e todos tocando a peça com os dedos.
Fé
A esperança de ter o bem espiritual de volta nunca abandonou moradores de Sabará. De grande devoção dos fiéis e peregrinos que visitam a tricentenária cidade, a imagem de São José de Botas ficava, na época do desaparecimento, no nicho lateral do altar estilo Dom João V, na sala usada como Capela do Santíssimo Sacramento. “Na realidade”, recorda o historiador e pesquisador local José Bouzas, “a sala era, anteriormente, uma capela mortuária. A imagem, agora resgatada, não é como as demais em louvor ao santo, calçadas com botas de coturno à altura do joelho e o chapéu tricórnio (de três pontas) sobre a cabeça", explica. E acrescentou: "Trata-se de uma escultura do período barroco, dourada e policromada, calçada com botas que não chegam ao joelho. O chapéu também não é tricórnio, mas lembra um ‘sombrero’ mexicano, redondo, dependurado atrás do pescoço", afirma.
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A imagem de São José seria, provavelmente, das primeiras pertencentes ao acervo da Matriz Nossa Senhora da Conceição, talvez de origem espanhola. "Era comum, no início do povoamento das Minas, imagens de santos serem trazidas nos ‘embornais’ dos bandeirantes”, observa Bouzas. Devido ao tempo de desaparecimento, a imagem passará por um processo de restauração.