A forma como a Polícia Civil de Minas Gerais (PCMG) lida com denúncias de assédio moral e sexual dentro da corporação voltou a ser questionada. Em 6 de dezembro, a 5ª Vara da Fazenda Pública e Autarquias de Belo Horizonte aceitou uma ação por dano e assédio moral contra o Estado. A denúncia, apresentada pela Defensoria Pública estadual, solicita que uma investigadora seja indenizada em R$ 1,8 milhão, alegando sofrer retaliações administrativas após denunciar um colega.
Jaqueline Evangelista Rodrigues, de 49 anos, relata ter sofrido assédio por parte de um colega investigador, no Departamento de Investigação de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), em 13 de fevereiro de 2020. O primeiro episódio ocorreu dentro de uma viatura, a caminho do Presídio Feminino de Vespasiano, na Região Metropolitana de Belo Horizonte. Na ocasião, segundo a vítima, o colega de trabalho se comportava de maneira “estranha”.
Na volta da unidade prisional, o homem teria questionado Jaqueline sobre como iriam comemorar o trabalho realizado no dia e sugerido que ela poderia lhe dar “um beijo” ou “um abraço”. Ao receber a primeira negativa, o suspeito teria respondido: “Se você não quiser me dar um beijo ou um abraço, pode me dar outras coisas”.
O segundo episódio, narrado pela investigadora, ocorreu dentro das instalações do DHPP, no Bairro São Cristóvão. Segundo Jaqueline, ao chegar no local pela manhã, ela estava na copa fazendo café quando foi surpreendida pelo suspeito, que a teria abraçado por trás, apalpado e cheirado “com lascívia”.
Assustada, Jaqueline relata que conseguiu comunicar os fatos a um superior apenas quatro meses depois. A denúncia resultou em um processo administrativo na corregedoria da Polícia Civil e em uma ação penal por importunação sexual. O investigador foi condenado na primeira instância, mas recorreu da decisão. O processo ainda está em tramitação na segunda instância e aguarda parecer da Procuradoria Geral de Justiça do Estado de Minas Gerais desde 18 de novembro deste ano.
“Essa ação [movida pela Defensoria] é uma esperança. Acredito que só essa exposição vai fazer com que a Polícia Civil de Minas Gerais mude sua postura. Eu não sou a única mulher que sofre dentro da instituição [...] Estou cansada de ver colegas se suicidando. Estou cansada de ver colegas pedindo exoneração por conta de maldade e mentira de delegado. É muito sujo o que acontece com a gente dentro da corregedoria”, diz Jaqueline ao Estado de Minas.
Transferências e impedimentos
Apesar da tramitação dos processos contra o acusado, desde que as denúncias foram feitas, o processo movido pela Defensoria Pública de Minas aponta que Jaqueline tem sofrido perseguição institucional dentro da corporação. Entre os pontos apresentados pelo órgão à justiça estão cinco transferências de local de trabalho, sendo que, em uma das unidades para as quais a mulher foi realocada, estavam amigos e testemunhas de defesa do denunciado.
No documento ao qual o Estado de Minas teve acesso, é destacado que a primeira mudança ocorreu em 16 de julho de 2020, "logo após" a vítima relatar as importunações sexuais. Além disso, o órgão aponta que a transferência aconteceu mesmo com o suspeito já tendo sido removido da unidade por seu superior direto, e a investigadora alegando estar habituada ao trabalho e se sentir acolhida pelos colegas.
"As diversas movimentações caracterizam retaliação velada e impactam a vida da autora. Isso porque a repetida mudança compromete a estabilidade necessária para o desenvolvimento da carreira, interrompe projetos e vínculos e promove a perda da identidade profissional", afirma a Defensoria Pública no documento.
Além das constantes transferências, a denúncia aponta outros pontos que, para o órgão, se configuram como perseguição administrativa. Entre eles estão o "não andamento, por longo período, do processo administrativo instaurado para apurar a responsabilidade do investigado"; a "criação de obstáculos para impedir o acesso da vítima aos referidos autos"; o "tratamento discriminatório por parte de colegas e chefes, e o seu isolamento nos locais de trabalho"; a "imposição de acúmulo de diligências e tarefas"; a "estipulação de empecilhos para impedir que, em dissertação de conclusão de curso de pós-graduação oferecido pela PCMG, a denunciante escrevesse sobre importunação sexual no ambiente de trabalho"; e a instauração de "inúmeras sindicâncias e procedimentos administrativos" em desfavor da vítima.
Procurada, a Polícia Civil de Minas Gerais informou que todas as denúncias apresentadas pela servidora foram "rigorosamente apuradas pela Corregedoria-Geral da Polícia Civil (CGPC)". A corporação ainda afirmou que os casos de assédio sexual e moral na instituição foram "apurados por meio de procedimentos administrativos pela CGPC e investigados pelo Ministério Público estadual".
"A PCMG reafirma que o atendimento psicológico ofertado pelo Hospital da Polícia Civil está à disposição de todos os servidores (ativos e inativos) e de seus dependentes. O serviço foi disponibilizado à citada servidora, que recusou o atendimento, sob a alegação de que já realiza acompanhamento psicológico particular", conclui a nota.
Ato contínuo
No decorrer da ação de pedido de indenização, o órgão ainda informa que as atitudes do servidor acusado de assediar Jaqueline já eram conhecidas pelos agentes e demais funcionários. Em um dos relatos, feitos no curso da sindicância administrativa, dentro da corregedoria da corporação, uma mulher contou que foi assediada em 2018, durante uma confraternização na unidade policial em que trabalhavam. De acordo com a mulher, ela foi abordada e levada até uma sala pelo investigador, que exigiu que ela o beijasse. Ela então teria dito que, se não fosse liberada, "gritaria para que toda a delegacia visse o que ele estava fazendo".
"Saliento que [nome do réu] sempre apresentou comportamento inapropriado com as policiais mulheres com quem trabalhava, sendo apelidado, inclusive, de ‘touch screen’, uma vez que ele sempre estava nos tocando e abraçando", disse uma servidora.
Perseguição a quem denuncia
A Defensoria Pública ainda aponta que, dentro da corporação, há um entendimento enraizado de que não se deve denunciar um colega, mesmo diante de irregularidades no trabalho ou crimes, como nos episódios de assédio moral. Para Jaqueline, essa cultura e as perseguições a quem aponta o que está errado "são uma forma de impor poder".
"Delegado não aceita que a gente fale com ele nada além de bom dia, então, quando você os questiona sobre algo ilegal, eles se sentem como deuses sendo tocados. O nosso problema é que não aceitamos trabalhar fora da ilegalidade. Se vemos algo ilegal dentro da polícia, denunciamos, e eles não aceitam isso. Existe uma subcultura em que colega não denuncia colega. Mesmo que você veja algo errado, não pode denunciar. Mas não foi esse o juramento que fiz na academia de polícia", afirma.
A forma como a Polícia Civil lida com denúncias de assédio foi discutida em uma audiência pública da Comissão de Segurança Pública da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG), realizada em 15 de dezembro de 2023. Estiveram presentes representantes da corporação, vítimas, sindicatos e deputados estaduais. O encontro foi motivado pelo cerco no apartamento da delegada Monah Zein, em novembro do mesmo ano. A servidora ficou 32 horas trancada dentro de casa. A ação teria sido motivada pela hipótese de que a funcionária representasse um perigo para si mesma.
Na audiência, a presidente da Associação dos Escrivães da Polícia Civil de Minas Gerais, Aline Risi, afirmou que a prática de assédio moral e sexual está enraizada na cultura da instituição, afetando sobretudo as mulheres. Como resposta a esses episódios, a corporação estaria punindo quem traz os crimes à tona. Entre as sanções, estão sindicâncias sucessivas, procedimentos administrativos, remoções a contragosto e aposentadorias compulsórias.
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Além de coibir as denúncias, a PCMG também estaria deixando de punir os assediadores. Essa foi a defesa de Raquel Faleiro, diretora de convênios do Sindicato dos Escrivães de Polícia de Minas (Sinep). Durante o encontro no legislativo mineiro, ela exemplificou a questão com o caso da escrivã Rafaela Drummond, que tirou a própria vida após sofrer diversos episódios de assédio e perseguição na delegacia de Carandaí, onde trabalhava.
"No caso da Rafaela, não houve punição. O delegado foi indiciado por um crime ridículo de condescendência criminosa e teve que pagar R$ 2 mil. E o investigador, que foi o principal assediador da Rafaela, saiu impune, mesmo com as provas", confirmou a advogada Raquel Fernandes, que chegou a representar a família da escrivã.