Três histórias de dedicação à memória da capital mineira se cruzam neste aniversário de 127 anos de Belo Horizonte. Mobilizações diferentes, mas nascidas de uma indignação comum: preservar o passado e o presente de pessoas e de bairros nem sempre lembrados na história oficial da cidade. "Desde pequenininha, sempre ouvi que a Pedreira ia acabar. Era um medo muito forte dentro do povo da Pedreira. Aí, comecei a querer deixar essa Pedreira viva, porque eu sabia que ela fazia parte da história de uma cidade construída a partir das comunidades e da própria Pedreira", afirma a professora Valéria Borges.
Esse sentimento de preservar a trajetória da Pedreira Prado Lopes acompanha Valéria desde a adolescência, quando criou um jornal comunitário com outros dois colegas e, com a ajuda de uma câmera, passou a registrar a vida do bairro localizado na Região Noroeste de BH. São quase cinco décadas dedicadas a fotografar e filmar o cotidiano da comunidade num catálogo único com gerações e gerações de moradores. "Todas as pessoas que estão nos meus álbuns eu sei o nome e a história de cada uma delas."
A imagem como documento histórico de áreas periféricas da memória oficial da cidade faz também parte do dia a dia do artista visual Ronald Nascimento, de 38 anos, criador do Studio Beco, em 2014, no Aglomerado da Serra, Região Centro-Sul da capital. "Fundei para retratar pessoas da comunidade que não têm história fotográfica para poder mostrar e falar para os filhos. Meu olhar foi feito para isso: retratar pessoas que não aparecem em outras lentes", afirma.
A importância dos trabalhos de Valéria e de Ronald se conectam com outra iniciativa de resgate, preservação e multiplicação da historiografia de comunidades de BH. Neto de mineiros que vieram ajudar a construir a nova capital mineira, Mauro Luiz da Silva, o Padre Mauro, só soube aos 52 anos da existência do Largo do Rosário, comunidade com capela, cemitério e casas que teve grande importância religiosa, social e cultural nos tempos do arraial do Curral del-Rei.
"Isso me deixa muito indignado. Saber que fui privado de conhecer a minha história, saber dos meus antepassados, da população negra que habitou esse território. As escolas e os espaços educacionais de memória não nos contam isso." Em 2012, Padre Mauro fundou na Vila Estrela, Região Centro-Sul de BH, o Museu dos Quilombos e Favelas Urbanos (Muquifu) para, como ele gosta de explicar, "contar essas histórias que não são contadas, que são silenciadas em Belo Horizonte".
A vista para o "fim do mundo"
"Quando penso na cidade de Belo Horizonte e nas comunidades, vejo uma ponte que não é para todo mundo passar. Lembro que uns alunos meus falavam que queriam conhecer o fim do mundo. Eu não entendia, até que um dia me apontaram as montanhas da Serra do Curral e disseram que lá era o final do mundo. Peguei o ônibus, levei eles lá e, assim que atravessaram a cidade, parecia que um novo mundo se abriu", relembra Valéria Borges.
A família da professora, fotógrafa e fundadora de jornais dedicados a informar moradores da Pedreira Prado Lopes veio do interior de Minas no fim do século 19. O objetivo era trabalhar na construção da nova capital. Nesse fluxo, outras pessoas desembarcaram na cidade e se estabeleceram em terrenos no entorno da Avenida do Contorno. Na região da Pedreira, porém, já havia moradores quando os trabalhadores chegaram lá em busca de espaço.
"Uma vez perguntei a uma antiga moradora, na época com quase 100 anos, quando ela veio para cá. Ela disse que chegou na Pedreira em 1915 e que já tinha gente morando aqui. A Pedreira tem a história dela antes de Belo Horizonte, mas ela tem uma história que ninguém quer contar", afirma Valéria.
Saber mais sobre o passado da comunidade se tornou uma meta para ela, que passou a pedir fotos para repórteres que visitavam a região e moradores. Depois que ganhou uma máquina, começou a registrar e conhecer mais dos vizinhos, tanto que por onde passa é reconhecida na comunidade.
O empurrão partiu de uma professora que na época atuava no Centro Integrado de Atendimento ao Menor (CIAME). A educadora deu a Valéria as primeiras fotos e, como participava de muitos movimentos na comunidade, registrava para a instituição e mostrava à jovem entusiasta. Quando a escola fechou, Valéria herdou fotos e a máquina de fotografias. Desde então, a moradora da Pedreira preza para que a trajetória do seu lar seja contada de maneira legítima e que a comunidade se sinta parte da cidade.
"Conheço pessoas aqui que nunca tiraram foto"
Há 10 anos, movido por esse mesmo desejo de incluir a periferia na BH idealizada por Aarão Reis, Ronald Nascimento decidiu abrir um estúdio no Aglomerado da Serra para eternizar histórias e momentos. "Conheço pessoas aqui que nunca tiraram foto na vida", afirma o fotógrafo e graffiteiro de 38 anos, fundador do Studio Beco.
Ronald havia comprado uma câmera para registrar seus desenhos, mas como era um dos poucos da comunidade com acesso ao equipamento, passou a fotografar os moradores, até que sentiu a necessidade de investir no trabalho. Hoje, além de fazer sucesso com suas imagens, Ronald acredita que a "educação artística" é tão importante quanto o ensino escolar. Por isso, inclui em seu trabalho oficinas de fotografia de graffiti para as crianças da comunidade.
"Chegou uma época da vida que achei que tinha que comprar uma câmera porque as pessoas queriam comprar meu graffiti. Um dia, já com a câmera que juntei dinheiro, passou uma moça com uma criança perguntando se eu fazia book fotográfico. Sem experiência na época, falei que fazia e comecei a estudar fotografia. Fiz o ensaio e as amigas da mulher trouxeram os filhos para fotografar. E, como eu já conhecia a galera do grafite e do rap, passei frequentar as festas com a câmera, até que começou a desenrolar", lembra Ronald.
Para o artista, é essencial fazer esses registros porque as imagens permitem que os rostos retratados, com o contexto em que estão inseridos, contêm uma trajetória legítima. "O estúdio foi feito para ser aqui por uma questão da identidade. Gosto de fotografar pessoas que se parecem comigo, que tenham o mesmo tom de pele, mesmo perfil. Acho que o Serra é um lugar cheio de histórias para serem contadas e que outras pessoas que não fazem parte dessa realidade não teriam essa sensibilidade".
Segundo Ronald, "pensar Belo Horizonte visando somente a Praça da Estação ou a Praça da Liberdade é pensar pequeno demais. As coisas acontecem fora disso e as pessoas que fazem acontecer são excluídas".
"É o desejo de uma comunidade"
Descobrir, aos 52 anos, que a história de sua família se conecta diretamente com um patrimônio quase apagado da memória de Belo Horizonte surpreendeu Padre Mauro. Os avós de Mauro Luiz da Silva saíram do interior de Minas Gerais para ajudar na construção da nova capital.
O que ele descobriu tardiamente foi que seus ancestrais por parte de pai moraram por um período no local hoje conhecido como Largo do Rosário – um espaço no qual a comunidade negra daquela época conquistou o direito de manifestar sua religiosidade, mas que foi demolido durante a construção de BH e, se preservado, estaria hoje em Lourdes, um dos bairros com o metro quadrado mais caro da capital.
"Sou alguém que foi privado do direito de saber da sua própria história. E que preciso, então, ficar tentando imaginar como teria sido a história dos meus antepassados, porque eram negros", afirma Padre Mauro.
Há alguns anos, incomodado com essa conclusão, ele decidiu transformar a realidade. Já como padre, se mudou para o Aglomerado Santa Lúcia em 2000 e percebeu que esse debate também existia entre lideranças locais.
Oito anos depois, criaram o Memorial do Quilombo, fazendo referência ao aglomerado como um grande quilombo urbano. Já em 2012, foi a vez de inaugurar o Museu dos Quilombos e Favelas Urbanos (Muquifu), com a proposta de contar diversas histórias silenciadas.
"O Muquifu talvez seja um pouco de resposta a isso tudo, mas é o desejo de uma comunidade. O Aglomerado Santa Lúcia, dentro de um processo de autoconhecimento, de luta por direitos como moradia, alimentação e cultura, discute também o direito à memória", afirma.
Assim, Padre Mauro se tornou pesquisador e curador do museu, recebendo objetos dos próprios moradores que desejam ter a história contada ali. Ele defende que no Muquifu "não vivenciamos apenas histórias de sofrimento e dor. É uma coleção de objetos e de narrativas que falam de lutas e conquistas também, numa perspectiva de esperança, felicidade e realização".
Hoje, aos 57 anos, Padre Mauro afirma que não há como reparar o que foi feito com a própria história, mas que espera, por meio do Muquifu, mudar essa realidade para outras pessoas, principalmente crianças.
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Do apagamento à exposição de arte
Na insistência em buscar por memórias de pessoas pretas que viveram em Belo Horizonte antes de ela se tornar capital, Padre Mauro se deparou com três nomes de personagens que nunca estiveram nos livros de história: Generosa, Felicíssima e Nicolau. No Museu Histórico Abílio Barreto (MHAB), que tem em seu conjunto arquitetônico o casarão secular e antiga sede da Fazenda Leitão, foi encontrado o registro de um núcleo de pessoas escravizadas que viviam lá. Não foi descoberto nada além dos nomes dessas pessoas e que eles permaneceram na fazenda mesmo após a abolição, em 1888.
A partir dessa descoberta, o pároco e pesquisadores do Projeto de Pesquisa Negricidade criaram uma exposição que imagina quem eram essas pessoas e a história delas. A mostra "Generosa, Felicíssima e Nicolau", parte da programação oficial da Prefeitura de Belo Horizonte no aniversário da cidade, estreia sábado (14/12) a partir das 17h no Museu Histórico Abílio Barreto, na Cidade Jardim, onde o recém-reformado auditório será rebatizado com os nomes dos homenageados.
Serviços:
- "Generosa, Felicíssima e Nicolau - Nomes sem histórias e histórias sem nomes"
Dia: 14/12/2024 a 14/05/2025
Horário: 17h
Endereço: Museu Histórico Abílio Barreto, Av. Prudente de Morais, 202 - Cidade Jardim
- Muquifu
Horários: terças e quintas (13h às 17h)
Agendamento: (31) 98270-9668
Endereço: Rua Santo Antônio do Monte, 708 - Vila Estrela