Nascido e criado debaixo do Viaduto Santa Tereza, na Região Central de Belo Horizonte, Joel Pereira Gonçalves, em mais de 10 décadas de vida, nunca comemorou um Natal ou ano-novo. O fiel torcedor do América vive há quatro anos em uma pensão no Bairro Santa Efigênia, Centro-Sul da capital, onde completou, no segundo domingo deste mês (8/12) 108 anos – 101 deles sobrevivendo nas ruas da cidade.

 

No pequeno quarto que comporta somente a cama de solteiro, um armário e a TV, Joel se locomove com um pouco de dificuldade. Mas recebe a reportagem do Estado de Minas com cordialidade, oferece um banco e fala com desenvoltura. Pede para “contar a história do começo”. Órfão aos nove anos, a mãe morreu após ser picada por um escorpião, e o pai de pneumonia aguda. Joel foi deixado para sobreviver sozinho nas ruas “Para quem anda direito, qualquer lugar é lugar. Nunca quis saber de abrigo e nem asilo”, conta.

 

Descrita por ele como uma “morena forte”, Maria de Lourdes, a mãe, sempre protegeu o filho dos perigos. Ele relembra emocionado as últimas palavras dela: “Ela disse ‘não se mete em coisa errada, não deixa fazerem coisa errada com você e pode saber que de onde eu estiver estarei lhe olhando’. Aí, depois, ela morreu, a levaram e nem enterro teve”.

 

Joel Gonçalves viu BH se transformar profundamente. Para ele, a evolução da cidade é uma história viva, cheia de mudanças que presenciou com seus próprios olhos. “Nasci, Belo Horizonte era outra cidade, cheia de mato e buraco”, diz. Ele se recorda com clareza, por exemplo, de quando a charrete chegou à capital: “As charretes que levavam as pessoas para trabalhar. Ali na Rua Caetés era ponto de charrete”.

 




Vivendo como escravo

 

Sozinho, a rotina era a sobrevivência. “Via muita coisa ruim. Gente bêbada, drogada, se agredindo.” Viver nas ruas, na década de 1930, exigia bastante de um jovem negro como ele. Um dos mais marcantes capítulos da sua vida data de quando ainda era adolescente. Com 15 anos, Joel foi sequestrado e obrigado a trabalhar como escravo em uma fazenda em Aparecida do Taboado, município do Mato Grosso do Sul.

 

Ele se lembra com detalhes do período traumático. “Chegou um moço e disse: ‘Ô menino, como você se chama? Não quer dar um passeio, conhecer São Paulo?’”. Sem saber do que se tratava, Joel diz que, por inocência, aceitou a proposta e entrou no carro do homem. Mas o que parecia uma aventura acabou se transformando em pesadelo. Calado no banco de trás, Joel só teve outra interação com o rapaz já na cidade de São Paulo. “‘Amanhã vamos conhecer um lugar mais longe’, disse. Eu só aceitei e segui a viagem.”

 

 

Acabou sendo levado a uma fazenda no Mato Grosso do Sul. Lá, começou a entender o que estava acontecendo: “Chegamos, pegamos a balsa, e um capataz me mandou para uma casinha de sapê. Lá tinha muita gente com correntes nos pés e nos braços. Aí, me mandaram tirar a roupa, me deram uma tanga e colocaram um monte de correntes nos meus braços, pés e até no meu beiço”.

 

Joel viveu, então, semanas de horror. “Colocaram uma argola no meu pescoço e me deram uma enxada. Tinha muita gente, homem e mulher, ‘cavucando’ um barranco. E um capataz num cavalo ficava gritando: ‘Vamos, gente, cansa não, senão tem chicote!’. Ele batia em quem não trabalhasse”, detalha.

 

Apesar do ar de tristeza e violência, ele conta que era o mais jovem dos escravos e que acabava caindo na risada com a cena: “Eu até ria né? Aquele tanto de negro de tanga dormindo junto num paiol. Os mais velhos perguntavam: ‘tá rindo do quê, menino?’”.

 

Essa fase da vida de Joel foi encerrada por uma mulher, que ele cita como “dona da fazenda”, que prometeu ajudá-lo: “Ela me disse: ‘Não reaja aos capatazes, fique quieto e obediente que vou tirá-lo daqui. À meia-noite, eu lhe tiro daqui.” Na noite seguinte, Joel foi acordado no meio da madrugada para fugir: “Ela me acordou e me pediu silêncio. Abriu as correntes e as tirou de mim. ‘Vai sair um caminhão para levar capim, entra nele e fica encolhido. Se lhe encontrarem lá, vão bater muito, matar e jogar para as piranhas comerem’, avisou”.

 

 

“Tremendo como vara verde”, mas sem escolha, Joel se encolheu em meio ao capim e rezou para conseguir deixar a fazenda para trás: “Aquele capim gordura, grosso, cheio de carrapatos me mordendo. Quando o carro chegou à beira do rio, antes de entrar na balsa, o capataz revirou a carroceria inteira com um garfo gigante. Por um milagre, não me viu”.

 

O carro seguiu até a estação de trem, onde o capim seria colocado em um vagão: “Eles começaram a desembarcar o capim. Uma hora ele (capataz) se distraiu conversando com um homem e escapuli. Pulei em um vagão, só desci em São Paulo”.

 

Joel relembra ter descido na Estação da Luz. Emocionado, relata um momento que associa a explicação “divina”: “Pedi um homem pra pagar um café pra mim, e uma dona logo se ofereceu no lugar dele. Ela era igual a minha mãe, até achei que fosse ela. Colocou a mão na minha boca e fez sinal de silêncio, então não falei nada. Às vezes, Deus a enviou pra me ajudar naquele momento de sofrimento”.

 

Na estação, Joel foi orientado pela mulher a embarcar em um ônibus, e só desceu em Belo Horizonte. “Voltei certinho para o lugar onde sempre fiquei e nasci, ali embaixo do viaduto. Estava livre daquela prisão.”

 


Mulher de olhos verdes

 

Deixando para trás as memórias dos tempos sombrios, Joel seguiu sua rotina nas ruas. Oferecia para carregar as sacolas das senhoras que saíam do Mercado Central em troca de dinheiro ou alimento: “Meio desconfiadas, elas ajudavam, só lembro de ganhar umas notas que tinha o ‘zói’ vermelho”.

 

Ele conta que mantinha suas coisas em ordem e cozinhava em uma pequena fogueira os alimentos que ganhava: “Como ali perto do viaduto havia muitos trabalhadores, por conta da estação de trem, naquela época muita gente parava para comer comigo. Às vezes, eu ganhava um arroz, algo assim”.

 

Joel, que durante um período viveu em uma barraca de praia – apesar de repetir várias vezes que sempre foi “ele e Deus”, acabou se lembrando de uma moça, descrita por ele como “bonita dos olhos verdes”, com quem dividiu as ruas por um tempo: “Ela chegou, começou a conversar comigo e perguntou: ‘Como é que você não arruma uma companheira, uma mulher para ficar com você?’ Eu não entendia nada disso, de ter companheira, mas ela me ensinou, e acabou ficando comigo”.

 

Depois de um tempo, a moça acabou engravidando de gêmeas. Sem condições de criar as crianças, Joel registrou as filhas e as entregou para uma mulher, que se ofereceu para criá-las em São Paulo: “A dona disse que, se um dia eu quisesse ver as meninas, poderia pedir. Elas eram duas, iguais à mãe”.

 

A companheira acabou indo embora depois do episódio, e ele se viu novamente sozinho. Joel chegou a ver as filhas algumas vezes, mas depois de um tempo perdeu contato: “Até hoje quando estou sozinho, vejo as meninas na minha frente, como se estivessem ali comigo. Acho que fiz o melhor pra elas, porque se for para sofrer, sofre um. E esse um sou eu. Quis dar uma oportunidade para elas, algo que eu não pude dar na rua”.

 

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Lista de desejos

 

Enquanto conversava com a reportagem, Joel transitava entre lágrimas e risos. Ele carrega uma história de dor e superação, mas, ainda assim, mantém a esperança no coração e sonha com uma vida melhor: “Tenho o sonho de me casar, que nem gente, na igreja”, fala. “Mas dependo do dinheiro para poder morar onde quero.”

 

Também tem o desejo de cuidar da saúde e melhorar a qualidade de vida: “Quero fazer minha cirurgia de glaucoma para enxergar direito e poder ir a um forró. Adoro ver o povo dançar”.

 

No entanto, há um sonho que, para ele, permanece inalcançável. “Sabe uma coisa que nunca tive na vida? Um Natal e um ano-novo. Nunca passou isso pela minha cabeça.”

 

Mesmo com 108 anos vividos longe das comemorações, do convívio familiar e do conforto de um lar, Joel nunca perdeu a capacidade de sonhar. Ele mantém a esperança de um dia poder celebrar as festas de fim de ano com fartura e companhia. 

 

*Estagiária sob supervisão da subeditora Kelen Cristina

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