Marinete Balduino, que teve a filha morta por um acidente de moto em 2010, na Via Expressa. Hoje ela conduz a Promevidas - Associacao Comunitaria Projeto Social Marcielle Envolvendo Vidas, em homenagem à vítima -  (crédito: Túlio Santos/EM/D.A Press)

Marinete Balduino, que teve a filha morta por um acidente de moto em 2010, na Via Expressa. Hoje ela conduz a Promevidas - Associacao Comunitaria Projeto Social Marcielle Envolvendo Vidas, em homenagem à vítima

crédito: Túlio Santos/EM/D.A Press

Marcielle Balduíno de Freitas tinha 23 anos e morava no Bairro Santa Helena, em Contagem, na Região Metropolitana de BH. Formada em nutrição, se preparava para ir ao trabalho. Pegou sua moto para cumprir a mesma rotina diária: acessar a Via Expressa para chegar ao Centro da capital mineira. Foi na saída do Bairro Capelinha, ao lado de uma borracharia, que a jovem foi uma das vítimas da alta velocidade combinada com a falta de responsabilidade de um motorista de caminhão.

 

A história dela abre a segunda parte da série de reportagens “Vítimas da Velocidade”. No primeiro dia, o Estado de Minas mostrou, em números e na análise de especialistas, como o pé mais pesado no acelerador resulta em ocorrências mais graves sobre rodas.

 

No dia em que perdeu a vida, Marcielle tinha acabado de sair de casa, havia cerca de 10 minutos. Passou por uma rotatória já conhecida e acesso a Via Expressa. "Quando ela entrou na marginal, o caminhoneiro veio (em alta velocidade, segundo testemunhas) e não viu ela. Não sei como, a moto ficou presa embaixo do caminhão com a Marcielle. Ele a arrastou por cerca de 100 metros. A moto explodiu, e ela queimou praticamente 100% do corpo", diz a mãe da vítima, Marinete Balduíno, de 59.

 

 

Tratando uma depressão por causa da perda da filha, Marinete recorre a grupos de Facebook de mães que perderam filhos para compartilhar a dor com quem entende o tamanho dela. "Foi a pior cena que vi na minha vida. Nunca recebi nada da firma do Rio Grande do Sul, que era dona do caminhão. Depois, descobrimos que o motorista estava sob efeito de rebite (drogas inibidoras de sono, hoje proibidas pela Anvisa). Na época, não havia essa proibição", diz a mãe.

 

Os medicamentos do tipo rebite, muito usados por condutores para aguentar longos períodos "no trecho", não eram proibidos em 2010, quando Marcielle perdeu a vida na Via Expressa. A Anvisa só os retirou do mercado em 2011, justamente pelo desvio de finalidade.

 


Luto e paraplegia

 

Servidora publica Katherine Soares deu volta por cima. "A gente pensa assim: nunca vai acontecer comigo"

Servidora publica Katherine Soares deu volta por cima. "A gente pensa assim: nunca vai acontecer comigo"

Luiz Ribeiro/ EM/ D.A Press

 

“A gente pensa assim: ‘nunca vai acontecer comigo’. Mas, num piscar de olhos, acontecem tragédias. Vidas que se perdem, vidas que ficam com lesões, vidas que são devastadas, sonhos que acabam”. A fala é da servidora pública Katherine Soares, de 51 anos, moradora de Montes Claros (Norte de Minas), uma das vítimas do trânsito em Minas Gerais.

 

 

A data era 6 de janeiro de 1999. Katherine, que morava no Bairro Ribeiro de Abreu, na região Nordeste de Belo Horizonte, viajou com o ex-marido e dois filhos em uma van fretada em direção a Montes Claros, sua terra natal. Iria rever os parentes no período de férias. Na BR-135, na altura de Corinto (Região Central do estado), com a pista escorregadia por causa da chuva, o motorista perdeu o controle da direção do veículo, que, após derrapar, capotou e saiu da pista, despencando numa ribanceira.

 

 

No desastre, além de ter perdido a filha Amanda, então com 6 anos, a servidora pública fraturou a coluna vertebral, sofreu uma lesão traumática raquimedular (TRM) e ficou paraplégica. Mãe e filha ficaram debaixo do veículo. O ex-marido e outro filho dela, com quatro, tiveram apenas ferimentos leves.

 

“Acredito que a velocidade interferiu muito no acidente. O motorista estava em alta velocidade. (Por isso), não conseguiu frear e perdeu o controle do veículo”, diz Katherine, que, após o fato, encarou o tratamento hospitalar em Belo Horizonte, período em que passou por várias cirurgias.

 

“Para mim, foi difícil aceitar a minha nova situação física, a paraplegia, que não iria andar mais”, diz a mulher, salientando que a perda da filha foi seu maior sofrimento. “Perder uma filha em um acidente é a maior dor do mundo. É uma dor constante”, afirma.

 

“Mas, eu tinha um filho de quatro anos e precisava cuidar dele. Então, tive que superar a dor e vencer todos os obstáculos. Mas, foi muito difícil aceitar a nova condição. A vida muda num piscar de olhos com um acidente. Aceitar isso é complicado”, completa.

 

A servidora pública, sem rodeios, com naturalidade, recorda o momento doloroso em que foi comunicada da perda dos movimentos das pernas. “O psicólogo do hospital chegou pra mim e falou da paraplegia, que eu tinha que fazer fisioterapia, que, provavelmente, era irreversível e que teria que usar cadeira de rodas para me locomover”. “Em um momento desse, a gente fica sem saber como será a vida. Perde o rumo, perde o chão. ‘E agora? O que vou fazer?’”, afirma.

 

Katherine voltou a estudar e concluiu um curso superior de Ciências Sociais na Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes). Foi aprovada em dois concursos públicos, primeiro para um cargo na prefeitura de Montes Claros e, depois, para agente administrativa na Polícia Militar (PM) de Minas Gerais, função que exerce hoje.

 

 

Vítima da pressa

O último dia 12 de dezembro foi um dia marcante para o estudante de educação física Luiz Gustavo Ramos da Silva, de 28 anos, também morador de Montes Claros. Completaram-se cinco anos que ele sofreu um grave acidente de moto, que mudou completamente sua vida. “Esta é uma data em que, literalmente, nasci de novo. Hoje, estou aqui para contar a história e fazer história”, diz o universitário. Como sequela do grave sinistro, Luiz Gustavo perdeu os movimentos das pernas e se tornou deficiente físico.

 

 

Luiz hoje é paratleta e participa de corridas de paraciclismo (handbike), divulgando sua luta nas redes sociais (no Instagram, o perfil é @luiz_paratleta). “Cinco anos passam muito rápido, muito rápido mesmo. Só que o meu acidente foi mais rápido ainda, foi em milésimos de segundos”, afirma.

 

Tudo aconteceu após o almoço. Ele retornava à empresa onde trabalhava como eletricista, pilotando uma motocicleta. Com alta velocidade, a moto colidiu com um carro numa avenida do Bairro São Judas, em Montes Claros. Com o impacto, Luiz Gustavo foi arremessado a cinco metros de distância, com o seu corpo “voando” por cima do carro. Bateu a cabeça na calçada, fraturou a coluna e quatro costelas e teve os dois pulmões perfurados. Perdeu a consciência e foi levado ao hospital.

 

Permaneceu internado e passou por três cirurgias em 43 dias. Ao receber alta, viu que teria de encarar a nova realidade da cadeira de rodas, com a perda irreversível dos movimentos das pernas e também da sensibilidade da parte inferior do corpo.

 

Luiz Gustavo relata que, então com 24 anos e bastante atlético, teve que viver uma nova condição de vida. “Tive que começar do zero e aprender tudo de novo: comer, deslocar e fazer as necessidades fisiológicas. Algo difícil mesmo”, diz.

 

Sem aceitar a nova situação, ele confessa que entrou em depressão e chegou tentar suicídio com o uso abusivo de medicamentos. “Eu vi os meus pais deixando de sair e de fazer outras coisas somente para cuidar de mim. Eu me sentia um 'peso morto'. Pensei que tudo tinha acabado e nada mais teria sentido”, afirma.

 

“Comecei a pesquisar na internet e vi relatos de outras pessoas que tiveram o mesmo problema meu. Ganhei mais autonomia, fazendo as coisas sozinho, como sair da cadeira de rodas, engatinhar e voltar para a cadeira novamente...”, relembra.

 

O paratleta ressalta que, ao longo dos cinco anos após o acidente, enfrentou muitas barreiras físicas e psicológicas, o que busca superar. “São cinco anos de luta, cinco anos de resiliência. Até hoje, eu ainda enfrento algumas dificuldades. Por causa da lesão, meu corpo mudou completamente. Eu ainda estou aprendendo como é ser um deficiente físico”, diz.

 

Ele justifica que a pressa favoreceu para o triste acontecimento – “eu estava correndo para chegar ao serviço mais rápido”. O estudante de educação física tira lição da sua própria história para recomendar prudência para outros condutores no trânsito. “Independentemente da necessidade e da pressa, a gente tem que ter a consciência de que tem alguém nos esperando na volta para casa. A mãe, o pai, o irmão, a namorada ou a esposa. Temos que nos colocar no lugar do outro", completa.

 

Viúva

 

Maria Ivete Fonseca Silva  mostra foto do ex-marido Vicente, morto em  acidente

Maria Ivete Fonseca Silva mostra foto do ex-marido Vicente, morto em acidente

Luiz Ribeiro/EM/D.A. Press

 

Em companhia do marido, Maria Ivete Fonseca Silva, 46 anos, foi a um almoço com amigos em um sítio, em clima de alegria do período natalino. Não imaginava que naquele dia teria uma mudança para sempre em sua vida. No dia 21 de dezembro de 2008, deslocou até um sítio na região de Antônio Olinto, nas proximidades de Montes Claros (Norte de Minas), na garupa de uma motocicleta, pilotada pelo marido Vicente Fonseca Silva. Na volta, ao passar pelo trevo de uma rodovia, a moto foi atingida por um ônibus. Vicente morreu na hora, e Maria Ivete fraturou a coluna e ficou paraplégica.

 

 

O acidente aconteceu no trecho da saída de Montes Claros para Bocaiuva (BR-135). Maria Ivete, que, na época, tinha 30 anos, conta que o seu marido, Vicente (então, com 33 anos), iria atravessar o trevo para virar para o lado esquerdo (Anel Rodoviário Sul). Neste caso, ele deveria parar e esperar a passagem do ônibus, que seguia no sentido Montes Claros/Bocaiuva. Mas, o condutor da moto não esperou. Atravessou a pista, e a moto foi atingida.

 

Vicente morreu no local do acidente, enquanto a passageira fraturou a coluna e sofreu outros ferimentos graves. Ficou internada por cerca de um mês, sendo submetida à cirurgia. Constatada a perda irreversível dos movimentos das pernas, foi encaminhada para reabilitação no Hospital da Rede Sarah em Belo Horizonte.

 

Maria Ivete acredita que a causa principal do acidente que lhe deixou paraplégica foi a pressa do marido. “Acho que se meu marido tivesse tido paciência, parado ter deixado o ônibus passar primeiro, antes de atravessar (a pista), hoje eu não estaria na cadeira de rodas, e ele estaria entre nós”, afirma.

 

“Minha vida ´dá um livro”, comenta a vítima. Ela não conhece o pai biológico. Na adolescência, na zona rural de Francisco Sá (Norte de Minas), município onde nasceu, se viu obrigada a trabalhar junto aos fornos quentes de carvão, “ajudando” o padrasto, que era responsável por uma carvoeira numa área de reflorestamento de eucalipto.

 

Ainda na juventude, se libertou do duro trabalho com o propósito de estudar. Mudou-se para Montes Claros, onde passou a trabalhar como doméstica. Pouco depois, perdeu a mãe e passou a cuidar seus três irmãos menores.

 

Concluiu o ensino médio. Depois do trabalho como empregada doméstica, batalhou como atendente de padaria e vendedora de jornais, entre outras atividades.

 

Maria Ivete, após a colisão, mesmo com a perda da sensibilidade da “cintura pra baixo” e dos movimentos da pernas, demorou vários meses para saber que ficaria para sempre na cadeira de rodas. “Acho que eu não tinha coragem de perguntar (se voltaria a andar) e ficava esperando para ver se algo iria acontecer. Acho que eles (os médicos) também queriam falar comigo. Somente diziam que eu iria fazer fisioterapia”, diz.

 

A mulher conta que só se deu conta de não voltaria a andar cerca de oito meses depois do acidente, quando recebeu um comunicado. “A minha ficha caiu mesmo foi quando eu recebi uma carta do INSS (Instituto Nacional de Seguridade Social), informando a minha aposentadoria por invalidez. Foi quando entendi a gravidade do meu caso e desabei”, confessa a ex-vendedora.

 

“Chorei muito, mas reagi logo. Busquei forças em Deus”, diz Maria Ivete, assegurando que, além da fé, foi animada a encarar a nova realidade e seguir em frente por causa do seu único filho, Joao Henrique, então, com três anos. Hoje, aos 19, ele trabalha como entregador em uma empresa produtora de frutas do Norte de Minas.


Sustos e reflexão

Marinete e Katherine perderam as filhas. Luiz Gustavo se tornou deficiente físico. Camila Oliveira Leite, de 24, e Pamella Barbosa, 30, contaram com uma dose de sorte ou até mesmo com a interferência divina para escapar de danos irreversíveis. As duas sofreram acidentes recentes que reúnem elementos de imprudência e alta velocidade.

 

"Eu estava indo para um salão. Tinha um cruzamento. A preferência era minha, mas um carro que vinha não parou e me pegou. Eu apaguei completamente com a batida. Ele estava correndo bastante. Não conseguiu parar", diz a auxiliar de topografia, Camilla Leite, moradora de Itabirito, Região Central do estado. O fato aconteceu em 20 de julho, no Bairro Agostinho Rodrigues, mesma cidade.

 

"Estou afastada pelo INSS até janeiro. Fiquei entubada, porque não conseguia respirar. Meu cérebro inchou bastante. Graças a Deus, não precisei de cirurgia. Mas, eu perdi minha memória toda. Não sabia ir ao banheiro, não sabia o nome dos meus pais nem tinha coordenação para andar. É como se minha mente tivesse sido apagada. Dois meses depois, comecei a lembrar das coisas. Um caderninho me ajudou. Fui anotando as coisas", diz a vítima.

 

No caso de Pamella, uma série de fatos a levou até o afastamento pelo INSS. A técnica de enfermagem saía da Região Centro-Sul de BH em direção ao Bairro Buritis (Oeste), quando sofreu um acidente na Rua Montes Claros, no Bairro Anchieta (Centro-Sul). "Estava chovendo muito e eu escorreguei, caí no chão. É uma rua muito íngreme. Estava esperando o socorro, quando um carro tentou descer o morro e não conseguiu frear. Ele jogou o carro para o meio-fio. Na tentativa de retirar o carro, porque estava com pressa, ele perdeu o controle e veio com o carro em cima de mim", recorda.

 

Pamella trincou o tornozelo e a clavícula e sofreu queimaduras e lesões no joelho. "Fiquei um mês de molho e fiz fisioterapia depois. Fiquei três meses sem andar por conta das lesões no joelho. Voltei a trabalhar só em outubro deste ano", diz. 

 

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Projeto social como legado

 

Além de recorrer à rede social, Marinete Balduíno, que perdeu a filha em um acidente causado pelo excesso de velocidade em 2010, lembra diariamente da filha ao manter o Projeto Social Marcielle Envolvendo Vidas, em Contagem. “No meu momento de luto, eu precisava de alguma coisa para tentar seguir em frente e amenizar a dor. Não tem um dia na vida que eu não me lembre dela. Então, montei essa associação. A gente tem lá psicólogas, aulas de matemática, exame de vista gratuito, doação de materiais e alimentos para a população em situação de rua e aulas de pintura. É um espaço de legado e homenagem à vida da Marcielle”, afirma a mãe.