“Foi o dia mais difícil da minha vida”. A fala é do aposentado Ronildo Dias de Brito, de 62 anos. Ele faz referência ao grave acidente que sofreu na Rodovia dos Bandeirantes, na Região Metropolitana de São Paulo, onde trabalhava como motoboy. A data era 9 de maio de 2007. “Eu estava em uma velocidade alta porque a pista exigia isso”, argumenta.
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O relato de Ronildo, ainda que impactante, é anterior ao boom do serviço de motoboy nas ruas e avenidas das grandes cidades brasileiras, que se intensificou durante e após a pandemia do novo coronavírus, a partir dos aplicativos de entrega. Apesar da mudança de paradigma da profissão, a realidade enfrentada por Ronildo em 2007 era semelhante à de hoje: o tempo é dinheiro, literalmente.
“Os médicos chamaram minha família e avisaram que eu não sobreviveria”, relembra a vítima, que sofreu fratura exposta na perna esquerda e teve a perna direita amputada, além de outros ferimentos graves. Permaneceu internado em um hospital de Jundiaí (SP) por 65 dias. Encarou, ainda, o tratamento por cerca de 120 dias, com idas ao hospital e sessões de fisioterapia.
O ex-motoboy é natural de Montes Claros, no Norte de Minas, e foi trabalhar na capital paulista. Depois do acidente, retornou à cidade natal. Hoje, usa uma perna mecânica. A prótese lhe garante autonomia em suas atividades diárias, como subir e descer escadas. O acidente aconteceu no dia em que o Papa Bento XVI (1927-2022) iniciava sua visita a São Paulo, para canonização de Frei Galvão, primeiro santo brasileiro. A visita do pontífice fez parar o trânsito e dificultou o socorro à vítima.
O ex-motoboy recorda que deslocava para fazer a entrega (de toner para impressora) e que estava numa velocidade em torno dos 100 km/h, quando a motocicleta que pilotava se chocou com a traseira de uma carreta na movimentada rodovia.
Ronildo afirma que realmente estava em alta velocidade quando sofreu o grave acidente, mas justifica que os motoboys levam uma vida arriscada, acelerando entre os carros nas vias movimentadas das capitais, no cumprimento de uma rotina que faz parte da profissão. “As entregas têm hora marcada. Por isso, o motoqueiro precisa andar em alta velocidade”, diz.
“Eu andava com bastante velocidade, mas não fazendo gracinha. Corria porque era obrigado a fazer aquilo. Não tinha como andar devagar”, diz. Ele assinala, porém, que sempre procurava respeitar as leis de trânsito.
Atividade de risco
O trabalho de motoboy em São Paulo, atividade que era exercida pelo mineiro Ronildo Dias de Brito, é altamente arriscado. De acordo com dados do sistema de informações (Infosiga) do Departamento Estadual de Trânsito de São Paulo (Detran-SP), nos primeiros 10 meses deste ano, foram registradas 2.175 mortes de motociclistas no estado, com um aumento de 20,5% em relação ao mesmo período de 2023.
Ouvido pelo Estado de Minas, o presidente do Sindicato dos Mensageiros Motociclistas, Ciclistas e Mototaxistas Intermunicipal do Estado de São Paulo (SindimotoSP), Gilberto Almeida dos Santos, conhecido como Gil, admite que o excesso de velocidade é um dos fatores que contribuem para os acidentes com a categoria. Por outro lado, alega que os motoboys aceleram mais por conta do modelo de remuneração das corridas adotado pelas contratantes do serviço.
“O excesso de velocidade se dá muito pelo modelo de remuneração. É uma espécie de leilão de entrega, entende? Quanto mais corridas, mais o cara ganha. Isso acaba gerando uma roleta russa e empurrando o trabalhador para a morte”, afirma Gilberto Santos.
Ele lembra que, pela lei trabalhista, a carga horária diária máxima é de oito horas, mas que os motoboys são submetidos a jornadas de trabalho em dobro. “Existem trabalhadores aí rodando 16 horas (por dia) de domingo a domingo, sem descanso, sem profissionalização nenhuma. Sabe o que acontece? Acidentes por conta de todas essas questões’, afirma o presidente do SindimotoSP.
Segundo o sindicalista, o estado de São Paulo conta com cerca de 550 mil motociclistas que trabalham como entregadores. A distância percorrida por cada motoboy na capital paulista oscila muito (depende do tipo de entrega), variando de 120 a 280 quilômetros por dia, informa Gil.
O presidente do SindiMotoSP sugere o fim da precarização como a primeira medida a ser adotada para diminuir os acidentes com os motoboys e melhorar as condições da categoria. “Tem que acabar com a precarização que as empresas de aplicativo mergulharam a nossa categoria. A gente tem empresas pelo Brasil afora, que não têm compromisso nenhum com os trabalhadores, que emprega mais de 300 mil pessoas dentro de um sistema precário, sem definição de jornada de trabalho, sem remuneração digna, sem um mínimo de condição”, diz.
O sindicalista lembra que foram aprovadas três leis federais (12.009, 12.436 e 12.997), que estabelecem as medidas de segurança obrigatórias para as empresas contratantes dos trabalhadores sobre duas rodas, que incluem o uso de equipamentos e cursos de pilotagem. Porém, elas são descumpridas pelas empregadoras. “As empresas, para conseguir mão de obra barata, despreparadas, abrem aplicativos sem critério nenhum e enchem as plataformas de trabalhadores sem experiência, colocando trabalhadores numa fábrica de mutilados, de acidentados e de mortes”, diz Gilberto Santos.
Celular complementa risco
Foi em 29 de julho deste ano que Marcus Alves viu sua vida mudar completamente. Ele passava pela Rua Romualdo Lopes Cançado, no Bairro Castelo, em BH, por volta das 20h. Pai de duas filhas de 13 e 10, o motoboy estava em meio a uma corrida quando precisou conferir a rota no GPS do celular. Sem cogitar parar o veículo, com objetivo de não perder tempo, bateu contra um caminhão e sofreu uma fratura exposta na perna direita.
“As pessoas que estavam próximas me deram um primeiro apoio. Chamaram o Samu, que me levou para o (Hospital de Pronto-Socorro) João XXIII. Fiz um primeiro procedimento no dia do acidente para evitar a amputação, mas não tinha mais passagem de sangue para a minha perna por conta do rompimento de todas as artérias”, diz.
Contribua para a vaquinha de Marcus Alves, motoboy que perdeu a perna em BH, clicando neste link
Hoje, Marcus aguarda o pagamento do seguro por parte do aplicativo para dar continuidade à sua vida. Ele chegou a abrir uma vaquinha on-line para financiar uma prótese, enquanto aguarda a longa fila para o procedimento no SUS. “Inclusive, até assinei um termo de quitação do valor a ser recebido pela minha lesão permanente. Comecei a rodar neste ano. Tinha pouco tempo. Eu não tinha muita experiência como motoboy, apenas como motociclista normal”, afirma.
Após a prótese, Marcus pensa em trabalhar como analista de sistemas, profissão que está em alta no mercado de trabalho. Ao olhar para o passado, lamenta os riscos que envolvem a vida do motoboy. "É uma profissão de muito risco por conta do trânsito. Os motoristas de carro, principalmente, (trazem muito risco), porque a vida é muito corrida. As pessoas transitam de um lado para o outro, então complica. Até pelo tempo de jornada”, diz.
Sem representação
A reportagem procurou entidades que representariam a categoria dos motoboys em Belo Horizonte e em Minas Gerais, mas não encontrou qualquer registro de uma organização ativa.
Tentou contato com a Associação dos Motofrentistas de BH e Região, mas os telefones disponíveis na internet não funcionam mais.
Os profissionais do setor se organizam, principalmente, por meio de grupos nas redes sociais, mas não há uma liderança clara, o que, evidentemente, fragiliza a relação entre essas profissionais e as gigantes do setor de entregas.
Outro lado
Em nota, a Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia (Amobitec) informa que as empresas do setor "investem e trabalham continuamente para buscar cada vez mais proteção aos condutores e usuários por meio de ferramentas tecnológicas que atuam antes, durante e depois de cada viagem".
A entidade "contesta análises infundadas que atribuem aos aplicativos a responsabilidade por eventuais aumentos de acidentes de trânsito por motos". De acordo com a Amobitec, "800 mil motociclistas cadastrados no Brasil nas três maiores empresas do setor representam apenas 2,3% da frota nacional de 34,2 milhões de motocicletas, motonetas e ciclomotores".
"Vale ressaltar que 53,8% dos motociclistas no Brasil não têm habilitação, totalizando 17,5 milhões de condutores irregulares no país, segundo a Senatran. No caso das associadas da Amobitec, 100% dos condutores têm obrigatoriamente a CNH e a documentação regular de seus veículos", informou.
A Amobitec ainda esclareceu que "as empresas associadas contam com um seguro contra acidentes pessoais durante as viagens para os motociclistas parceiros, que são orientados a seguir as leis de trânsito vigentes, além de receberem conteúdos educativos sobre direção segura". Também garantiu que o setor está "em diálogo constante com o Poder Público, de forma transparente e colaborativa, colocando-se à disposição para contribuir com iniciativas que busquem avanços na segurança para os motociclistas dos aplicativos e usuários".
A reportagem procurou o iFood, principal aplicativo de delivery de comidas do país, para se posicionar sobre as alegações da categoria, mas a empresa informou que o retorno caberia somente à Amobitec.