Alerta reforçado para quem já teve dengue
Confirmado pelos primeiros boletins do ano, retorno do sorotipo 3 após longo sumiço abre espaço para a perigosa reinfecção de milhares de pessoas que adoeceram
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Siga noO período sazonal das arboviroses transmitidas pelo mosquito Aedes aegypti mal começou, mas os números dos primeiros balanços já transmitem um claro recado para quase a totalidade dos 1.379.717 moradores de Minas Gerais que tiveram dengue na maior epidemia da doença no estado, registrada em 2024: todo cuidado é pouco para evitar uma reinfecção, que tende a provocar formas mais graves da enfermidade.
Conforme o último boletim epidemiológico divulgado pela Secretaria de Estado de Saúde (SES-MG), quase a metade das amostras coletadas nas 12 regionais de saúde de Minas – 56 de 113 – testaram positivo para o sorotipo 3 da doença (Denv3), contra o qual uma ampla parcela da população ainda não tem imunidade. Esses primeiros dados reforçam alertas que já vêm sendo disparados pelas autoridades de saúde desde o fim do ano.
Embora os registros de casos de dengue estejam bem abaixo dos verificados na primeira quinzena de janeiro do ano passado, o que projeta uma temporada menos crítica que a anterior, a possibilidade de quem teve a enfermidade voltar a contraí-la é impulsionada pelo fato de o sorotipo 3 ter ficado praticamente fora de circulação por 15 anos e tido uma baixíssima representatividade no quadro epidêmico do ano passado, quando a variante prevalente foi a DENV1.
Professor do Departamento de Microbiologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e ex-presidente da Associação Brasileira de Virologia, Flávio da Fonseca explica que o tipo 3 da dengue estava apenas “escondido”, ou seja, circulava mas contaminava poucas pessoas. A variante entrou no país entre 2002 e 2003 e deixou de ser vista com frequência três anos depois. Para o virologista, o “reaparecimento” é decorrente da renovação populacional e, em consequência, à vulnerabilidade de novas pessoas à doença.
Fonseca explica que, ao longo da vida, uma pessoa pode ser contaminada quatro vezes pela doença – uma para cada tipo de variante. A cada infecção, o corpo gera uma resposta imune para aquele sorotipo, mas não para os demais. E o risco de desenvolvimento da forma mais grave da doença cresce. “A dengue apresenta uma circunstância excepcional, que acontece com poucos outros vírus: quando uma pessoa é infectada por um sorotipo e, depois, por outro, essa segunda infecção acaba sendo mais grave. Isso é chamado de Ampliação Dependente de Anticorpos (ADE)”, explica Fonseca.
Ontem, o secretário de Saúde de Belo Horizonte, Danilo Borges, e o prefeito em exercício, Álvaro Damião (União Brasil), anunciaram medidas de prevenção em escolas da rede pública da capital. Até a volta às aulas, em fevereiro, os agentes de combate a endemias (ACE) vão vistoriar as 223 instituições de ensino – sendo que 100 já foram analisadas. À imprensa, o chefe da pasta da Saúde belo-horizontina afirmou que o aumento de contaminações pelo Denv3 é algo que preocupa a administração municipal, embora, até o momento, a situação ainda mantenha o Executivo apenas em alerta. “Estamos observando. Mas não é motivo para ficarmos mais do que alertas. Temos que ficar alertas e fazer a nossa parte. É com isso que a Saúde e outras secretarias têm trabalhado no momento”, afirmou o secretário.
gravidade ampliada
No último ano, a saúde pública de Minas analisou o sorotipo do vírus em 102.635 amostras laboratoriais de pacientes com dengue. As variantes 1, com a maior parte (91,16%), 2 e 4 foram detectadas em 99,6% delas. O sorotipo 3 apareceu em apenas 0,4%. Nas duas primeiras semanas deste ano, o Denv3 representa 49,55% dos testes, o que indica uma alta circulação da variante. Conjugados, os números projetam uma ampla margem para a reinfecção de quem teve dengue no ano passado, o que poderia causar mais um surto consecutivo da arbovirose.
Para Flávio da Fonseca, esse é o principal problema da recirculação da variante, uma vez que de forma geral a maioria da população não está mais imune a ela. Com isso, o virologista apresenta dois cenários preocupantes. O primeiro: a intensificação da circulação do vírus e, assim, o crescimento das contaminações. O segundo: a grande possibilidade de reinfecção e, por isso, o aumento das infecções graves.
“Mas, a principal preocupação é que é um vírus que estava desaparecido por muito tempo e a população de uma forma geral não está mais imune a ele. Quem é mais novo que 20 anos não tem imunidade a ele e, de repente, o sorotipo volta a circular aumentando então essa perspectiva de um incremento de casos mais graves”, reforça.
CENÁRIO NO ESTADO
Em pouco mais de uma semana, de 7 a 15 de janeiro, Minas Gerais confirmou 1.454 novos casos de dengue. Nos 16 primeiros dias de 2025, a SES informou, no Painel de Monitoramento de Casos, que 1.514 casos suspeitos testaram positivo para a arboviros. Os números de casos prováveis também saltaram em nove dias. Na primeira semana do ano, a Saúde mineira investigava 288 possíveis contaminações. Até o início da tarde de ontem (16/1), outros 3.287 registros ainda estavam em investigação.
Logo no início da terceira semana da dengue em 2025, Minas Gerais já registrou dois óbitos pela doença. A informação foi confirmada pelo Ministério da Saúde,por meio do painel de monitoramento das arboviroses atualizado na terça-feira (14/1). No entanto, a Secretaria de Estado de Saúde (SES-MG), ainda não confirmou as mortes.
Ao Estado de Minas, Eduardo Prosdocimi, subsecretário de Vigilância em Saúde da SES-MG, explicou que a divergência de informações se deve à cronologia do contágio dos pacientes. Isso porque, embora a União tenha confirmado as mortes para o período sazonal de 2025, uma investigação ainda está em andamento.
“Esse tipo de conferência é habitual e, muitas vezes, ocorre também de o município lançar eventualmente um óbito por dengue, sendo que não foi completamente investigado, e precisamos fazer a correção desse dado. Isso é comum, em especial no início do período sazonal, quando os números ainda estão baixos, então, qualquer dado a mais ou a menos gera uma variação percentual muito importante”, disse Prosdocimi.
SURTOS CONSECUTIVOS
Historicamente, as epidemias de dengue ocorrem a cada dois ou três anos, mas o paradigma foi quebrado no ano passado, o segundo consecutivo de forte disseminação da doença em Minas. Para o virologista Flávio da Fonseca, as sequências de alta nos casos têm acontecido, principalmente, devido à recirculação de variantes antes em segundo plano. Mesmo assim, ele afirma que a aproximação de picos endêmicos, sem períodos interepidêmicos, é “muito preocupante”.
Em 2024, Minas viveu a maior epidemia de dengue da história, ficando atrás somente de São Paulo entre os estados com o maior número de casos. A situação de emergência em saúde pública decretada pelo governo do estado começou em fevereiro, chegando ao fim apenas em julho. Um total de 267 municípios também recorreu à medida.
O especialista diz acreditar que os surtos estão ligados também às mudanças climáticas e ambientais. “Na verdade é um processo que temos visto no mundo inteiro com esses ‘vírus malucos’ que aparecem, como a própria COVID-19, surto de MPox e, agora, de doença respiratória na China. Acho que a gente realmente está em um ponto muito grave e sensível do nosso histórico enquanto agentes do processo de aquecimento global e destruição de ambientes naturais”.
No último dia 10, a ministra da Saúde, Nísia Trindade, esteve em Belo Horizonte para anunciar novas tecnologias que serão empregadas no controle das arboviroses no estado. Com o crescimento da preocupação da circulação do DENV3, cidades da Grande BH vão receber Estações Disseminadoras de Larvicidas (EDL), além da expansão do Método Wolbachia e a Borrifação Residual Intradomiciliar (BRI) em escolas e centros de saúde. O objetivo da ação é intensificar a contenção da proliferação dos vetores das doenças.
PREVENÇÃO É A MELHOR ARMA
Desde o fim do decreto de emergência em saúde pública, em 1º de julho de 2024, a Secretaria de Saúde tem se preparado para o período sazonal das doenças transmitidas pelo mosquito Aedes aegypti – dengue, zika e chikungunya – deste ano. Em entrevista ao EM, o subsecretário de Vigilância em Saúde contou que, ainda em agosto, a pasta firmou um acordo com o Conselho de Secretarias Municipais de Saúde de Minas Gerais para o repasse de mais de R$ 120 milhões destinados às ações de prevençãos para o período sazonal, que começou em 1º de janeiro, fossem feitas.
Apesar das medidas de enfrentamento às arboviroses terem sido tomadas cinco meses antes da época dos mosquitos, Prosdocimi não acredita que os casos sejam tão volumosos como no último período. “Os números indicam que não, mas é melhor a gente estar vigilante e atento para conseguirmos dar uma resposta cada vez mais oportuna”.
A pasta focou, desde setembro, na ampliação do manejo clínico, com capacitação em todos os municípios. “O ressurgimento do sorotipo 3 é um motivo, sim, de preocupação (…). Por isso, estamos trabalhando o manejo clínico. São ações preparatórias (…) para um enfrentamento forte e robusto, evitando que tenhamos uma epidemia como foi a do ano passado, afirma o subsecretário.
O infectologista Leandro Curi, que integra a equipe do Hospital Semper, acredita que o Brasil perdeu a guerra contra o vetor transmissor da dengue. Ele defende que a prevenção mais eficaz é a vacina. “Minha expectativa é que, enquanto a vacina ainda não é produzida em nosso país, seja possível comprar mais doses para ampliar a proteção e estendê-la para outras faixas etárias”, destaca.
No Brasil, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) já aprovou o uso de duas vacinas contra a dengue: Qdenga, do laboratório chinês Takeda; e Dengvaxia, do laboratório francês Sanofi- Pasteur. A primeira foi incorporada ao calendário de vacinação e é distribuída pelo Sistema Único de Saúde (SUS) desde o último ano. Ela é indicada para pessoas de 4 a 60 anos.
De acordo com o Ministério da Saúde, por conta da dificuldade de produção e importação das doses, nas Unidades Básicas de Saúde (UBs) o imunizante está sendo ofertado para crianças de 10 a 14 anos, sendo que em alguns estados e municípios, devido à falta de procura, o público-alvo foi ampliado para 6 a 14 anos. Já o imunizante francês pode ser aplicado em pessoas de qualquer idade, mas só pode ser utilizada por aqueles que já tiveram dengue.
A baixa adesão à vacinação contra a dengue também é um fator que preocupa as autoridades. Segundo o Ministério da Saúde, em Minas Gerais, apenas 17% do público elegível – crianças e adolescentes dos 6 aos 14 anos de idade – completou o esquema vacinal. Das 376,8 mil doses distribuídas, somente 165,5 mil primeiras doses foram aplicadas, e pouco mais de 18,6 mil pessoas retornaram para a segunda dose. n