Condomínio Sapucaí: o projeto que quase ofuscou mirante em BH
Complexo comercial com 118 lojas ocuparia toda a extensão da rua entre os viadutos Santa Tereza e da Floresta, cobrindo a vista atual a partir da mureta
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Siga noA Rua Sapucaí se tornou um valorizado ponto de encontro com vista privilegiada para o Centro de Belo Horizonte, o que inspirou o Circuito Urbano de Arte (CURA) a transformar a região no primeiro Mirante de Arte Urbana a céu aberto do mundo. Porém, um projeto comercial dos anos de ditadura militar quase mudou tudo nesse espaço público, o que teria ofuscado os planos da cidade para a rua, inclusive a famosa visão do pôr do sul a partir da mureta.
O Sabia Não, Uai!, série especial do Estado de Minas, descobriu nos arquivos do jornal um projeto praticamente desconhecido da cidade, mas que teria grande impacto se tivesse saído do papel: o distrito comercial “Condomínio Sapucaí”. A construção de um gigantesco galpão, que ocuparia toda a extensão da Rua Sapucaí – da Avenida Assis Chateaubriand ao Viaduto da Floresta –, tem relação com a linha férrea da capital e está de uma certa maneira ligada ao antigo hotel Othon Palace e outras construções marcantes da história de BH.
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A única imagem conhecida do Condomínio Sapucaí aparece em uma reportagem do Estado de Minas de 30 de abril de 1964, sobre o título “Iniciativa da RMV transformará a fisionomia da Rua Sapucai”. A imagem do “imponente bloco arquitetônico” que seria construído naquele trecho da cidade, como ressalta o texto, dá uma dimensão de como o empreendimento mudaria o visual de um dos pontos mais importantes da capital desde a a fundação de BH.

O Condomínio Sapucaí, projetado pelo arquiteto Raul de Lagos Cirne – que tem o Othon Palace, o Hotel Del Rey e dezenas de outros prédios icônicos no currículo – seria um complexo comercial de armazéns com 118 lojas no terreno da Rede Mineira de Viação entre as muretas da rua e a atual Estação Central do metrô. A artista gráfica Soraia Piva, do Estado de Minas, fez para o Sabia Não, Uai! uma projeção de como seria hoje a região caso o condomínio tivesse sido construído durante o regime militar.
BH cresceu a partir da Estação
“Aquele ponto da Praça da Estação é importante para o crescimento da cidade, já que é um portal de entrada. Foi nosso primeiro mercado, então, aquela região se desenvolveu muito. Por ali chegavam pessoas e material de construção, tudo que se demandava para a cidade”, explica o arquiteto e professor de pós-graduação da PUC Minas Ulisses Morato.
Antes de 1897, uma primeira e provisória estação foi instalada para ajudar na circulação de materiais e pessoas na construção da nova capital planejada. No mesmo período, o Bairro Floresta começou a se formar, pois a região foi um dos pontos de moradia para trabalhadores que vieram ajudar nas obras, formando uma das primeiras favelas da cidade. No início do século 20, porém, com o desenvolvimento da cidade, esses operários foram obrigados a se mudar para que a área passasse por obras.
A segunda estação foi inaugurada em 1922, e apesar de ter passado por revitalizações no decorrer do tempo, é a mesma que conhecemos atualmente. Desde a construção do armazém da Estrada de Ferro Oeste de Minas, o lote no entorno não teve utilização, e por ser aberto, a presença de pessoas que não eram do bairro era motivo de insatisfação entre os moradores da época.
Os planos do Condomínio Sapucaí
Em 1964, para tentar aproveitar esse espaço, a Cia. Urbanizadora da Rede Ferroviária Federal, juntamente com a Rede Mineira de Viação (RMV), encomendou a Raul de Lagos Cirne o projeto do Condomínio Sapucaí. Contudo, um ano depois, a Rede Mineira de Viação deixou de existir e os planos não saíram do papel. A descoberta desse projeto arquitetônico surpreendeu até mesmo a família de Cirne, que faleceu há oito anos.
“Não tem nada referente ao projeto do Condomínio Sapucaí no portfólio dele. Acontece que grande parte dos desenhos eram estudos feitos para conhecidos. Ele oferecia estudos de graça, arriscava um esboço e só cobrava se desse certo”, conta Gustavo Cirne, filho de Raul e também arquiteto.
Um arquiteto notório na capital
Documento feito pela família de Cirne criou um memorial sobre legado do arquiteto para a capital mineira e várias outras cidades do Brasil. O arquivo reúne mais de 130 projetos arquitetônicos e de urbanismo criados por Raul de Lagos Cirne e, apesar do grande número de trabalhos, não chega a incluir todos os trabalhos do requisitado arquiteto.

Tendo Oscar Niemeyer como paraninfo, Raul se formou em 1951 como engenheiro arquiteto pela Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Sua carreira começou quando, no mesmo ano de sua formação, venceu um concurso e teve como prêmio a missão de esboçar todas as sedes do Banco do Comércio e Indústria.
Em sua trajetória, teve participação em projetos de edifícios comerciais, residenciais, hoteleiros, esportivos e de saúde. Atuou em Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia, Goiânia, Espírito Santo, Brasília, Piauí, Paraíba e Maranhão. Estádios como o Governador Ernani Sátyro, conhecido como O Amigão, em João Pessoa; o Estádio Municipal de Campina Grande; e o Estádio de São Luís no Maranhão foram projetados por Raul Cirne.
Profissional múltiplo, tinha apreço pelo estilo arquitetônico modernista, mas explorou também estilos como brutalismo e colonial. “Nos anos 1950 e 60, com a urbanização da cidade havia alta demanda por obras e poucos arquitetos. Papai era um desses. Lembro que ele nem tinha muito tempo: a vida era só arquitetura. Aos domingos, quando deveria folgar, trabalhava em casa, fazia perspectiva nos projetos e pintava a guache”, lembra Gustavo Cirne.
Entre as construções icônicas de Raul Cirne em BH estão o Othon Palace Hotel, Hotel Del Rey, Toca da Raposa I, Clube Labareda, Jaraguá Country Clube, Edifício Raposo Tavares, Edifício Parque das Mangueiras, Cine Palladium, Subestação Centro da CEMIG, Teatro da Cidade e a sede do CREA-MG.
Legado passa por retrofit
O Othon Palace Hotel, no Centro de BH, em breve vai reabrir com uma nova proposta. O edifício, fechado desde 2018, passa por um processo de restauração que preserva a arquitetura original, processo também conhecido como retrofit. Neto de Cirne, de quem herdou o nome e a profissão, Raul foi convidado a acompanhar a apresentação do projeto de restauração. “Achei a ideia legal, porque estão mantendo o máximo possível das características iniciais do projeto, até mesmo móveis.”
O Sabia Não, Uai!
As reportagens do Sabia Não, Uai! mostram de um jeito descontraído histórias e curiosidades relacionadas à cultura mineira. A produção conta com o apoio do vasto material disponível no arquivo de imagens do Estado de Minas, formado também por edições antigas do Diário da Tarde e da revista O Cruzeiro, e por vídeos digitalizados da TV Itacolomi. Todos os vídeos desta temporada e das anteriores estão disponíveis nas plataformas de podcast e no canal do Portal Uai no YouTube.
O Sabia Não, Uai! foi um dos projetos brasileiros selecionados em 2023 para participar do programa Acelerando Negócios Digitais, do Centro Internacional para Jornalistas (ICFJ), iniciativa apoiada pela Meta e desenvolvida em parceria com diversas associações de mídia (Abert, Aner, ANJ, Ajor, Abraji e ABMD) com o objetivo de atender às necessidades e desafios específicos de seus diferentes modelos de negócios.
Arquivo EM
Se você gostou de mais esta história recontada pelo especial Sabia Não, Uai!, aproveite para acompanhar nossa série sobre a memória do jornalismo brasileiro. O Arquivo EM conta, a partir de buscas na Gerência de Documentação e Informação (Gedoc) dos Diários Associados em Minas Gerais, reportagens quase esquecidas sobre Minas Gerais e o país.