Do início ao fim, a agonia do Córrego Vilarinho
Manancial que percorre e dá nome a uma das principais vias de Venda Nova, em BH, sofre com a degradação em todo o seu curso
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Siga noQuando chove, a ameaça dos alagamentos se instala em 80% (4.875 metros) dos 6.075 metros da Avenida Vilarinho, segundo a carta de inundações da Prefeitura de Belo Horizonte (PBH). Situação que traz risco de deixar ocupantes de veículos e pontos de ônibus ilhados, enxurradas arrastarem pessoas ou de transbordamentos devastarem comércios. Em 2024, a Defesa Civil da capital precisou erguer três bloqueios de trânsito para preservar motoristas e passageiros. Só entre janeiro e fevereiro de 2025, foram ao menos quatro interdições. Se com as chuvas na área de maior movimento dessa via da Regional Venda Nova o Córrego Vilarinho é um transtorno quando enche demais, mais acima o manancial é alvo de descartes de lixo, esgoto e entulho, tragicamente o que se volta contra a população, justamente na forma de alagamentos.
De causadoras de problemas e vítimas de poluição, as águas que originam o Córrego Vilarinho são consideradas provedoras da comunidade nos pontos de nascentes. Nesses berços do manancial, quem se utiliza do líquido cristalino e fresco para consumo e atividades domésticas o defende ativamente e preserva suas fontes.
O Córrego Vilarinho é um dos cursos d'água de BH mais lembrados pelas tragédias de alagamentos com mortos e prejuízos. Por isso, é também local de grandes intervenções sanitárias da PBH para domar suas águas e que, só nos últimos anos, resultaram em bacias de contenção de excedente de água das chuvas como a Caixa de Captação Vilarinho (Metrô), Vilarinho 1, Liége, Várzea da Palma, Lareira e dois reservatórios profundos em conclusão (Nado 1 e Vilarinho 2).
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Para mostrar os diferentes desafios desse importante manancial da Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas ao longo de seu caminho até desaguar no Ribeirão Izidora, a reportagem do Estado de Minas percorreu todo o curso d'água desde a primeira fonte, descrevendo sua rápida degradação, até quando deixa de ser uma vítima da poluição para ser considerado um vilão.
Onde tudo começa
O Córrego Vilarinho começa e termina seu curso na escuridão das galerias subterrâneas da avenida de mesmo nome. O início se dá após o bueiro na confluência com a Rua Padre Pedro Pinto, no Bairro Leblon. A sua foz se situa em outra tubulação, após a Avenida Cristiano Machado, perto da Catedral Cristo Rei, no Bairro Juliana, quando a massa de água passa a se chamar Ribeirão Izidora.
Mas a primeira fonte de água do Córrego Vilarinho não vem do seu início formal. Ela brota mais acima, no Bairro Céu Azul, perto da divisa com o Bairro Mangueiras, onde tudo começa com o surgimento do Córrego Capão.
Os mais antigos ainda se lembram do brejo no alto de uma breve elevação, onde as crianças se banhavam, moradores enchiam tambores com seus baldes para banho, consumo, cozinha e atividades domésticas. "Essa água já ajudou muito aqui. Quando faltava água em casa, a gente pegava dessas minas. A gente colocava um cano no brejo e aproveitava para lavar as roupas. Cavamos uma cisterna para aproveitar mais. Mas com a criação da escola a mina foi tampada", conta a dona de casa Maria Ivani da Silva Dias, conhecida como Nena, de 63 anos.
As nascentes do Córrego do Capão acabaram desviadas para um bueiro e deram lugar à construção da Escola Municipal de Educação Infantil (EMEI) Navegantes, onde as crianças da comunidade são educadas. O curso aberto também foi fechado por 400 metros pelo asfalto da Rua dos Navegantes. "Antes isso aqui era tudo aberto. O rio (Córrego Capão) corria no meio. Todo mundo usava a água. Mas quando chovia demais a gente sofria com as enchentes. Deus sabe o tanto que já chorei com a água entrando na minha casa. Foi muito sofrimento também", lembra a dona de casa Marilva Viana Wolfer, de 71.
A canalização, para ela, melhorou a questão dos alagamentos, mas a maioria sente falta da água. Tanto que todo mundo tem seu balde na vizinhança e não há qualquer pudor em arrancar a grelha de concreto da boca de lobo onde nasce hoje o Córrego Capão, sob os alicerces da EMEI Navegantes.
"Até pedimos quando estavam construindo a escola para que fizessem um chafariz para a gente poder pegar a água. Mas ninguém deu bola. Disseram que a água estava contaminada. Eu já bebi dessa água e uso ela sempre. Quando falta água a gente vem com o balde, destampa (a boca de lobo) e enche o balde. Veja só: água limpa. Vê se tem contaminação! Aqui, né. Porque descendo a rua, aí já é muito esgoto e acaba com o córrego", pondera a dona Nena.
Acúmulo de entulho
Bastam menos de 400 metros em linha reta pela Rua dos Navegantes para chegar ao curso aberto do Córrego Capão no abrupto fim dessa via. As águas antes límpidas saltam escurecidas e com forte cheiro de esgoto das bocas de duas manilhas para o leito do manancial, delimitado por margens entre mato alto e gaiolas de tela de aço e pedras compactadas (gabiões).
O lixo está por todo lado, bem como o escoamento de esgoto por tubulações clandestinas diretamente direcionadas ao córrego ou escoando como cascatas a tingir de dejetos as paredes de gabiões ou sacas de concreto empilhadas. Todas as seis ruas nos 3.110 metros do início ao fim do Córrego Capão apresentam esgoto e lixo esparramado, por vezes já dentro do leito do manancial. Os pontos de entulho, como restos de tijolos, ferragens, ladrilhos, cacos de pisos, latas de tinta, entre outros, se encontram principalmente em três das vias: Rua Juventude, Rua Paulo Emílio Pinto e Rua Gávea.
E o primeiro local onde o acúmulo de lixo e entulho trazido pelas águas engrossadas pelas chuvas se transforma em alagamento é justamente a partir da foz do Córrego Capão, margeando a Rua Gávea até o bueiro sob a Rua Padre Pedro Pinto, um dos pontos de maior acúmulo de entulho, que chega a formar montes desfeitos pelas águas das chuvas.
"Quando chove aqui alarga tudo. É lixo demais que jogam e água demais que desce", observa o morador da Rua Gávea, o aposentado Sérgio Cirilo Martins. "Por causa dos alagamentos já perdi carro, moto, móveis, eletrodomésticos, mantimentos. Só prejuízo e as autoridades não fazem nada. Aqui seria a continuação da Avenida Vilarinho até no Céu Azul, mas nada foi feito, só aumentou a quantidade de gente jogando lixo e despejando esgoto pelo Córrego Vilarinho", afirma.
Nascentes e afluentes
Quatro principais nascentes de córregos são destacadas nas cartas da PBH e do Instituto Estadual de Gestão das Águas (IGAM), como do Córrego Capão, todas nos bairros Céu Azul e Mangueiras. Elas se somam a outras nove nascentes que correm, por poucos metros, direto para o manancial, e a outras várias pequenas contribuintes não listadas. No curso, se destacam como afluentes os córregos Ribeirão Vermelho e Piratininga.

Entulhos e dejetos tomam conta dos locais onde o manancial aparece fora das galerias: objetos irreconhecíveis e cheiro forte e repulsivo denunciam a degradação
Água perdida em meio ao lixo e esgoto
Contido pelas galerias subterrâneas sob duas movimentadas vias duplas, de sentido Rua Padre Pedro Pinto e Avenida Cristiano Machado, e um canteiro central arborizado, onde se faz caminhadas e abrigos são improvisados por pessoas em situação de rua, o Córrego Vilarinho flui sem quase ser notado na Avenida Vilarinho, na Região de Venda Nova, em Belo Horizonte. Do seu início, na Rua Padre Pedro Pinto, as águas só veem a luz exterior pela primeira vez depois de 100 metros percorridos pelos fachos divididos por uma grelha de metal no canteiro central. Abaixo, formam quadrados cartesianos que lembram uma grade de prisão para o manancial.
Nesta altura, foi instalada a primeira bacia de contenção de águas das chuvas, a Vilarinho 1, com capacidade para 60 mil m3, o que daria para conter o equivalente a 24 piscinas olímpicas. Por dentro da bacia fluem os córregos Lagoinha e Brejo do Quaresma, vindos do Bairro Mantiqueira já poluídos, criando um pântano de esgoto, lixo e lama.
São apenas 1.200 metros desde que a avenida inicia para que se comece a mancha de inundação que indica o princípio dos locais com risco de alagamentos. Uma sina que segue até o fim da via. A confluência subterrânea com o Córrego do Bezerra, na altura das esquinas com as ruas José Félix Martins e Luzia Salomão, no Mantiqueira, são o limite entre áreas sujeitas a alagamentos e as que são mais altas.
O primeiro respiro do córrego se abre adiante, quando a galeria fica exposta no canteiro central, com seu leito concretado dividido ao meio por uma mureta perto da confluência com a Avenida Liége, de onde vem o Córrego Joaquim Pereira, que tem sua foz nesta abertura, no bairro Letícia.
A água ali é turva. Detritos, fragmentos e pedaços de dejetos variados e irreconhecíveis são levados pela correnteza. O cheiro forte e repulsivo de esgoto exala. Situação comum, já que a reportagem do EM registrou, no último dia 10, que dos 76 quarteirões ou segmentos de lotes que se intercalam entre as vias que chegam à Avenida Vilarinho, 64 (84%) tinham lixo em algum ponto.
Além do que permitem as aberturas das grelhas metálicas no canteiro central, o Córrego Vilarinho reaparece em outros dois respiros abertos na avenida, um deles após a Rua Alfredo Santos Neves, na foz do Córrego da Rua Saulo de Tarso Goulart, no Bairro Venda Nova, e outro entre as ruas Valter Campolina Diniz e Medeia, perto da foz do Córrego da Rua Heracles, no Bairro São Pedro.
Esse último respiro ocorre bem após uma das grandes obras que são apostas no controle das águas do córrego e que ficam diretamente ligadas ao manancial. O Reservatório Profundo Vilarinho é uma bacia subterrânea que receberá 115 mil m3, o equivalente a 46 piscinas olímpicas.
Alagamentos e mortes
A última bacia diretamente ligada ao Córrego Vilarinho fica perto do metrô e é menor, com capacidade de 10 mil m3, ou quatro piscinas olímpicas, servindo para redirecionar as águas dos córregos Vilarinho e do Nado, que vem da Rua Doutor Álvaro Camargos e que se encontram naquele ponto.
Uma confluência marcada por alagamentos e desastres, o pior deles em 15 de novembro de 2018, com a morte de quatro pessoas. Quando a água baixou, os corpos de Cristina Pereira Matos, de 40 anos, e da filha dela, Sofia Pereira, de 6, foram encontrados abraçados no veículo em que estavam. A estudante Anna Luísa Fernandes de Paiva, de 16, morreu ao deixar o carro do namorado em meio à enxurrada e ser sugada por um bueiro. Jonnattan Reis Miranda, de 28, teve o corpo encontrado seis dias depois.
"Mesmo com as bacias, aqui na loja ainda chega água até no meio da canela. Perdemos várias peças e pode ver que todas as prateleiras de mercadorias e equipamentos são elevadas. Diminuiu a quantidade de cheias, mas se não parar de jogar lixo no córrego não vai ter solução para ninguém. Vai entupir tudo e não vai adiantar nada fazer bacias", afirma o vendedor de um comércio de peças automotivas dessa área crítica, Douglas Conrado Fernandes Martins, de 31.
O historiador e presidente do movimento Eu Vilarinho, Ricardo Andrade, diz que a convivência com as águas na Avenida Vilarinho precisa de mais proteção aos córregos e nascentes das partes altas e que ainda estão abertos. "O Córrego do Capão mesmo já tem experimentado retorno de fauna onde se limpou e conservou. Precisamos de mais parques ciliares e áreas protegidas", afirma.
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O ambientalista e historiador não acha que áreas já ocupadas pelo comércio ou habitadas densamente poderão ser convertidas em espaços naturais, com maior permeabilidade das chuvas, mas defende que onde ainda se tem espaços abertos.
"Nas partes que não estão urbanizadas é viável o córrego aberto e ciliar. No Córrego Joaquim Pereira, na Avenida da República, isso é aplicável. Basta querer e lutar. Já temos exemplos dessa solução de desapropriação para criação de unidades como a do Parque Ciliar Baleares, que tem água limpa e muito menos alagamentos do que antes", exemplifica Andrade.