COVID-19

Há cinco anos, a pandemia da COVID-19 chegava a BH

Belo Horizonte foi a quinta cidade mineira a registrar um caso da doença, em 16 de março de 2020, e, quatro dias depois, veio o primeiro fechamento da capital

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A lembrança mais forte de Sheila Paiva não é a dor ou o medo, mas a solidão. Internada com COVID-19 quatro anos atrás, ela se via cercada por aparelhos, monitores e profissionais de saúde cobertos dos pés à cabeça. Mas era o silêncio, entrecortado pelo som das máquinas, que mais a angustiava. "Gosto de companhia, de conversar, e me vi completamente sozinha no quarto do hospital. Ali, me senti a pessoa mais solitária do mundo."


A pandemia da COVID-19 completa, hoje (16/3), cinco anos na capital mineira. De lá para cá, o mundo mudou, Belo Horizonte mudou, mas as marcas deixadas por esse período seguem presentes. O Estado de Minas conversou com especialistas e pessoas que viveram o vírus de perto para entender que legado a pandemia deixou.


Após 10 dias de internação e uma luta que quase lhe custou a vida, Sheila Paiva, moradora de Sete Lagoas, na Região Central de Minas Gerais, agora carrega uma nova perspectiva sobre a vida. "Me sinto uma pessoa muito mais grata. Procuro ser mais solidária com o próximo e, principalmente, viver cada momento ao lado da minha família e dos meus amigos”, diz. Ela teve a COVID-19 no início de 2021, antes mesmo da chegada da vacina a Minas Gerais, e só conseguiu uma vaga na rede particular porque outro paciente não resistiu. "O que mais marcou foi isso: só entra se outra pessoa morrer”, disse à reportagem do Estado de Minas.


Belo Horizonte foi a quinta cidade mineira a registrar um caso da doença, em 16 de março de 2020. Quatro dias depois, veio o primeiro fechamento da capital. No primeiro ano da pandemia, a cidade passou por 16 flexibilizações e seis períodos de restrição.


Foi só ao segurar uma escova de cabelo e conseguir arrumar os fios sozinha que Sheila percebeu o quanto sua recuperação era uma conquista. As enfermeiras aplaudiram. "Agora, você imagina um ato tão simples, que é pentear o cabelo, e você fica feliz por dar conta de fazer isso. Olha o estado que a COVID me deixou", diz, emocionada. "Eu fui uma sobrevivente”, reforça. De volta à rotina, ela precisou contar com a paciência dos colegas de trabalho, já que ainda sentia falta de ar ao falar por muito tempo. Hoje, felizmente, não tem nenhuma sequela da doença. Outras pessoas, porém, não tiveram a mesma sorte.

Para Sheila, a pandemia deixou marcas e lições para toda a sociedade. Um dos hábitos que acredita ter sido um legado positivo desse período foi a maior preocupação com a higiene. "A gente hoje tem mais essa questão da higienização. Se ficamos gripados, já pensamos em usar máscara. A limpeza também é feita com mais frequência, algo que antes não era tanto”, avalia. Já o médico Daniel Diniz, de 50 anos, que esteve na linha de frente do combate à COVID-19 e foi um dos primeiros infectados da cidade após uma viagem internacional, tem uma visão mais cética. Para ele, apesar dos aprendizados, parte da população ainda negligencia a própria saúde. “Depende muito de cada um”, observa. Ele vê esse padrão se repetir em outras crises sanitárias. “A dengue, por exemplo, segue um ciclo previsível. A cada três anos há um surto, mas pouca gente toma medidas preventivas”, critica.


Olhando para tudo o que viveu na pandemia, Diniz chega a uma conclusão simples e contundente: o que realmente importa são as pessoas. “Dinheiro não vale nada quando seu pai, sua mãe, seus amigos morrem”. Para ele, a crise sanitária escancarou a urgência de um sistema de saúde mais forte e valorizado. Defensor do SUS, ele escolheu atuar na rede pública mesmo sendo anestesista. “Gosto de cuidar das pessoas, mas precisamos de um investimento muito melhor do que esse”, afirma. Diniz também faz críticas severas à condução do governo federal na pandemia, que demorou a decretar o lockdown e insistiu em medicamentos sem comprovação científica, como a cloroquina e a ivermectina.

Exemplo para o país

Belo Horizonte atravessou a pandemia com um dos menores índices de mortalidade por 100 mil habitantes entre as capitais brasileiras, segundo o Ministério da Saúde. A rápida adoção de medidas restritivas é apontada pelos infectologistas do Comitê de Enfrentamento à COVID-19 de Belo Horizonte, encerrado após mais de dois anos de atuação no combate à pandemia na cidade, como uma das decisões mais acertadas. "Fomos a segunda cidade do Brasil a decretar lockdown", lembra o infectologista Estevão Urbano. "Não foi uma decisão baseada em achismos, mas em números e na experiência do hemisfério norte, que já estava tendo casos elevados da doença", afirma. Após meses de espera, a primeira remessa da vacina contra a COVID-19 chegou ao Aeroporto Internacional de Confins, na Grande BH, em 18 de janeiro. A vacinação começou no mesmo dia, ainda de forma lenta, com a CoronaVac, seguida posteriormente pela AstraZeneca.


"O maior problema foi a desonestidade intelectual. Gente que sabia que estava repassando uma informação falsa, sem evidência científica, e divulgava mesmo assim, muitas vezes por interesse político”


Estevão Urbano
Infectologista

"Me sinto uma pessoa muito mais grata. Procuro ser mais solidária com o próximo e, principalmente, viver cada momento ao lado da minha família e dos meus amigos”


Sheila Paiva
Moradora de Sete Lagoas

"Se a pandemia foi ruim, poderia ter sido muito pior sem o SUS"


Unaí Tupinambás
Infectologista


As recomendações, relembra Urbano, seguiam as descobertas científicas do momento, mas, conforme novos estudos surgiam, era preciso reavaliar condutas e, muitas vezes, admitir que algo antes indicado já não fazia mais sentido. “O mais importante é que mesmo os erros foram baseados em uma evidência científica. A gente não tirou nada da nossa cabeça. Nós estávamos trocando pneu com carro andando. A ciência estava mudando conceitos muito rapidamente”, destaca. Ele cita como exemplo as máscaras de pano, inicialmente recomendadas, mas posteriormente substituídas pela PFF2, que oferece maior proteção contra o vírus.


O resultado desse trabalho, segundo ele, ficou evidente em estudos internacionais, como um da universidade britânica Imperial College, de Londres, que indicou que, se a taxa de mortalidade da capital mineira fosse replicada em todo o Brasil, haveria até 400 mil mortes a menos. Do início da pandemia em 2020 até o dia 14 de março de 2025, 8.730 pessoas morreram vítimas da COVID-19 em Belo Horizonte, e outras 509 mil – um número que pode ser ainda maior, considerando aqueles que nunca chegaram a fazer o teste – foram infectadas.


Urbano acredita que cerca de 20% a 25% das pessoas absorveram lições importantes sobre a coletividade após a COVID-19. Ele, assim como Sheila, vê legados que extrapolaram a área da saúde, como a adoção de máscaras. “A humanidade evolui nos grandes traumas pelos quais ela passa. Uma guerra deixa um legado, e uma pandemia também deixa um legado. Não em todo mundo, claro. Mas algumas coisas avançaram e vão ser perpetuadas”, afirma.


Fake news

Se o vírus foi um inimigo invisível, as fakes news foram uma adversária declarada, e que segue tendo efeitos até hoje. De lá para cá, as taxas de vacinação despencaram, especialmente a vacinação infantil, e o Brasil ficou bem perto de ver voltar doenças já erradicadas, como o sarampo e a rubéola. "A gente conseguiu reverter o cenário de redução da intensidade da vacinação na população. Mas não chegou aos patamares históricos do programa nacional de imunização, lamenta o infectologista Unaí Tupinambás, que também integrou o extinto comitê de enfrentamento à doença na capital mineira. Urbano completa a fala do colega: "O maior problema foi a desonestidade intelectual. Gente que sabia que estava repassando uma informação falsa, sem evidência científica, e divulgava mesmo assim, muitas vezes por interesse político. Isso causou algumas mortes desnecessárias em Belo Horizonte, e no país”, afirma.


Mas, se há um legado positivo da pandemia, para Tupinambás, é a valorização do Sistema Único de Saúde (SUS). "Se a pandemia foi ruim, poderia ter sido muito pior sem o SUS", afirma. Ele reforça que, diante da crise, ficou evidente a importância de um sistema público de saúde robusto. "Nos Estados Unidos e na Europa, onde não há um SUS, as pessoas sofreram muito mais. Eu acho que as pessoas agora dão muito mais valor ao SUS. Ele é um patrimônio nacional", comenta. No entanto, alerta que o reconhecimento precisa se transformar em ações concretas. “O que queremos é que esse legado se traduza em mais investimento, valorização dos profissionais e aumento do orçamento”, cobra.


Ao mesmo tempo, a crise sanitária, segundo o infectologista, expôs a força da cooperação científica global. Em poucas semanas, a comunidade científica mapeou o novo coronavírus e compartilhou sua sequência genética com pesquisadores ao redor do mundo. “Na terceira semana de dezembro de 2019, o vírus já havia sido identificado e, na primeira semana de janeiro, já estava disponível para laboratórios no mundo inteiro”, ressalta. Em menos de um ano, os imunizantes estavam prontos para aplicação. Por outro lado, revelou desigualdades. “Vimos um egoísmo muito grande. Teve um país que comprou estoque para vacinar três a quatro vezes sua população, enquanto a África não tinha vacina, por exemplo”, exemplificou reforçando a importância de fortalecer a Organização Mundial de Saúde (OMS).

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A experiência adquirida com a pandemia, segundo o diretor de Promoção à Saúde e Vigilância Epidemiológica da Secretaria Municipal de Saúde, Paulo Roberto Lopes Corrêa, influenciou a resposta a outras crises sanitárias, como a recente epidemia de dengue. “A gente foi adquirindo expertise e cada vez que a gente tinha uma situação desse tipo procurávamos aprender as lições que foram favoráveis, que apoiaram a condução do processo”, diz. Ele destaca ainda a ampliação da oferta de testes diagnósticos, e a criação de múltiplos pontos de imunização, incluindo parcerias com instituições de ensino e a implementação de drive-thrus. Para Corrêa, o principal legado da pandemia em Belo Horizonte foi a capacidade da cidade de enfrentar a crise com base em evidências científicas. “A Secretaria de Saúde e a Prefeitura Municipal se basearam nas melhores evidências científicas do momento, apoiaram a vacinação, os tratamentos que eram realmente efetivos e organizaram toda a parte assistencial para que a resposta à população fosse o mais rápido, com menos custos. Tanto de vidas, mas também de sequelas para a população”, conclui. 

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