Forro sagrado: restauração de igreja resgata teto original em MG
Igreja São José, no distrito de Itapanhoacanga, em Alvorada de Minas, é salva de processo de deterioração avançado que ameaçava o templo do século 18
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Siga noAlvorada de Minas – Dona Ladica não encontra palavras para descrever o que vê. Na verdade, nem precisa. Os olhos brilhantes traduzem o encantamento, as mãos apontam a cena surpreendente, o coração bate mais acelerado pela emoção. Aos 79 anos, Geralda Maria Ferreira de Souza Pimenta está diante do recém-restaurado forro da Igreja São José, do século 18, joia do distrito de Itapanhoacanga, em Alvorada de Minas, na Região Central do estado.
Rompido o silêncio inicial, Geralda, que todos chamam de dona Ladica, conta que vive a realização de um sonho: assistir à salvação do templo do século 18, no qual foi batizada, crismada e fez a primeira comunhão, de importância sagrada para os moradores da comunidade distante 230 quilômetros de Belo Horizonte.

“Quem te viu, quem te vê”, declara dona Ladica, ministra da eucaristia, primeira moradora convidada a conhecer o forro da igreja interditada desde 2012. Trata-se do primeiro “espetáculo” visível da obra de restauração iniciada há três anos, com previsão de término em março de 2026.
“Podemos dizer que o forro estava na UTI, tal o estado de deterioração. Felizmente, cada pedacinho de tábua que caía do alto, os moradores guardavam. Esse cuidado ajudou bastante no nosso trabalho. Em resumo, tudo aqui é uma aula de restauração”, conta Adriano Ramos, à frente da equipe do Grupo Oficina de Restauro. O bem é tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) desde 1971.
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Adriano mostra seu entusiasmo ao explicar sobre o óculo (abertura, no alto da fachada, para entrada de luz), as gigantescas portas de madeira “bem trabalhadas” e os 12 painéis retangulares, no formato de caixote, no forro narrando a vida do patrono da Igreja Católica, que tem seu dia comemorado hoje, 19 de março.
No lado direito da nave (de quem olha para o altar), as pinturas retratam o sonho de São José, a visitação de Maria a Isabel, a fuga para o Egito e Jesus entre os doutores. No meio, as Bodas de Maria e José, Adoração dos pastores, Apresentação de Jesus no templo e a Sagrada família. Já do lado esquerdo, Anunciação, Circuncisão, Adoração dos reis magos e Morte de São José.
Nome registrado
Um fato curioso para visitantes e inusitado, para a equipe de restauro, marca os painéis. O autor, Manoel Antônio da Fonseca, deixou seu nome registrado no quadro Apresentação no templo: “Em 1787, pintou esta pintura Manoel Antônio da Fonseca, por mando do capitão José Pereira Bonjardim”.
Encontrar a assinatura significa “uma raridade”, observa Adriano Ramos, lembrando que o forro, ao ser retirado, foi numerado e transportado para a sede do Grupo Oficina de Restauro, em Nova Lima, na Grande BH. Ouvindo as explicações do restaurador, dona Ladica, cada vez mais maravilhada com o cenário, recorda-se de conterrâneos que não tiveram a mesma oportunidade dela.
Um deles, Pedro de Carvalho Filho, que teria hoje, se vivo, 96 anos, foi uma das pessoas entrevistadas pelo Estado de Minas, em 1999, na primeira reportagem denunciando o quadro lastimável do templo. Nove meses depois, quando começaram os serviços emergenciais a cargo, ele saudou o feito, conforme mostrou a reportagem “Gritos de esperança”, seguida de “Ânimo revigorado”.

Neta de Pedula, a restauradora Joseane Carine de Carvalho e Silva, de 30 anos, residente em Itapanhoacanga, abraça dona Ladica e deixa o coração falar: “Fico feliz por trabalhar nessa obra, a primeira da qual participo, tão importante para nosso lugar e todo o município. Estou realizando, em parte, o sonho do meu avô”.
Todo o serviço de restauro da igreja tem acompanhamento do Iphan, via escritório técnico do Serro, gestão do Instituto Cultural Flávio Gutierrez, presidido pela empresária Angela Gutierrez, que visita frequentemente a obra, e execução do projeto a cargo da Total Engenharia. O patrocínio é da Anglo American, que já investiu na obra R$ 11 milhões.
Sem risco de cair
Quem chega a Itapanhoacanga – e vê a São José ainda com a fachada sem intervenção – não tem noção de todo o trabalho realizado na cobertura e internamente. “A igreja está salva, estabilizada, não corre mais risco de cair”, garante a engenheira civil Paola Pires, natural de Alvorada de Minas, responsável pela obra. “Além do processo de deterioração muito avançado e identificação de intervenções mal feitas no passado, havia comprometimento da estrutura pelos cupins”, ressalta Paola.
Como parte do “espetáculo” que não se vê, há 46 tubulões que dão sustentação à igreja, explica a engenheira. Na primeira fase, os serviços contemplaram o piso (igualmente atacado por cupins ao longo de décadas), parte elétrica e drenagem. “Substituímos uma viga de concreto, que encontramos, por uma de madeira”, acrescenta Paola.

Em nota, a Anglo American informa que outros elementos artísticos do templo, como o retábulo colateral da epístola e o retábulo colateral do evangelho, ainda se encontram em fase de restauração. Além disso, é feito “um trabalho extensivo para recuperar toda a estrutura de sustentação da igreja e os telhados destruídos pela ação do tempo”.
Foram necessárias, portanto, inúmeras atividades não previstas inicialmente, “devido ao estado avançado de deterioração do patrimônio, o que ocasionou impactos em termos de cronograma físico-financeiro”.
Atuante na mobilização comunitária, a professora Silvânia Moreira ressalta que, em 1998, as imagens foram retiradas dos altares e guardadas fora do distrito. Logo depois, houve obras emergenciais a cargo da prefeitura, até que em 2000, por pouco tempo, o templo ficou aberto. “As imagens nunca mais voltaram, por questão de segurança”, lamenta.
De acordo com estudos do Iphan, a Igreja São José de Itapanhoacanga foi erguida como capela filial da matriz da Vila do Príncipe (atual Serro), estando, provavelmente, concluída em 1785, já que em 1787, Manuel Antônio da Fonseca foi contratado para executar a pintura em painéis no forro da nave. Os forros, tanto da capela-mor quanto da nave, têm forma abobadada.
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Itapanhoacanga (palavra que significa “Serra da Cabeça Preta”, em tupi-guarani), localidade com cerca de 1,8 mil habitantes e antes pertencente ao Serro, passou a fazer parte de Alvorada de Minas em 1962. Por muito tempo, foi pouso no Caminho dos Diamantes e da Estrada Real, que ligava Diamantina a Ouro Preto.