Em época de carne cara, BH optou por baleia e gato
Em 1961, com o preço alto dos cortes tradicionais – situação também vivenciada hoje –, belo-horizontinos recorreram aos mamíferos gigantes e aos bichanos
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Siga noEpisódios de alta no valor das carnes, ou até falta da mercadoria, se repetem de tempos em tempos – especialmente devido a crises econômicas. Num momento como esse, semelhante aos dias de hoje, mas em 1961, moradores de Belo Horizonte tiveram de substituir as proteínas da dieta por carne de baleia, oferecida pela prefeitura como alternativa mais em conta do que a carne vermelha.
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O cardápio causa estranheza, porém, algo ainda mais inusitado acontecia em um dos bairros tradicionais da Região Leste: no Esplanada, se desenvolveu uma verdadeira cultura de consumo de carne de gato, com os moradores envolvidos na caça aos felinos e em grandes banquetes dos bichanos.
Este momento pitoresco de Belo Horizonte é o tema desta edição do Arquivo EM, construída a partir de reportagens do Diário da Tarde, guardadas pela Gerência de Documentação (Gedoc) do Estado de Minas.
QUEM NÃO TEM BOI...
A origem dos “gateiros” do Esplanada data do começo de 1960, quando dirigentes do Esporte Clube Esplanada (não confundir com a agremiação de mesmo nome baseada em Caratinga) decidiram formar uma escola de samba para o desfile de carnaval do mesmo ano. Devido à falta de tamborins, deu-se a ideia de tirar couro de gatos para fabricar os instrumentos. Meses depois, quando a capital passou a enfrentar uma alta no preço da carne bovina, um morador das redondezas do clube decidiu levar à mesa o que restava dos bichanos sacrificados.
“Um velho comedor de carne de gato viu os bichos serem enterrados após depelados (sic) e disse que não era possível desperdiçar carne tão apetitosa e saudável, em meio à crise dos preços altos. Em pouco tempo, o consumo de carne de bichanos se disseminou de tal forma entre os componentes do E.C. Esplanada que o gato transformou-se em mascote do clube. Todos aderiram ao novo ‘menu’”, noticiou o DT.
Comer a carne dos gatos não constituía uma simples refeição. Eram dezenas os envolvidos no processo, desde a caça, feita com armadilhas espalhadas no bairro, até a preparação dos animais, realizada numa festa chamada pelos próprios frequentadores de "Arraial dos Papa-Gatos". Os repórteres Flávio Ferreira e Hilton Rocha estiveram presentes num desses churrascos e fizeram um relato bem detalhado do evento.
“Ontem, no ‘Arraial dos Papa-Gatos’, foi morto o 323° gato, um gato preto, pesando três quilos e oitocentos gramas, que hoje será jantar em casa de João Cerqueira, cuja família aprecia muito a espécie. Há dez dias ele foi apanhado em uma das armadilhas especiais colocadas no bairro e achava-se no viveiro de gatos, onde foi preparado para o corte. A menina Elizabeth apelidou-o de ‘Pelé’, pela sua esperteza e vigor”, relataram.
COMPRANDO GATO POR LEBRE
O consumo da carne de gato se tornou uma moda tão grande no Esplanada que os felinos desapareceram do bairro. Assim, os chamados “gatistas” passaram a construir armadilhas para os animais no Carlos Prates, no São Geraldo e no Santa Tereza. Quem participava dos churrascos não via a prática como algo nocivo ou repudiável – vale destacar que até hoje não há lei que criminalize o consumo da carne dos gatos, havendo apenas legislações contra o abate dos felinos.
"Matamos vários gatos, cuja carne era enterrada. Um dia pensamos que, nesta crise de carne, e com os preços elevados, era pecado jogar os gatos fora. Resolvemos provar e gostamos. A ideia pegou, nunca mais deixamos de banquetear os felinos, cuja carne é saudável, gostosa e barata. Houve dia em que abatíamos cinco gatos", disse à reportagem da época João Cerqueira, dono da casa onde aconteciam os churrascos e então vice-presidente do Esporte Clube Esplanada.
A referida agremiação incorporou a cultura da carne de gato, inclusive, no esporte. Os felinos foram adotados como mascote do clube e acreditava-se que o consumo dos animais influenciava nos resultados dos jogos.
“A crença no valor nutritivo da carne de gato é tanta no Esporte Clube Vila Esplanada que os dirigentes gritam para os jogadores, como uma ameaça que não vai haver churrasco de gato, quando o jogo está desfavorável. A reação é imediata e já se repetiu por mais de uma vez. As vitórias são comemoradas em um banquete à base de bichano”, noticiou o DT.
O vice-presidente do clube defendia a ideia de se abrir um açougue especializado em felinos. Cerqueira argumentava ser velho conhecedor da carne de gato e, por isso, sabia de vários restaurantes da cidade que vendiam a mercadoria como se fosse de outro animal. As dúvidas que pairavam sobre o empreendimento era se conseguiriam licença para funcionamento junto às autoridades de Saúde Pública e se haveria alguma reação da Sociedade Protetora dos Animais.
DISCÍPULOS DE JONAS
Enquanto o Esplanada vivia essa cultura peculiar, o restante da capital mineira também enfrentava os altos preços das carnes com outras iniciativas também exóticas aos olhos de hoje. Sob iniciativa da prefeitura, foram abertos pontos de venda de carne de baleia, trazidas diretamente do Rio de Janeiro.
“A prefeitura está elaborando um vasto plano para distribuição da carne e, segundo se espera, serão satisfatórios os resultados, alcançando-se, principalmente, a estabilização dos preços da carne bovina na época da entressafra, que agora se inicia. Ao mesmo tempo, serão dadas pela prefeitura todas as facilidades para que haja venda da carne a preços relativamente baixos”, publicou o DT em 14 de agosto de 1961.
Um dos pontos de comércio era o Mercado Municipal (antigo nome do Mercado Central), onde a reportagem do Diário de Tarde relatou a mudança de comportamento das donas de casa, que, a princípio ressabiadas com a mercadoria, compravam um pouco de carne a fim de “experimentar”. Havia dúvidas sobre como prepará-las, o que foi explicado pelo jornal – o método era semelhante ao da carne bovina, com o diferencial de ser necessário cozinhá-las com água por uma hora para tirar o cheiro da maresia.
Durante aquela semana, pouco a pouco a população aderiu ao novo cardápio, e os pontos de venda pela cidade passaram para 15. Também foi assinado um convênio entre a prefeitura e duas peixarias para garantir o abastecimento de carne de baleia e de outros peixes. Já nos açougues, a situação era alarmante – as carnes seguiam caras e os donos dos estabelecimentos se recusavam a baixar os preços.
“Em muitos açougues, principalmente nos bairros, a carne de boi apodrece, causando grandes prejuízos aos seus proprietários. Alguns revendedores, que encheram seus estabelecimentos com a quantidade necessária para a venda normal, estão receosos de prejuízo, pois, além da quebra natural do peso, da concorrência do peixe e da baleia, poderá a carne baixar de preço forçada pela ‘greve branca’”, publicou o DT.
Ao fim de uma semana, os belo-horizontinos consumiram oito toneladas de carne de baleia e quase 20 toneladas de peixe, sendo necessário que fosse feito o carregamento de uma nova remessa do Rio de Janeiro para suprir os mercados.
Acreditava-se que as baleias se tornariam uma opção para os períodos de entressafra da carne bovina, o que não se concretizou. Não apenas pela preferência dos consumidores por outras carnes, mas também pela proibição do abate e do consumo do animal anos adiante – até porque moela de frango e fígado, alternativas à carne vermelha, são menos exóticas, afinal.
* Com produção de Irene Campos