Agressor de Papini vai a júri por tentativa de homicídio
Defesa alega que engenheiro não pretendia matar o médico ao espancá-lo. Para a vítima, sequelas graves explicitam propósito do réu
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Siga noComeça amanhã (27/3), o júri do engenheiro Rafael Batista Bicalho, de 27 anos, acusado de tentar matar o médico Henrique Figueiredo Papini de Moraes, de 30 anos. A agressão aconteceu em setembro de 2016, na saída de uma boate no Bairro Olhos D’Água, Região do Barreiro, em Belo Horizonte. De acordo com a denúncia do Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), Rafael e os amigos Thiago Motta Vaz Rodrigues, Hélio Alberto Borja Brum e Felipe Alvim Gaissler tentaram matar Henrique com sucessivos socos e chutes, “não se consumando o intento criminoso por circunstâncias alheias às vontades dos acusados”. Ao longo do processo, os amigos foram sendo retirados da acusação, restando apenas o engenheiro.
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O advogado de defesa de Rafael, Zanone Júnior, contesta a denúncia. Para ele, o que houve foi uma lesão corporal. “O que vamos tentar mostrar para os jurados é que não houve esse intento homicida. Em um primeiro momento, quando a notícia veio à tona e o rapaz deu entrada no Biocor, falavam que seis jovens teriam se reunido, planejado um ataque e espancado o Henrique”, afirma.
Em entrevista ao Estado de Minas, por sua vez, Henrique Papini afirma que os fatos e as provas estão muito bem documentados no processo. “As sequelas permanentes deixadas por ele também fazem as pessoas terem a noção da gravidade e de imaginar que a intenção não era só uma lesão.” O médico, que ainda era estudante quando foi agredido, sofreu hemorragia cerebral, fratura nos ossos da face e traumatismo craniano, resultando em sequelas graves. Ele tem paralisia facial, surdez no ouvido esquerdo, perda parcial do olfato e do paladar, além de problemas de visão e equilíbrio. Amante dos esportes, Papini revelou ao EM, em 25 de fevereiro, que teve que trocar os jogos em equipe por modalidades individuais, como a corrida.
De acordo com a tese da defesa de Rafael, entretanto, o fato de os outros acusados terem deixado de responder pelo crime mostra que não houve uma premeditação. “A Justiça desmontou a tese de grupo, de plano homicida. Aconteceu uma briga. Se o meu cliente Rafael quis ou não atentar contra a vida do outro, com a intenção de matar ou lesionar, quem vai decidir é o povo”, diz Zanone.
A motivação para a prática do delito também não seria o ciúmes de Rafael, pelo fato de Henrique estar namorando a ex do engenheiro, conforme alega o MPMG na denúncia. De acordo com a defesa, o motivo para a briga seria o fato do médico zombar de Rafael, fato nunca alegado pelo acusado em nenhuma fase da investigação ou do processo.
Indenização e arrependimento
O advogado alega ainda que o primeiro boletim de ocorrência, feito pela família da vítima, citava lesão corporal e não tentativa de homicídio. "Eles ainda colocam que foi uma lesão corporal sem instrumentos. Que plano homicida é esse em que eles vão sem levar um pedaço de pau, uma pedra, uma faca, um revólver? Cheio de garrafas de cerveja, ninguém vai quebrar para fazer um gargalo? Tinha cavalete da BHTrans. Ninguém pegou o cavalete e desferiu um golpe no Papini”, argumenta.
Outro ponto contestado pela defesa de Rafael é o estado de saúde da vítima ao procurar atendimento médico. Zanone explica que a Escala de Coma de Glasgow (ECG) é um protocolo médico que vai de zero a 15. Quanto mais próximo do zero, mais provável é o risco de morte do paciente. Já quanto mais perto de 15, mais provável de o paciente estar em uma situação normal.
“Ele deu entrada às 6h50. Os médicos o avaliaram com 13. Ele afirmou que tinha ingerido bebida alcoólica. Os médicos afirmam que quem ingere bebida alcoólica pode ter alteração na escala. Às 10h26, ele já estava em 14, às 11h06, em 15.” O advogado, porém, não contesta que Henrique sofreu lesões. “Teve sequelas, inclusive auditivas, pegou meningite, teve uma paralisia facial, labirintite.”
O advogado reforça ainda que o cliente não está impune. Ele pagou uma indenização, em um processo cível, de cerca de R$ 500 mil, valor determinado pela Justiça. “Ele está arrependido. Esse processo está caminhando para nove anos. Durante esse tempo, ele nunca mais entrou em uma delegacia de polícia nem teve nenhum problema. Ele não nega, é confesso. Sempre disse que agrediu (Henrique) sozinho.”
Zanone ressalta que os celulares dos acusados passaram por perícia e não foi encontrado nada que comprove um planejamento anterior para matar o médico. “Se ele quisesse matar, ia se munir de uma arma. Meu cliente errou, estou pedindo uma condenação por lesão corporal, que pode chegar a oito anos. O tempo todo, meu cliente foi recebendo os rigores da lei e se submetendo a eles. Continua sendo confesso, reparou o dano e está arrependido”, conclui.
Ameaças e provas
Além da tese principal da defesa, de que não teria havido uma tentativa de homicídio, a vítima rebate todas as outras divergências apontadas pelos advogados de Rafael. Além das agressões que provocaram as sequelas com que tem que conviver hoje, Henrique reforça que também sofreu, sim, ameaças por parte do acusado, dias antes do crime. “Isso também é outra coisa batida, que está no processo, com provas. Já está mais do que provado. Teve sim ameaça, mais de uma vez. Teve perseguição. Não foi uma briga ao acaso. Teve todo um planejamento.”
Em relação à motivação para o crime alegada pela defesa, a vítima é categórica: “Isso são eles tentando inventar um motivo ou justificativa. Nunca o vi, nem sabia quem ele era. A única vez que o vi pessoalmente foi quando ele me perseguiu. Na verdade, nem cheguei a vê-lo porque nem saí do carro. Foi o único contato mais próximo que tive antes (do crime). E a única troca de mensagens que a gente teve foi ele me xingando e me ameaçando.”
Henrique afirma que nunca respondeu a mensagem. “Isso é uma mentira sem tamanho que também já está comprovada no processo.” Já em relação ao arrependimento do réu, o médico diz que Rafael teve oito anos para procurá-lo e nunca o fez. Ele espera que o réu seja condenado com a pena que a Justiça determinar. “Que ele seja condenado e pague pelo que fez”.
O caso
O crime aconteceu em 7 de setembro de 2016, na saída de uma boate no Bairro Olhos D’Água, Região do Barreiro. De acordo com a denúncia, os acusados saíam do local, quando avistaram a vítima, que também deixava a boate. Os amigos teriam seguido, abordado, dominado e agredido violentamente Henrique com chutes e socos provocando múltiplas lesões.
“O resultado morte somente não ocorreu por circunstâncias alheias à vontade dos acusados vez que, após abandonarem a vítima desmaiada e inconsciente, acreditando que já a teriam conduzido a óbito, ela foi socorrida por terceiros e recebeu atendimento médico eficaz junto ao Hospital Biocor”, diz um trecho do documento.
Ainda segundo o MPMG, o crime foi cometido por motivo fútil, já que Rafael não permitia que Henrique se relacionasse com sua ex-namorada. Ele foi denunciado por tentativa de homicídio triplamente qualificado: motivo fútil, meio cruel e recurso que dificultou a defesa da vítima.
Rafael chegou a ter a prisão preventiva decretada em duas oportunidades. A primeira, em 16 de setembro de 2016, foi substituída por medidas cautelares. Em 8 de novembro, o inquérito foi concluído, com o indiciamento de Rafael Batista Bicalho e Thiago Motta Vaz Rodrigues. “Chutar a cabeça de alguém que está desprotegido, sem consciência e caído ao solo é aceitar como possível ou mesmo como provável a morte, assumindo o risco da produção do resultado”, diz um trecho do documento da Polícia Civil.
O MPMG ofereceu denúncia contra Rafael e os três amigos em 22 de novembro do mesmo ano. Em 6 de dezembro, a prisão preventiva de Rafael foi novamente decretada. Em 8 de fevereiro, ele teve o alvará de soltura expedido após determinação da 3ª Câmara Criminal do TJMG, em julgamento de habeas corpus.
Foram feitas duas audiências de instrução. Na primeira, em 13 de junho de 2018, foram ouvidas testemunhas de acusação e as vítimas. Na seguinte, em 27 de agosto, as testemunhas de defesa foram inquiridas, além do assistente técnico indicado pela defesa e os acusados.
Em depoimento à polícia e à Justiça, a ex-namorada de Rafael disse que se relacionou com ele por 11 meses. Durante todo o tempo de convívio, disse, o acusado se mostrou uma pessoa “extremamente ciumenta, possessiva e agressiva” e chegou a agredi-la fisicamente. Diante da agressão, ela pediu medidas protetivas contra ele.
Em uma discussão, o acusado teria jogado a então namorada de seu carro em movimento. Ela disse ainda que outras pessoas também foram agredidas fisicamente por Rafael. Os dois ficaram sete meses separados, mas reataram o relacionamento após ele ter prometido mudança de comportamento. Porém, meses depois, ela pôs fim definitivo na relação, ao descobrir uma traição. Mesmo assim, segundo a ex, ele continuou a persegui-la. O intuito era reatar o namoro, mas a jovem se recusava por ele ser “pessoa desequilibrada, vingativa, com comportamento desregradamente explosivo”.
“Já está mais do que provado. Teve sim ameaça, mais de uma vez. Teve perseguição. Não foi uma briga ao acaso. Teve todo um planejamento”
Henrique Figueiredo Papini de Moraes
Médico e vítima do ataque
“Aconteceu uma briga. Se o meu cliente Rafael quis ou não atentar contra a vida do outro, com a intenção de matar ou lesionar, quem vai decidir é o povo”
Zanone Júnior
Advogado de Rafael Batista Bicalho, acusado de tentar matar Henrique Papini
A jovem passou a se relacionar com Henrique. Poucos dias antes do crime, ele e a namorada estavam em um estabelecimento comercial em Nova Lima quando um dos amigos de Rafael começou a pressioná-los com olhares agressivos. Quando decidiram ir embora, o amigo chutou o carro da ex-namorada de Rafael. Momentos depois, o casal foi perseguido pelo próprio Rafael, em seu carro.
A jovem pediu que Henrique parasse o carro para ela poder conversar com o ex. Rafael teria saído do carro e pulado no capô do outro veículo, mas Henrique conseguiu ir embora. A jovem termina o depoimento reforçando que tinha medo de que Rafael se vingasse dela. Após o ocorrido, Rafael passou a ameaçá-la por mensagens, que também eram enviadas para Henrique.
Na sentença de pronúncia, a juíza sumariante decidiu pronunciar Rafael por tentativa de homicídio duplamente qualificado, por motivo fútil e meio cruel. Já o amigo dele, Thiago Motta Vaz Rodrigues deveria responder por lesão corporal e os demais – Hélio Alberto Borja Brum e Felipe Alvim Gaissler – foram impronunciados. Na prática, isso quer dizer que apenas Rafael seria julgado pelo Tribunal do Júri.
O MPMG e os acusados recorreram para o Superior Tribunal de Justiça (STJ). Em novembro de 2022, o ministro Rogerio Schietti Cruz, relator, decidiu que a juíza sumariante agiu corretamente. “O entrevero contou com pelo menos dois momentos, e Thiago participou do primeiro deles, quando provoca a queda de Henrique, mas, não participou do segundo momento, pois testemunhas também afirmaram que a vítima já teria se levantado, após ser ‘empurrada’ ou 'chutada' por Thiago, e que Rafael a derrubou novamente.”
Chute na cabeça
De acordo com o ministro, as provas produzidas na primeira fase do processo evidenciam que Thiago não teve intenção de matar Henrique. Em relação a Rafael, o entendimento foi diferente. “A Corte estadual consignou que Rafael Batista Bicalho desferiu um chute na cabeça de Henrique Papini quando estava desacordado, região vital, restando evidente, em princípio, prova do 'animus necandi' com que agiu o acusado, tornando-se incabível a desclassificação do tipo penal para lesão corporal”, diz o magistrado em um trecho da decisão.
“Com efeito, depreende-se da prova testemunhal que o recorrente (Rafael) agrediu a vítima por diversas vezes e que, a despeito de ter seu intento interrompido em duas ocasiões, logrou se desvencilhar e voltar a golpear o ofendido, ‘dando pelo menos mais um chute, que segundo ele pegou na orelha e fez com que a vítima caísse desacordada, sangrando pelo ouvido’”, afirma o magistrado em outro trecho.
O relator ressalta ainda que, em seu interrogatório, Rafael confessa que deu um chute na orelha de Henrique. “(...) a vítima estava andando de costas e tropeçou em uma placa. Que, então, aproveitando que era uma descida, conseguiu acertar um chute que pegou na orelha dele (...) quando viu a vítima caída e desacordada na sua frente, teve consciência de que havia passado do limite (...) que quando deixou o local Henrique estava desacordado'". Assim, pelo entendimento do STJ, Rafael deveria continuar a responder pelo crime no Tribunal do Júri.
Em nota, a defesa de Felipe Alvim Gaissler informa que o cliente "foi impronunciado pela Justiça por inexistência de provas em relação a qualquer acusação nesse caso, o que atesta sua total ausência de envolvimento nos fatos narrados".