Contemplação do divino em obra-prima
Expostos na Igreja da Pampulha, os 14 quadros de Candido Portinari que retratam a via-sacra de Jesus conectam fé e arte, despertando encantamento nos visitantes
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Há oito décadas, uma obra-prima nascia no ateliê do artista plástico modernista Candido Portinari (1903-1962), no Rio de Janeiro (RJ), para dois anos depois chegar a Belo Horizonte e se tornar um dos expoentes do Santuário Arquidiocesano São Francisco de Assis, mais conhecido por Igreja da Pampulha. Os 14 quadros retratando a via-sacra de Jesus, do autor também de um mural sobre o padroeiro, se juntaram, na parte interna do templo projetado por Oscar Niemeyer (1907-2012), aos baixos-relevos em bronze do batistério, do escultor Alfredo Ceschiatti (1918-1989). Assim, arte e fé se unem para encantar brasileiros e estrangeiros.
Na sexta reportagem da série “Paixão e fé – Espaços sagrados”, o Estado de Minas apresenta o precioso acervo – oito do lado direito (de quem olha para o altar) e seis do esquerdo – datado de 1945. Nesse trabalho, Portinari foge às cenas tradicionais católicas e traz uma visão bem particular dos últimos dias de Jesus, o que causou polêmica na época. Mas independentemente de ideologia e estilo do autor, a arte está presente para “evangelizar”, diz o reitor do santuário, padre Elias Souza.
“Há, aqui, uma conexão da arte com o divino, o transcendente. Estamos diante do trabalho de um grande artista, mas o sentido verdadeiro, a expressão do sagrado, está no ser humano, a obra-prima de Deus, que é única e irrepetível”, destaca o padre Elias. Ele lembra que muitas visitantes têm opinião divergentes sobre o acervo existente no templo da Pampulha: uns chegam atraídos pela comunhão de fé e arte, outros apenas pela arte. “Tudo o que se encontra dentro da igreja é sagrado. Pode ser barroco ou arte moderna, representa a fé do povo, a presença de Deus”, acredita a dona de casa Maria Nilsa Batista de Almeida, moradora do Bairro Fernão Dias, na Região Nordeste da capital.
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Na tarde de terça-feira, em sua primeira visita à Igreja da Pampulha – “até hoje por falta de tempo, oportunidade e distância”, conforme revelou –, Maria Nilsa estava na companhia de Vanderlúcia Batista Oliveira, auxiliar de vendas, e de Jennifer Oliveira Cardoso, auxiliar de enfermagem, ambas residentes em Campinas (SP). “A gente sente paz no interior desta igreja”, afirmou Vanderlúcia, em perfeita sintonia com o ambiente sagrado.
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HISTÓRIA
Na primeira igreja modernista do país, Candido Portinari foi responsável, além da via-sacra, pelos principais obras de ornamentação: internamente, o painel central, em têmpera sobre argamassa, e os demais, em azulejos, e, na parte externa, dos painéis, também azulejos, com base na vida do santo padroeiro da natureza. Os quadros foram pintados no ateliê do artista, no Rio de Janeiro. Os serviços de restauro foram custeados pela Arquidiocese de BH.
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Via-crúcis com arte e espiritualidade
O contraponto veio nas palavras de uma arquiteta de São Paulo. “Não vim pela religião, pois não tenho uma, mas apenas para apreciar a arte. Estou na Pampulha para ver os azulejos externos, também de Portinari, contando a vida de São Francisco de Assis, o revestimento externo em pastilha, de Paulo Werneck (1903-1962), e o paisagismo de Roberto Burle Marx (1909-1994), afirmou a jovem paulistana que preferiu o anonimato.
TOQUE SOCIAL
Vice-diretor do Centro de Conservação e Restauração de Bens Culturais da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais (Cecor/EBA/UFMG), o professor Luiz Souza, que conhece bem a história dos quadros, pois trabalhou nas pesquisas para restauração desse acervo, informa que a pintura a têmpera foi a técnica usada por Portinari sobre painéis de compensado especial. “Ele empregou um tipo de material já pensando em variações do clima”, informa o professor.
O conjunto das 14 obras não pode ser desmembrado, ressalta o vice-diretor do Cecor, sendo idealizado para jamais ser separado. “Importante destacar que esse trabalho tem um toque social muito grande”, observa. Na época, mesmo com a representação da via-sacra e do painel externo em azulejos, homenageando o santo padroeiro, houve reprovação de parte da comunidade católica, principalmente do então arcebispo de BH dom Antônio dos Santos Cabral (1884-1967).
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Um dos pontos polêmicos se referia à recriação de São Francisco de Assis, no interior da igreja, ao lado de um cachorro. Dom Cabral não gostou do que viu e não fez a sagração do templo. Somente em 1958, o templo foi entregue ao culto católico, sendo a primeira missa celebrada no ano seguinte.
No interior da Igrejinha da Pampulha, estão os quadros da Verônica, a mulher que teria enxugado o rosto de Jesus, Simão Cirineu o ajudando a carregar a cruz, Jesus diante de Pôncio Pilatos, os soldados jogando os dados para ver quem ficaria com as veste do Nazareno, a cena da crucificação e o descendimento da cruz. Para os católicos, não se trata de uma galeria de arte, mas da representação da Paixão de Cristo. Como diz padre Elias, “a harmonia entre a arte e o sagrado”.
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Diante de cada quadro medindo 62cm x 62 cm, é preciso conhecer a história que começa na década de 1940 – a construção do templo ocorreu entre 1943 e 1945, quando era prefeito de BH Juscelino Kubitschek (1902-1976) – e o trabalho de Portinari (1945), com o acervo chegando à capital dois anos depois. Em 1991, as telas foram restauradas no Cecor/EBA/UFMG, para onde voltaram em 2017.
RESTAURO SOB SIGILO
Um capítulo especial na história das telas ocorreu a partir de 18 de setembro de 2017 quando, sob escolta da Polícia Militar do Meio Ambiente, os quadros foram retirados do templo e levados para a reserva técnica do Cecor/EBA/UFMG (referência internacional no setor), na Pampulha. Só retornaram em 4 de outubro de 2019, dia de São Francisco, na reinauguração da igreja.
No total, foram quatro anos de trabalho divididos entre pesquisas documentais e prática no laboratório feitos por uma equipe multidisciplinar. O serviço transcorreu no maior sigilo e em segurança. “Entregamos à sociedade o resultado de atividades que a universidade proporciona com a união de pesquisa, ensino e extensão ligada à ciência e à arte”, disse, na ocasião, a então diretora do Cecor, Bethania Veloso. Ela explicou ainda que a intervenção foi “minimalista, sem aplicação de produtos químicos e com o mínimo possível de interferência”. Foram respeitados os originais, a técnica elaborada de Portinari e mantidas até mesmo “as microfissuras e o borbulhamento encontrados em todas as telas, bem como a porosidade por serem da época da criação”.
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PROGRAMAÇÃO
1) Catedral Cristo Rei
(no Bairro Juliana, na Região Norte)
Domingo de Ramos (13) – Missas às 8h e 10h30, com bênção dos ramos
Segunda-feira (14) e quarta-feira (16), às 19h – Oração das vésperas com meditação do Ofício das Leituras e Eucaristia
Quinta-feira Santa (17), às 9h – Missa da Unidade. À noite (19h), missa da Ceia do Senhor
Sexta-feira da Paixão, às 9h, via-sacra pelas ruas próximas à Catedral Cristo Rei
Sábado Santo, às 19h – Solene vigília pascal
Domingo de Páscoa (20) – Missa às 8h e 10h30
O Santuário Arquidiocesano São Francisco de Assis, na orla da Lagoa da Pampulha, abre todos os dias no horário comercial. Missa aos domingos às 7h, 10h e 18h
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Em 2015, nas primeiras negociações com a Arquidiocese de BH, à qual o Santuário São Francisco de Assis está vinculado, especialistas do Cecor iniciaram estudos sobre a via-sacra, cientes da complexidade do trabalho e por se tratar de um bem cultural – no ano seguinte, o Conjunto Moderno da Pampulha foi reconhecido como Patrimônio Mundial. Ao ser batido o martelo sobre a restauração, a equipe se debruçou sobre os diagnósticos das três instâncias de tombamento dos monumentos: Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (Iepha-MG) e Prefeitura de Belo Horizonte (PBH), via Fundação Municipal de Cultura.
Na lista de degradação do acervo, havia manchas causadas por umidade, modulação do suporte, descolamento da pintura e muita sujeira causada por excrementos de insetos, fato que surpreendeu a coordenação da equipe formada por professores de conservação-restauração, alunos de graduação e pós-graduação da área, e, na sequência, de profissionais da Escola de Medicina da UFMG.
Curiosamente, o que poderia ser compreendido como deterioração se revelou característica da obra, por isso foram mantidas as microfissuras, os borbulhamentos e a porosidade. Como os quadros tinham sido restaurados no Cecor em 1991, e toda a memória estava disponível, a equipe recorreu aos documentos a fim de entender melhor todo o processo e enfrentar os desafios.
No laboratório do Cecor, que mudou a dinâmica para receber a obra de Portinari e ainda exibe resquícios da mobilização, um equipamento portátil de raios-X entrou em ação, norteando caminhos. Depois, na Faculdade de Medicina, o aparelho de tomografia completou o serviço, especificamente no quadro nº 9, “Jesus cai pela terceira vez”. Por meio das chapas de raios-X, a equipe detectou o suporte usado pelo artista, o compensado sarrafiado, e não o do tipo naval, comum na década de 1940. Nesse trabalho do Cecor, o compensado sarrafiado é mencionado pela primeira vez nos quadros da via-sacra, informou Bethania.
A partir dos exames, os especialistas decidiram não retirar as molduras, pois ficam tão integradas às pinturas, algumas com pregos, que seria um risco separá-las. Também com a tecnologia, identificaram-se as várias técnicas usadas por Portinari, entre elas têmpera a óleo, basicamente artesanal. Os serviços de restauro foram custeados pela Arquidiocese de BH.
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