O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) foi considerado "persona non grata" pelo governo de Israel desde que fez um paralelo entre o Holocausto e a guerra em Gaza durante uma entrevista no final de semana.

Lula esteve em Adis Abeba, na Etiópia, para a reunião da cúpula da União Africana. Durante o encontro, o presidente instou os países ricos a fornecerem mais ajuda a Gaza, expressando preocupação com a crise humanitária na região.

A guerra teve início em outubro, quando o Hamas, que governa Gaza, lançou um ataque em Israel que resultou em mais de 1.200 mortes e cerca de 240 reféns, segundo as autoridades israelenses.

Desde então, a retaliação deixou mais de 28 mil palestinos mortos, incluindo civis, mulheres e crianças, e mais de um milhão de pessoas precisaram deixar suas casas, segundo as autoridades de Gaza.

Em suas declarações, Lula afirmou que o Brasil condena o Hamas, mas não pode deixar de condenar as ações de Israel em Gaza, classificando o que ocorre como "genocídio".

A repercussão da entrevista tomou outro rumo quando Lula comparou a situação em Gaza ao Holocausto, quando milhões de judeus foram mortos e perseguidos pelos nazistas.

"O que está acontecendo na Faixa Gaza não existe em nenhum outro momento histórico, aliás, existiu quando Hitler resolveu matar os judeus", afirmou o presidente brasileiro em conversa com jornalistas no domingo (18/2).

Lula acusado de ser antissemita

Em resposta, o governo de Benjamin Netanyahu declarou Lula como "persona non grata". Na diplomacia, a expressão se aplica a um representante estrangeiro que não é mais bem-vindo em missões oficiais em determinado país.

Em discurso, Netanyahuu afirmou que Lula agiu como "antissemita". "Ao comparar a guerra de Israel em Gaza contra o Hamas, uma organização terrorista genocida, ao Holocausto, o Presidente Da Silva desrespeitou a memória de 6 milhões de judeus mortos pelos nazistas, e demonizou o Estado Judeu como o mais virulento antissemita. Ele deveria ter vergonha."

A Aliança Internacional para a Memória do Holocausto (IHRA, na sigla em inglês) define antissemitismo como "uma determinada perceção dos judeus, que se pode exprimir como ódio em relação aos judeus. Manifestações retóricas e físicas de antissemitismo são orientados contra indivíduos judeus e não judeus e/ou contra os seus bens, contra as instituições comunitárias e as instalações religiosas judaicas".

Na segunda-feira, Lula chamou de volta o embaixador do Brasil em Tel Aviv, Frederico Meyer, ao país para consultas. Essa decisão é geralmente adotada quando um país deseja expressar desaprovação em relação às ações de outro.

O ministro das Relações Exteriores brasileiro, Mauro Vieira, que está no Rio de Janeiro para a reunião do G20, também convocou o embaixador israelense Daniel Zonshine para que comparecesse ao Palácio Itamaraty, no Rio.

Críticas à declaração de Lula também foram emitidas pelo Museu do Holocausto dos EUA, que repudiou suas declarações como "falsas" e "antissemitas".

"Utilizar o Holocausto como uma arma discursiva é sempre errado, especialmente quando se trata de um chefe de Estado. Foi exatamente isso que o presidente brasileiro Lula fez ao promover uma afirmação falsa e antissemita. Isso é ultrajante e deve ser condenado", diz o comunicado.

No X (antigo Twitter), o ministro-chefe da Secretaria de Comunicação Social do governo brasileiro, Paulo Pimenta, fez uma defesa do presidente Lula.

"O Brasil sempre, desde 7 de outubro, condenou os ataques terrorista do Hamas em todos os fóruns. Nossa solidariedade é com a população civil de Gaza, que está sofrendo por atos que não cometeram", afirmou.

"As palavras do presidente @LulaOficial sempre foram pela paz e para fortalecer o sentimento de solidariedade entre os povos", acrescentou.

Na avaliação de Michel Gherman, professor do programa de pós-graduação de história social da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), a fala foi descuidada e pode, sim, ser considerada antissemita, mas isso não transforma necessariamente o presidente Lula em antissemita.

"Lula já foi muito próximo de posições que a comunidade judaica poderia ver de forma positiva."

"Acho importante dizer que as críticas de Lula ao governo de Israel, suas objeções aos atos terroristas do Hamas, seu apelo pela libertação dos reféns e sua busca por uma solução política de dois estados para a criação do Estado Palestino são muito mais importantes do que a comparação inadequada, como a que ele fez."

A pesquisadora do Centro Brasileiro de Relações Internacionais Monique Sochaczewski considera que a frase foi antissemita pois "vai além da crítica válida ao conflito e compara-o ao Holocausto, quando 6 milhões de judeus foram mortos em escala industrial e planejada pelo regime nazista. Trata-se de uma provocação clara ao escolher não qualquer genocídio, mas a Shoah, em que as vítimas foram os judeus".

A BBC News Brasil procurou a Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República e o Ministério das Relações Exteriores brasileiro para um posicionamento sobre as declarações do chanceler israelense, mas não obteve resposta até a última atualização desta reportagem.

Por que a declaração enfurece Israel

Para Michel Gherman, as declarações de Lula têm diferentes elementos problemáticos, mas o principal é que o paralelo com o Holocausto é um equívoco.

"Lula incorpora a ideia de que Hitler teria sido o último dos elementos possíveis de comparação com o que acontece hoje em Gaza. Como se a segunda metade do século 20 não tivesse promovido episódios importantes de genocídio. E aqui eu posso citar alguns, o genocídio da Iugoslávia, de Ruanda."

O professor explica que é importante que ele seja comparado com outros episódios históricos de violência - até para diferenciá-lo desses outros momentos, já que o Holocausto "é algo único na história".

"Não há o processo complexo e gradual de construção da identidade palestina em Gaza como alvos de extermínio por anos como aconteceu com o povo judaico durante o Holocausto."

Para Sochaczewski, a proximidade do ex-presidente Jair Bolsonaro com alguns integrantes do governo de Israel pode ter impactado na decisão de Lula de se posicionar de forma tão enfática sobre Gaza.

Bolsonaro era próximo do primeiro-ministro Netanyahu e, no fim do ano passado, quando já não tinha cargo oficial, se encontrou com o embaixador de Israel no Brasil.

"Atualmente, enxergamos esse conflito no Brasil de forma simplificada, como se Bolsonaro estivesse alinhado com Israel e Lula com a Palestina, mas essa percepção é rasa", opina.

Gherman avalia que a denúncia que Lula fazia sobre a falta de apoio à Gaza, que ele considera importante, acabou sendo esquecida.

A declaração de Lula inicialmente respondia a uma pergunta feita por um jornalista sobre o desejo do líder brasileiro de aumentar o financiamento para a UNRWA , a Organização de Apoio aos Refugiados Palestinos, depois que o grupo foi acusado de ter tido funcionários que colaboraram com atos do Hamas.

Mais de 10 países, incluindo Estados Unidos, Reino Unido, Canadá, Itália, Suíça, Irlanda e Austrália, chegaram a interromper os repasses de recursos para a UNRWA.

Na ocasião, o presidente respondeu criticando os países que retiraram o apoio.

Outra consequência, na visão do professor, é o possível uso das declarações de Lula pelo governo de Netanyahu para aumentar a sua própria popularidade entre os israelenses.

"Quando uma declaração como a feita por Lula é proferida, o governo a utiliza para se fortalecer, especialmente internamente. Externamente, acredito que o governo de Israel está bastante debilitado. Uma frase mal colocada de Lula pode não lhe garantir muito apoio."

Necessidade de retratação

A pesquisadora Monique Sochaczewski afirma que, ao tocar em um ponto muito sensível não apenas para Israel, mas para os judeus de todo o mundo, o Brasil pode perder a chance de assumir um papel importante como mediador do conflito entre Israel e os palestinos.

"Inicialmente existia a percepção de que a tradição brasileira de política externa para o Oriente Médio era de equidistância, buscando mediar e dialogar com ambos os Estados."

"Em relação a uma retratação, eu acho que está tendo um movimento, tanto de políticos quanto de diplomatas, de pessoas que entenderam que foi um tom muito acima do necessário", opina a pesquisadora.

O mais importante, na visão do professor Michel Gherman, não é que Lula se retrate com o governo israelense, mas sim com seus eleitores judeus.

"A fala de Lula não teve qualquer preocupação com o respeito. Há grupos de judeus brasileiros que apoiaram e apoiam o Lula firmemente contra Bolsonaro, e é fundamental que Lula dialogue com eles."

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