O vencedor do prêmio Nobel de Física em 2022, John Clauser, afirmou falsamente que as emissões de gases de efeito estufa, como o CO2 e o metano, geradas pelas atividades humanas, não são um perigo para o planeta. A declaração foi compartilhada mais de 800 vezes nas redes sociais desde 25 de janeiro de 2024. Porém, cientistas do clima explicaram à AFP que o aquecimento global está inegavelmente vinculado às emissões de gases. Clauser, por sua vez, recebeu o Nobel por uma pesquisa que não tinha relação com o clima.
“JOHN CLAUSER, VENCEDOR DO PRÊMIO NOBEL DE FÍSICA DE 2022: ‘Posso afirmar com muita confiança que NÃO existe emergência climática’. ‘Por mais que isso possa incomodar muitas pessoas, a minha mensagem é que o planeta NÃO está em perigo. O CO2 atmosférico e o metano têm um efeito insignificante no clima’”, diz uma das publicações compartilhadas noFacebook, noXe noTikTok.
Alegações similares circulam emfrancêseespanhol.
As declarações de Clauser também foram enviadas aoWhatsApp do AFP Checamos, para onde os usuários podem encaminhar conteúdos vistos em redes sociais, se duvidarem da sua veracidade.
Algumas publicações levam aesse conteúdo, em inglês, que estende os comentários atribuídos a John Clauser:“Até agora, identificamos totalmente mal qual é o processo dominante no controle do clima, e todos os vários modelos baseiam-se em física incompleta e incorreta. O processo dominante é ‘o mecanismo do termostato de reflexividade da nuvem-luz solar’”. Ao final, ele completa que pode “afirmar com muita confiança que não há emergência climática”.
O usuário do Xindicaque as declarações de Clauser foram retiradas de umdiscursofeito em um evento chamado “Desafiar as Mudanças Climáticas”, organizado pelaIgreja Militante, em 14 de novembro de 2023.
Mas as afirmações são falsas e fazem parte de uma série de alegações que visam questionar a responsabilidade dos seres humanos pelo aquecimento global, já estabelecida atualmente por umconsenso científicobaseado em centenas de estudos, como muitos climatologistas já explicaram à AFP.
John Clauser, “especialista”, mas não em estudos climáticos
Clauser, pesquisador norte-americano de física quântica, foi de fato um dostrês laureadoscom o prêmio Nobel de Física em 2022, juntamente com o francês Alain Aspect e o austríaco Anton Zeilinger.
O trio de pesquisadores foi reconhecido por suas descobertas sobre o“entrelaçamento quântico”, um mecanismo no qual duas partículas quânticas estão perfeitamente correlacionadas, independentemente da distância que as separa, mantendo o registro de seu passado comum e exibindo comportamentos semelhantes.
Entretanto, esses trabalhos não estão diretamente relacionados ao estudo do clima, como assinalou umartigoem francês da RTBF de 24 de fevereiro de 2024.
Uma pesquisa noGoogle Scholarpelas palavras-chave, em inglês,“clima”,“Sol”e“nuvens”, nos artigos científicos para os quais John Clauser contribuiu, não obteve resultados. O mesmo ocorre em uma busca no siteResearchGate, que lista diversas publicações científicas por autor.
As alegações de John Clauser sobre as nuvens e o Sol vão de encontro ao consenso sobre o clima, estabelecido por milhares de climatologistas. Além disso, as teorias que ele propaga sobre o tema não são rigorosas, conforme afirmaram dois especialistas entrevistados em umartigopublicado pelo Washington Post em novembro de 2023.
John Clauser se juntou à “Coalizão CO2” em 2023, de acordo com ositeda organização — um grupo que enaltece os benefícios do CO2 para o planeta e regularmente difunde desinformação sobre o clima, comoobservado, em inglês, pelo veículo DeSmog, especializado desde 2006 em questões climáticas e ambientais, e, em particular, na luta contra a desinformação sobre o tema.
O Sol e as mudanças climáticas
A radiação solar, mencionada por John Clauser, tambéminfluenciao clima. Ela afeta todas as camadas atmosféricas: a atmosfera, a troposfera e a estratosfera.
“No entanto, há 150 anos, as variações climáticas têm sido causadas pelo homem. Um não impede o outro”, explicou à AFP em junho de 2022Pierre Friedlingstein, especialista em carbono e clima da Universidade de Exeter, no Reino Unido.
Outros especialistas afirmaram à AFP que a atividade solar não é suficiente para explicar as variações de temperatura observadas nos últimos 100 anos.
“As variações de energia solar observadas nos últimos séculos são pequenas e não são suficientes para explicar as variações de temperatura que observamos hoje”,explicouà AFP o diretor do Laboratório de Glaciologia da Universidade Livre de Bruxelas,Frank Pattyn, em março de 2022. Ele acrescentou que, pelo contrário,“nas últimas décadas, houve uma diminuição da atividade solar”.
A agência espacial norte-americana Nasa, em umapáginadedicada ao impacto dos ciclos solares no clima da Terra, também aponta que“os cientistas concordam que os ciclos solares e as variações de curto prazo na irradiação não podem ser a principal força por trás das mudanças climáticas que nós observamos atualmente na Terra”, lembrando que“a produção do Sol varia apenas 0,15% ao longo do ciclo, menos do que o necessário para provocar as mudanças climáticas observadas”.
“O aquecimento global dos séculos XX e XXI é 100% causado pela atividade humana. Não podemos explicar o aumento da temperatura sem levar em conta os gases de efeito estufa, porque sabemos, graças aos modelos científicos, que a variabilidade natural do clima quase não contribuiu para o aquecimento do último século”, concluiu Friedlingstein.
Nuvens como “amplificadoras” do aquecimento global
Em uma de suas declarações, Clauser disse:“As nuvens refletem os raios do Sol e, portanto, projetam uma sombra sobre a Terra, se trata de um efeito de resfriamento”.
Na realidade, as nuvens“têm mais um papel de amplificação do aquecimento global”, explicou à AFP, em maio de 2023,Camille Risi, pesquisadora do Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS) da França, no Laboratório de Meteorologia Dinâmica.
Ela reforçou que, ainda que o papel amplificador das nuvens nas mudanças climáticas continue sendo um“assunto amplamente investigado”, detalhado em particular nosexto relatóriodo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC),“esta amplificação é mal quantificada até hoje: o papel das nuvens é a principal fonte de incerteza nas projeções climáticas”.
O climatologista, diretor de pesquisa da Comissão Francesa de Energia Atômica (CEA) e especialista em sondagem atmosférica a laser,Patrick Chazette, explicou que“o que é certo é que o conteúdo de vapor d’água na atmosfera aumenta com a temperatura e, portanto, os riscos de fenômenos extremos”.
E complementou:“Há uma competição entre a radiação solar refletida pelas nuvens e a radiação infravermelha que vem da Terra. Esta última é absorvida pelas nuvens e depois emitida em direção à Terra(...). Se houver gases de efeito estufa entre as nuvens e a superfície, teremos então um aumento do aquecimento”.
Modelos que consideram fatores naturais
Clauser acredita que os modelos utilizados para estudar as causas das mudanças climáticas são defeituosos, pois não levam em conta os fatores naturais que influenciam o clima.
Contudo, isso também é falso. Pesquisadores entrevistados pela AFP afirmaram que esses modelos são atualizados frequentemente em função das novas descobertas e investigações sobre o clima.
“Em alguns casos, os modelos consistem em milhões de linhas de código. Codificamos em um computador todos os nossos conhecimentos sobre a física, a química e a biologia da atmosfera, dos oceanos e da Terra. É a mesma base dos modelos de previsões meteorológicas, reconhecidos pela maioria das pessoas pela sua representação muito precisa da atmosfera”, detalhouEd Hawkins, professor de climatologia da Universidade de Reading, no Reino Unido.
ParaMike Lockwood, professor de física ambiental espacial da Universidade de Reading, o sentido dos modelos é justamente poder estudar variáveis como os fatores naturais e a sua relação com a mudança climática. E é porque esses modelos levam em conta todos esses parâmetros que os investigadores podem concluir que as variações naturais por si só não podem ser a causa das recentes mudanças climáticas.
Durante os últimos 40 anos, as projeções elaboradas pela modelização científica também provaram estar geralmente alinhadas com os fatos.
O intervalo do aquecimento previsto pelo IPCC varia entre um aquecimento médio de 1,4ºC em 2100, em comparação com 1850-1900, se as emissões fossem maciçamente reduzidas, para um aquecimento de 4,4ºC, se aumentassem bruscamente, com três projeções intermediárias de 1,8ºC, 2,7ºC e 3,6ºC.
A década “mais quente já observada”
De acordo com o IPCC, a Terra esquentou 1,1ºC em 2020 em comparação com o período entre 1850 e 1900. Uma parte muito pequena estava ligada à variabilidade natural do clima (entre -0,23 e +0,23ºC), e o restante foi causado pelas atividades humanas. Espera-se que o aquecimento global alcance 1,5ºC no início da década de 2030.
No início de 2024, orelatórioanual da Organização Meteorológica Mundial (OMM) confirmou que 2023 foi o ano mais quente já registrado, com uma temperatura média da superfície global de 1,45ºC acima do nível de referência pré-industrial.
A década (2014-2023) também terá sido a mais quente já observada, excedendo a média 1850-1900 de 1,20ºC, e há uma“alta probabilidade”de que o ano de 2024, por sua vez, apresente temperaturas sem precedentes, conformeestimoua agência da ONU em março de 2024.
Os cientistas ressaltam que cada décimo de grau de aquecimento que pode ser evitado conta para limitar o seu impacto na sociedade humana e na biodiversidade.
O AFP Checamos já verificou anteriormente outras alegações sobre o aquecimento global (1,2).
Referências
Artigo em francês da RTBF, da Bélgica, de 24 de fevereiro de 2024
Relatório do IPCC sobre as mudanças climáticas
Informe da Organização Meteorológica Mundial de 19 de março de 2024