"Vi a morte na minha frente": aos 74 anos, Lorena Martins nunca havia presenciado tamanha tragédia. Nesta segunda-feira (6), deixou sua casa debaixo d'água em Porto Alegre e perdeu tudo, exceto "a família e Deus".
Com dificuldade para se locomover, ajudada por seu genro Elisandro Silva, Lorena desce de um bote dos bombeiros que conseguiram convencer a família a abandonar a casa em um bairro pobre de Porto Alegre.
A capital do Rio Grande do Sul sofre com as piores enchentes de sua história, após as chuvas torrenciais que deixaram dezenas de mortos e desaparecidos e quase 130 mil desalojados na região.
O barco de Lorena chega a uma esquina inundada da Avenida Assis Brasil, que se tornou um porto de socorro improvisado. Barcos a motor, lanchas, jet-skis e até pequenas embarcações a remo vêm e vão freneticamente, tentando fazer com que os vizinhos que ainda se recusam a deixar suas casas o façam.
O policial militar de Santa Catarina Dionis Bellettini chegou ao local como voluntário para ajudar uma das embarcações.
Entre aqueles que ainda permanecem nas casas inundadas por uma água barrenta e insalubre, há pessoas com "medo da casa ser saqueada", explica à AFP Bellettini, usando um colete salva-vidas. Alguns moradores simplesmente "não querem sair".
"As pessoas que ainda estão aí geralmente não querem sair, não querem sair porque tem medo da casa ser saqueada, de não ter para onde ir, então preferem ficar na casa, e a gente não tem como obrigar", explica.
Atrás dele, três homens tentam consertar o motor de uma lancha. Precisam dela urgentemente. Restam muitas pessoas para resgatar, para convencer.
- Medo e ousadia -
Uma caminhonete 4x4 aparece com mais um barco. "Ponha ali em direção à rua", diz um dos voluntários.
Seu apoio é essencial. A defesa civil não conseguiu resgatar todos e os pontos de resgate se multiplicam nessa cidade de 1,4 milhão de habitantes.
Lorena, Elisandro, sua esposa Carmen e sua filha Giovanna, de 14 anos, separam alguns sacos de comida - pizzas, um pacote de massa seca - na calçada. Eles olham com desânimo para a água quase parada em uma rua que parece um rio, enquanto acariciam seus dois cachorros.
Para essa família de fiéis, é quase um momento de recordação. No sábado, eles viram a água engolir sua casa, mas decidiram ficar.
"Hoje eu vi a morte na minha frente. Eu estava com medo" da água, "mas os caras [socorristas] eram bons. Minha casinha está abandonada. Eu ainda trabalho para me sustentar". A voz de Lorena se perde. Ela tenta continuar, mas não consegue. Sua camiseta de tecido preto esconde muitas lágrimas. Mas seu rosto não consegue esconder o cansaço brutal.
"Que tristeza... Eu penso nos mais humildes. Você tem que acreditar em Deus. Sem Deus, não há nada."
As enchentes deixaram 83 mortos e 111 desaparecidos, de acordo com os últimos números.
- Cenas de terror -
O número de deslocados também aumenta no Rio Grande do Sul à medida que os resgates são realizados em meio à uma trégua das chuvas. Um volume de água incalculável provocou a pior cheia do rio Guaíba e de seus afluentes na história da região.
"A situação é realmente uma cena de filme de terror", relata Filipe Bezbatti, um jovem empresário de eventos de 27 anos usando um macacão de neopreno, enquanto tenta reparar o motor da lancha na qual ele vai em busca de seus vizinhos.
"O governo que deveria dar um norte", reclama Bezbatti.
Os dois se conheceram na esquina transformada em porto, e agora são parte da mesma "equipe".
A poucos metros dali, a enfermeira Paola Martínez, 28 anos, alimenta três cães que não se atrevem a atravessar a água que se eleva cerca de 40 centímetros acima do asfalto. Com uma corrente, uma balsa e a ajuda de Filipe, eles conseguem levá-los a um local seguro.
O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva assegurou que não faltarão recursos para o Rio Grande do Sul. O governador do estado, Eduardo Leite (PSDB-RS), citou um "Plano Marshall", em referência ao plano de reconstrução da Europa após a Segunda Guerra Mundial.
Mas agora a emergência segue latente; as necessidades são imediatas: alimentos, roupa, medicamentos.
Ao meio-dia, debaixo do sol, vizinhos seguiam resgatando outros vizinhos. A cena se repete em muitas esquinas da capital gaúcha.
mr/app/nn/dd/am