Na produção de "A Gaivota", do escritor russo Anton Tchekhov, ensaiada por uma companhia de atores espanhóis cegos, não há cenários, o palco tem marcas no chão e uma atriz e diretora faz a audiodescrição.

"Em Tchekhov, seus personagens em geral são personagens que procuram um paraíso perdido", com "ambições maiores que suas forças e possibilidades", explicou Chela de Ferrari à AFP, durante os ensaios em Madri desta obra que será apresentada no famoso festival de teatro da cidade francesa de Avignon, a partir desta segunda-feira (15). 

"Todos esses personagens me pareceram que poderiam se conectar muito bem com um elenco de atores cegos", concluiu Ferrari.

Habituada a trabalhar com a inclusão, após dirigir "Hamlet" com atores com síndrome de Down, a dramaturga peruana aborda outra grande peça de teatro com um elenco inusitado: dos 12 atores da companhia do Centro Dramático Nacional de Madri, apenas dois podem enxergar. Os outros 10 são cegos ou deficientes visuais (com apenas 10% de visão). 

Mas no palco, sem bengalas ou óculos escuros, o público não sabe quem é cego e quem não é.

Chela de Ferrari brinca com preconceitos. Com fones de ouvido e um bloco de notas na mão, explica que quer "tornar visível o invisível", e descreve ao público os móveis e cenários que faltam, enquanto detalha o público para o elenco.

Nina, interpretada por Belén González, cega e atriz não profissional, sobe ao palco. A jovem de 25 anos desfila pelo espaço, no qual por vezes tem que procurar o ombro de seu companheiro de cena Agus Ruiz, que não é cego nem possui deficiência visual, que interpreta o papel de Boris.

"Vejo Belén e me sinto absolutamente fascinado porque uma atriz com visão nunca conseguiria como ela faz", diz Ferrari, que não quer "romantizar nada".

- Adaptação "fundamental" -

A companhia tem apenas 38 dias de ensaio, com cenas que incluem diversas danças coletivas, uma com música techno que repete versos do texto de Tchekhov e uma cena delirante de karaokê.

"A adaptação do espaço é fundamental. Não vejo absolutamente nada", explica Lola Robles, que interpreta Arkadina, e que já tem experiência em obras inclusivas.

"Assessora de acessibilidade" da peça, Robles idealizou um sistema de borlas suspensas atrás das cortinas para que os atores soubessem em que área dos bastidores haviam entrado.

O palco também conta com finas tiras de madeira em forma de cruz pregadas no chão, indicando aos atores onde estão. 

"Não conseguimos ver, mas nos orientamos pelo som dos passos no palco. Às vezes pedimos aos outros que suspirem para localizá-los, ou que estalem os dedos", descreve, querendo evitar a todo o custo que "alguém nos agarre pelo braço para nos acompanhar".

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