Na tarde de 6 de julho, a vice-presidente dos EUA, Kamala Harris, subiu ao palco de um festival de cultura negra em Nova Orleans, falou sobre sua história de vida e o que acreditava ter realizado na Casa Branca.
É o tipo de evento que a primeira vice-presidente mulher, negra e sul-asiática americana marcou presença ao longo dos três anos e meio como vice de Joe Biden, geralmente acompanhada por um grupo acanhado de jornalistas, em comparação com o que segue o presidente.
Mas o número de repórteres atrás de Harris crescia à medida que os democratas cogitavam substituir Joe Biden nas eleições deste ano, especialmente após seu desempenho lamentável no primeiro debate contra Donald Trump.
Neste domingo (21/7), após o anúncio de desistência de Biden, a ideia de que Harris, de 59 anos, será sua substituta ganhou mais força do que nunca.
O presidente anunciou, junto à retirada da candidatura, o seu endosso ao nome de sua vice-presidente, que respondeu dizendo que fará "tudo ao meu alcance para unir o Partido Democrata – e unir nossa nação – para derrotar Donald Trump".
Harris ainda tem um longo caminho pela frente, pois precisaria ser confirmada pela Convenção Nacional de seu partido, que será realizada na semana de 19 de agosto em Chicago.
Mas, desde que começaram os rumores sobre a candidatura dela, analistas e institutos de pesquisa têm concentrado sua atenção no quão provável é que Harris realmente consiga vencer Donald Trump.
No evento em Nova Orleans, no início de julho, Harris chegou a dizer: "as pessoas na sua vida vão dizer que não chegou sua hora. Não é sua vez. Ninguém como você já fez isso antes",
"Nunca dê ouvidos a isso."
Favorita
Em uma entrevista à rede de televisão NBC, o congressista Adam Schiff, da Califórnia, disse que Biden tinha que ser capaz de "vencer de forma esmagadora ou teria que passar a tocha para alguém que seja capaz".
Kamala Harris, ele acrescentou, poderia "muito bem vencer de forma esmagadora" contra Trump.
Esta é uma proposta que surpreendeu alguns democratas, incluindo aliados de Biden, que veem Harris como uma vice-presidente que fracassou na disputa pela indicação democrata para 2020, antes mesmo da primeira votação das primárias ser realizada, e que tem lutado contra um histórico irregular e baixos índices de aprovação durante seu mandato na Casa Branca.
Mas legisladores democratas como Schiff e o congressista Jim Clyburn, da Carolina do Sul, têm apresentado Harris como a sucessora natural - algo também defendido neste domingo pelo influente casal Bill Clinton (ex-presidente) e Hillary Clinton (ex-candidata à Presidência).
Os defensores da candidatura de Harris citam uma série de pesquisas que sugerem que ela teria um desempenho melhor do que o presidente num hipotético confronto contra Donald Trump, e argumentam que ela tem o perfil nacional, a infraestrutura de campanha e o apelo para os eleitores mais jovens — o que poderia tornar a transição suave, quatro meses antes do dia das eleições.
Uma promoção para liderar a chapa seria uma reviravolta notável para uma mulher que até pouco tempo era vista como uma fragilidade política por altos funcionários de Biden na Casa Branca. Até o próprio Biden supostamente a descreveu como um "projeto em andamento" durante seus primeiros meses no cargo.
Mas Jamal Simmons, estrategista democrata de longa data e ex-diretor de comunicação de Harris, disse que ela havia sido subestimada por muito tempo.
"Quer ela seja parceira do presidente ou tenha que liderar a chapa, ela é alguém que os republicanos e a campanha de Trump precisam levar a sério", afirmou Simmons à BBC.
Kamala Harris está, no entanto, longe de ser a única alternativa a Biden em discussão.
A lista de potenciais substitutos do presidente vai desde um grupo de governadores populares – Gretchen Whitmer (Michigan), Gavin Newsom (Califórnia), Josh Shapiro (Pensilvânia) e JB Pritzker (Illinois) — até o secretário de Transportes, Pete Buttigieg, e o congressista Ro Khanna, da Califórnia.
Um memorando que circulou online, supostamente escrito por membros do partido democrata, apresentava um argumento detalhado para promover Harris, apesar das suas "verdadeiras fragilidades políticas".
Tentar escolher outra pessoa além dela iria levar a campanha ao caos e manter as "picuinhas democratas" sob os holofotes da mídia durante meses", diz o texto..
Se Biden desistisse da nomeação, a ideia de os democratas preterirem Harris em prol de outro candidato assusta muitos na ala à esquerda do partido e na sua poderosa bancada negra.
Nesta situação, "este partido não deveria, de forma alguma, fazer nada para passar por cima de Harris", declarou Clyburn, um dos legisladores negros mais proeminentes no Congresso, à MSNBC na semana passada.
Os republicanos também reconheceram que Harris seria a favorita para substituir Biden.
O senador Lindsey Graham, da Carolina do Sul, alertou no domingo que os republicanos devem estar prontos para uma "corrida drasticamente diferente", caso Harris — que ele descreveu como uma candidata "vigorosa" — assuma a disputa.
Graham enfatizou sua marca progressista na Califórnia, sugerindo que ela estava mais próxima, em termos políticos, do agitador de esquerda Bernie Sanders do que de Joe Biden, no que parecia ser um vislumbre da linha de ataque republicana caso ela se torne candidata.
Donald Trump, por sua vez, a chamou de "patética" nos dias que se seguiram ao debate.
Harris tem chance contra Trump?
Mas, em última análise, a única questão que importa para muitos democratas — incluindo os doadores endinheirados — é se ela tem mais chance de derrotar Trump do que Biden. E isso é profundamente incerto.
Em uma pesquisa da CBS News e YouGov realizada na última semana, Harris tinha uma ligeira vantagem em relação ao atual presidente Biden frente a Trump.
Trump estava à frente da advogada por três pontos (51% a 48%), enquanto superava Biden por cinco (52% a 47%) entre os eleitores prováveis (a margem de erro da pesquisa era de 2,7 pontos).
Uma pesquisa da CNN de junho sugeriu que Harris teria um desempenho melhor do que Biden com eleitores independentes e mulheres.
Mas muitos especialistas descartam tais pesquisas e apontam que o sentimento dos eleitores mudará com a renúncia de Biden. Alguns acreditam que os eleitores começarão a avaliar outros candidatos além de Harris.
Um pesquisador de opinião democrata próximo à campanha de Biden reconheceu que Harris pode ter mais potencial para expandir a base eleitoral do partido do que o presidente, mas é cético em relação à diferença que ela faria. As pesquisas que a colocam contra Trump neste momento "não significam nada", diz ele, que pediu anonimato porque não estava autorizado a falar com a imprensa.
Harris, filha de mãe indiana e pai jamaicano, tem um desempenho melhor nas pesquisas do que Biden com eleitores negros, latinos e jovens — círculos eleitorais cruciais que seus aliados dizem que ela seria capaz de revigorar como candidata.
Mas se ela realmente aumentaria a participação dos eleitores negros mais jovens é outra questão incerta. "Este é simplesmente um daqueles momentos de esperar para ver", acrescenta o pesquisador.
Receio dos democratas
Alguns membros do partido também estão se perguntando se a reputação progressista de Harris colocaria em risco perder os eleitores da classe trabalhadora e dos sindicatos nos chamados "estados pêndulo" da Pensilvânia, Michigan e Wisconsin, nos quais Biden venceu por pouco em 2020, e em que ambos os partidos precisam garantir uma vitória em novembro.
Caso ela assuma a chapa, alguns democratas sugeriram que o governador Josh Shapiro, da Pensilvânia, ou o governador Roy Cooper, da Carolina do Norte, poderiam ser escolhidos como vice para conquistar eleitores de centro nos estados do Meio-Oeste.
Isso parece ter contado para Trump escolher o seu vice, J.D. Vance, um senador por Ohio de 39 anos.
Mas a grande preocupação entre alguns democratas sobre a força de Harris como candidata presidencial remonta à sua tentativa malsucedida para nomeação do partido em 2020, na qual ela desferiu golpes contra Biden em um debate inicial, mas acabou saindo da disputa antes da primeira convenção em Iowa.
Os críticos disseram que ela teve dificuldade para se definir como candidata, um sentimento que perdurou durante todo seu mandato como vice-presidente. Ela teve um início turbulento na Casa Branca, marcado por deslizes notórios em entrevistas, baixos índices de aprovação e rotatividade na equipe.
Ela também foi incumbida de supervisionar a estratégia do governo para reduzir a migração pela fronteira sul dos EUA, que chegou a níveis recordes nos últimos três anos, e continua a ser um grande ponto de vulnerabilidade para a campanha.
Esses tropeços iniciais levaram Harris a ser mais cautelosa em suas aparições públicas, mas muitos eleitores a veem como ineficaz e ausente.
Ao longo do último ano, Harris se firmou como a principal voz do governo no que diz respeito ao direito ao aborto, uma questão que provou ser um sucesso para os democratas durante as eleições de meio de mandato de 2022, e com a qual o partido espera reconquistar mais eleitores em novembro.
Como uma ex-promotora que lidava com casos de violência sexual, ela invocou histórias pessoais de trabalho com mulheres que abortaram no banheiro ou foram recusadas em hospitais, enquanto tentava mobilizar os eleitores em torno do tema.
Durante a campanha, ela também procurou capitalizar outras questões que ressoam entre os eleitores jovens, incluindo o perdão das dívidas estudantis, as mudanças climáticas e a violência armada. A Casa Branca também fez um esforço concertado para promovê-la com mais força.
Ainda assim, ela enfrenta uma difícil batalha para mudar o ceticismo de longa data dos eleitores — seus índices de aprovação giram em torno de 37%, de acordo com a média das pesquisas compiladas pela FiveThirtyEight —, um patamar semelhante ao de Biden e Trump.
No festival Essence em Nova Orleans, Iam Christian Tucker, uma pequena empresária local de 41 anos, disse que, em última análise, não se importava com quem era o indicado.
Ela falou que gostava de Harris, mas não tinha certeza se uma presidente negra poderia vencer as eleições.
"Vou votar contra Donald Trump mais do que qualquer coisa", afirmou ela à BBC.
Greg Hovel, de 67 anos, que participou de um comício pelo presidente Biden em Madison, no Estado de Wisconsin, na semana passada, disse que apoiou Harris nas primárias de 2020, e "sempre foi um fã". Mas alertou que existe "um sentimento antimulher forte neste país".
"Acho que ela seria uma excelente presidente", declarou Hovel.
* Mike Wendling contribuiu para esta reportagem de Madison, em Wisconsin.
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