A fundadora do aplicativo, Sall Grover (centro), criou o Giggle for Girls em 2020, depois de sofrer abuso online de homens -  (crédito: EPA)

A fundadora do aplicativo, Sall Grover (centro), criou o Giggle for Girls em 2020, depois de sofrer abuso online de homens

crédito: EPA

Uma mulher transgênero da Austrália ganhou uma ação em que acusou de discriminação um aplicativo de mídia social exclusivo para mulheres. O acesso dela havia sido negado sob o argumento de que seria um homem.

O Tribunal Federal concluiu que, embora Roxanne Tickle não tenha sido discriminada diretamente, ela foi vítima de discriminação indireta (quando uma decisão prejudica uma pessoa com um atributo específico). A decisão foi que o aplicativo deveria lhe pagar o equivalente a 10 mil dólares australianos, ou mais de R$ 37 mil, além dos custos do processo.

É uma decisão histórica quando se trata de identidade de gênero. E, no cerne do caso, estava a questão cada vez mais controversa: o que é uma mulher?

 

 

Em 2021, Tickle baixou "Giggle for Girls", um aplicativo comercializado como um refúgio online onde as mulheres podiam compartilhar suas experiências em um espaço seguro e onde os homens não eram permitidos.

Para ter acesso, ela teve que enviar uma selfie para provar que era mulher, o que foi avaliado por um software de reconhecimento de gênero projetado para excluir homens.

No entanto, sete meses depois — após ingressar com sucesso na plataforma — sua participação foi revogada.

Como alguém que se identifica como mulher, Tickle alegou que tinha o direito legal de utilizar serviços destinados a mulheres e que era discriminada com base na sua identidade de gênero.

Ela processou a plataforma de mídia social e a CEO, Sall Grover, e pediu indenização no valor de 200 mil dólares australianos (mais de R$ 750 mil), alegando que "erro de gênero persistente" por parte de Grover havia provocado "ansiedade constante e pensamentos suicidas ocasionais".

"As declarações públicas de Grover sobre mim e este caso foram angustiantes, desmoralizantes, embaraçosas, desgastantes e dolorosas. Isso levou indivíduos a postarem comentários de ódio contra mim na internet e incitarem indiretamente outros a fazerem o mesmo", disse Tickle em um depoimento.

A equipe jurídica do Giggle argumentou ao longo do caso que sexo é um conceito biológico.

Eles admitem abertamente que Tickle foi discriminada — mas com base no sexo, e não na identidade de gênero. Recusar-se a permitir que Tickle usasse o aplicativo constituiu discriminação sexual legal, dizem eles. O aplicativo foi projetado para excluir os homens e, como sua fundadora considera Tickle um homem, ela argumenta que negar seu acesso ao aplicativo era legal.

Mas o juiz Robert Bromwich disse na sua decisão nesta sexta-feira (23/8) que a jurisprudência tem consistentemente considerado que o sexo é "mutável e não necessariamente binário", rejeitando em última análise o argumento de Giggle.

Tickle disse que a decisão "mostra que todas as mulheres estão protegidas da discriminação" e que ela espera que o caso seja "um alívio para pessoas trans e com diversidade de gênero".

"Infelizmente, obtivemos o julgamento que prevíamos. A luta pelos direitos das mulheres continua", escreveu Grover no X, antigo Twitter, respondendo à decisão.

Conhecido como "Tickle vs Giggle", o caso é a primeira vez que uma alegada discriminação de identidade de gênero é debatida pelo tribunal federal da Austrália.

Ele é um exemplo de como um dos debates ideológicos mais acirrados atualmente— inclusão de pessoas trans versus direitos baseados no sexo — pode se desenrolar nos tribunais.

'Todo mundo me tratou como mulher'

Tickle nasceu homem, mas mudou de gênero e vive como mulher desde 2017.

Ao prestar depoimento ao tribunal, ela disse: "Até este momento, todos me tratavam como mulher".

"De vez em quando recebo caretas e olhares questionadores, o que é bastante desconcertante... mas eles me deixam cuidar da minha vida."

Grover, no entanto, acredita que nenhum ser humano mudou ou pode mudar de sexo.

Quando a advogada de Tickle, Georgina Costello KC, questionou Grover, ela disse:

"Mesmo quando uma pessoa que foi identificada como homem ao nascer passa para uma mulher por meio de cirurgia, hormônios, se livra dos pelos faciais, passa por uma reconstrução facial, deixa o cabelo crescer, usa maquiagem, usa roupas femininas, se descreve como mulher, se apresenta como mulher, usa vestiários femininos, muda certidão de nascimento – você não aceita que seja mulher?"

"Não", Grover respondeu.

Ela também disse que se recusaria a chamar Tickle de "senhora" e que "Tickle é um homem biológico".

Sall Grover, uma mulher branca e loira, vestida com roupa preta, dá entrevista a um homem branco, careca, de terno
EPA
A fundadora do aplicativo, Sall Grover (centro), criou o Giggle for Girls em 2020, depois de sofrer abuso online de homens

Grover é uma autoproclamada ‘TERF’ – um acrônimo que significa, em inglês, "feminista radical transexcludente". As opiniões das TERFs sobre a identidade de gênero são consideradas amplamente hostis às pessoas trans.

"Estou sendo levada à justiça federal por um homem que afirma ser mulher porque quer usar um espaço exclusivo para mulheres que criei", ela postou no X.

"Não há uma mulher no mundo que teria que me levar a tribunal para usar este espaço exclusivo para mulheres. É preciso um homem para este caso existir."

Ela diz que criou seu aplicativo "Giggle for Girls" em 2020, depois de receber muitos abusos de homens nas redes sociais enquanto trabalhava em Hollywood como roteirista.

"Eu queria criar um espaço seguro e exclusivo para mulheres na palma da sua mão", disse ela. "É uma ficção jurídica que Tickle seja uma mulher. Sua certidão de nascimento foi alterada de homem para mulher, mas ele é um homem biológico e sempre será."

"Estamos defendendo a segurança dos espaços exclusivos de todas as mulheres, mas também a favor da realidade básica e da verdade, que a lei deve refletir."

Grover já havia dito que recorreria da decisão do tribunal e levaria o caso até o Tribunal Superior da Austrália.

Precedente legal

O resultado deste caso poderá estabelecer um precedente jurídico para a resolução de conflitos entre os direitos de identidade de gênero e os direitos baseados no sexo em outros países.

Crucial para compreender isto é a Convenção sobre a Eliminação da Discriminação contra as Mulheres (CEDAW, na sigla em inglês). Este é um tratado internacional adotado em 1979 pela ONU – efetivamente uma declaração internacional de direitos para as mulheres.

A defesa de Giggle argumentou que a ratificação da CEDAW pela Austrália obriga o Estado a proteger os direitos das mulheres, incluindo espaços para pessoas de um único sexo.

Portanto, a decisão desta sexta-feira a favor de Tickle será significativa para todos os 189 países onde a CEDAW foi ratificada – do Brasil à Índia e à África do Sul.

Isso porque quando se trata de interpretar tratados internacionais, os tribunais nacionais muitas vezes analisam a forma como outros países o fizeram.

A interpretação da lei pela Austrália num caso que recebeu este nível de atenção da mídia provavelmente terá repercussões globais.

Se, com o passar do tempo, um número crescente de tribunais decidir a favor das reivindicações de identidade de gênero, é mais provável que outros países sigam o exemplo.