Quando russos começaram a ser presos por se oporem à invasão à Ucrânia, Maria sentiu o mesmo medo que supõe terem vivido seus antepassados, vítimas da repressão stalinista.
Dois anos e meio após o início de sua ofensiva militar, a Rússia prendeu centenas de pessoas por protestar ou falar, mesmo em privado, contra essa operação, em uma campanha de repressão que paralisou os críticos internos do Kremlin.
"Não é normal quando você começa a se comportar como seus antepassados. Tremores toda vez que o telefone toca [...] pensando o tempo todo com quem você está falando e sobre o que está falando", diz à AFP Maria, uma moscovita de 47 anos.
"Meu medo está aumentando", admite.
Enquanto folheia um livro com imagens das vítimas das purgas de Stalin, Maria aponta para seu bisavô. De origem polonesa, ele foi declarado "inimigo do povo" e executado em 1938 por "espionagem".
Sua esposa também foi detida e passou quatro anos no Gulag, a rede soviética de campos de trabalhos forçados.
A avó de Maria, que viveu com o estigma de ter seus pais considerados "inimigos do povo", sempre temia ser presa.
Maria agora sente um medo semelhante. Ela teme ser rotulada como "agente estrangeiro", uma etiqueta moderna com conotações da era stalinista que é utilizada para reprimir os críticos do regime do presidente Vladimir Putin.
- Autocensura -
A Rússia de Putin também dispõe de ferramentas legais mais severas para atacar seus opositores.
Sob leis de censura militar, as pessoas podem ser condenadas a até 15 anos por divulgar "informações falsas" sobre a campanha na Ucrânia.
Neste clima de medo, Maria, professora de inglês em uma universidade, mede muito bem como se comporta e o que diz em público. Fora de seu círculo de amigos próximos, esconde suas convicções pacifistas e seu gosto pela cultura ucraniana.
Esta professora não fala de política com seus colegas e convive com o medo de que alguém possa denunciá-la por ler notícias ocidentais ou sites de redes sociais bloqueados na Rússia, os quais acessa através de uma VPN.
Até o inglês agora é considerado um "idioma inimigo" que levanta suspeitas, explica Maria, que preferiu não revelar seu sobrenome.
- "Não se atrevem" -
O início do conflito em fevereiro de 2022 desencadeou um breve período de manifestações, mas desde então o Kremlin reprimiu qualquer forma de oposição pública.
"As pessoas não se atrevem a protestar, não se atrevem a falar", diz Svetlana Gannushkina, uma importante ativista russa de direitos humanos que foi rotulada como "agente estrangeiro".
As duras penas contra os críticos do regime e o tratamento dado aos prisioneiros assustaram muitos e os levaram a permanecer em silêncio, explica.
Gannushkina aponta o que ela considera ser um "medo histórico, talvez até genético" em um país que passou por múltiplos episódios de repressão política, desde a servidão no Império Russo, o "Terror Vermelho" dos bolcheviques após a Revolução de 1917 e as purgas da década de 1930 sob o comando de Stalin.
Sua ONG, chamada Memorial, trabalhou para preservar a memória das vítimas da repressão comunista e fez campanha contra violações dos direitos humanos até ser fechada pelas autoridades russas em 2021.
Ao longo da história, a repressão "repetidamente dividiu a sociedade entre os que estavam dispostos a resistir e os que não queriam, entendiam que a resistência não levava a nada e partiram", afirma Gannushkina à AFP.
"A história fez uma espécie de seleção natural [...] E agora temos toda uma geração de pessoas que não estão preparadas para resistir."
- "Escravo do medo" -
Para o dissidente soviético Alexander Podrabinek, de 71 anos, o medo "não é uma peculiaridade étnica, nacional ou genética" específica da Rússia.
"Visitei vários países totalitários, além da União Soviética, e a situação é basicamente a mesma em todos os lugares", explica.
"O medo é o principal obstáculo para uma vida normal em nosso país [...] Alguém que tem medo já não é livre, se torna um escravo de seu medo, vivendo sem poder realizar seu potencial", adverte.
Podrabinek foi exilado para a Sibéria russa em 1978 e depois preso em 1981 após escrever um livro sobre psiquiatria punitiva na União Soviética.
Apesar da pressão dos serviços de segurança da KGB, ele se recusou a abandonar o país. "A única coisa que pode vencer o medo", diz, "é a convicção de que você tem razão".
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