A questão do consentimento, sistematicamente ausente das mentes dos agressores sexuais de Gisèle Pelicot, ressurge recorrentemente no grande julgamento por acusações de estupro na França, o que pode levar a um despertar social e até a uma mudança jurídica. 

Nenhum dos acusados que falaram até agora perante o tribunal de Avignon, no sul de França, se preocupou em obter o consentimento da vítima, que foi atacada em estado inconsciente após seu marido drogá-la secretamente. 

"Nunca obtive o consentimento da senhora Pelicot", admitiu Lionel R., 44 anos. Mathieu D., 53 anos, disse que só se deu conta quando foi preso e Fabien S., 39 anos, disse: "Não prestei atenção". 

Outros réus se esconderam atrás do "consentimento por procuração", como explicou o presidente do tribunal Roger Arata, destacando que "a questão do consentimento é central neste julgamento" que despertou a atenção mundial. 

"Como o marido me deu permissão, pensei que ela concordasse", afirmou Andy R., de 37 anos, na segunda-feira, referindo-se a Dominique Pelicot, que entre 2011 e 2020 contatou dezenas de homens na internet para estuprarem sua esposa, drogada. 

O depoimento dos acusados se assemelham e obedecem ao mesmo padrão determinado pelo agora ex-marido: ir à casa do casal à noite, tirar as roupas na cozinha e aquecer as mãos antes de entrar silenciosamente no quarto para não acordar Gisèle. 

Em nenhum momento, segundo os vídeos encontrados no computador do réu principal, os agressores tentaram estabelecer contato com ela para garantir seu consentimento no que alguns descreveram como um "jogo sexual".

- "Sem consentimento, é estupro" -

Paradoxalmente, o organizador dos ataques, Dominique Pelicot, tornou-se acusador durante o julgamento, garantindo que "todos sabiam" da situação. 

"Sem consentimento, é estupro", declarou ele em 17 de setembro. 

"Meu cliente não se questionou e isso é culpa dele. Mas ele tinha as informações necessárias? Se aproximou com o único objetivo de ter relações sexuais", disse à AFP o advogado de um dos acusados. 

"Alguém que sabia e alguém que não queria ou não podia saber pode ser punido da mesma forma?", acrescentou este advogado, que pediu para manter o anonimato. 

Mas nem todos os advogados compartilham esta linha de defesa, como Patrick Gontard, para quem, mesmo que atenda a um anúncio em um site libertino, "há um antes e um depois de entrar no quarto". 

"Uma pessoa que está dormindo, sedada ou sob a influência de drogas ou álcool não está em condições de dar consentimento", afirma a jurista Catherine Le Magueresse, pesquisadora associada do Instituto de Ciências Jurídicas e Filosóficas da Universidade Panthéon-Sorbonne. 

Embora considere que, no caso de Gisèle Pelicot, o consentimento nem deveria ser discutido dado o estado em que se encontrava, defende uma mudança na legislação que inclua esta noção.

- Mudança legislativa? -

"Quem não diz nada não consente; quem diz não obviamente não consente, e quem diz sim será considerado consentido se o seu sim (...) não estiver acometido por vício de consentimento", afirmou. 

Nesta sexta-feira, o novo ministro da Justiça francês, Didier Migaud, disse ser a favor de legislar sobre o consentimento, como já fizeram outros países europeus, como a Suécia e a Espanha. 

Atualmente esta noção não aparece explicitamente no Código Penal, que define o estupro como "qualquer ato de penetração sexual de qualquer espécie, qualquer ato oral-genital cometido sobre outra pessoa (...) por meio de violência, coerção, ameaça ou surpresa”. 

Um "ato de penetração sexual cometido contra uma pessoa adormecida ou sob a influência de álcool ou drogas" é considerado um "estupro surpresa", especifica a administração francesa em seu site oficial. 

Algumas feministas contestam uma possível mudança legislativa, considerando que são desconhecidas as situações em que o consentimento é ignorado. 

"A violência sexual não é apenas uma questão de consentimento", segundo Elsa Labouret, porta-voz da Osez le féminisme. 

No mínimo, este julgamento de grande repercussão terá o mérito de "questionar as nossas práticas íntimas", segundo a especialista Catherine Le Magueresse. 

"Nos importamos realmente que nossos desejos sejam correspondidos?"

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