Jeanne Allaire Kayigirwa estava certa de que morreria durante o genocídio em Ruanda, no qual a maior parte de sua família e amigos foram massacrados.

Ela e sua irmã se esconderam na mata por seis semanas enquanto a chacina acontecia ao redor, mudando de esconderijo toda vez que os extremistas hutus "perseguiam com cães" os tútsis como elas. 

"Não sei como sobrevivemos", disse ela.

Ela não quer se lembrar de grande parte do que aconteceu naquela época. "De outra forma, não conseguiria continuar", acrescentou.

Jeanne aprendeu a conviver com seus demônios, mas "você não consegue apagar um genocídio da memória. Ele volta quando quer".

Então, um dia ela fez um balanço: "Vou deixar os assassinos que queriam me eliminar acabarem também com minha segunda vida?"

"Ou eu vou viver?", conta a mulher de 46 anos, que se tornou uma alta representante do governo local em Paris.

Mais de um milhão de pessoas morreram no genocídio organizado pelo regime extremista hutu em 1994. 

Homens, mulheres e crianças da minoria tútsi foram sistematicamente exterminados entre abril e julho daquele ano, frequentemente a golpes de facão, por forças hutus, algumas vezes sendo mortos inclusive por seus vizinhos, colegas e amigos.

Trinta anos depois deste horror, a AFP foi em busca das crianças tútsis que sobreviveram à matança, foram adotadas e cresceram na França.

Elas falaram do peso do que testemunharam, seu sentimento de injustiça e sobre viver por aqueles que foram massacrados.

Alguns permaneceram no exterior, enquanto outros voltaram para Ruanda.

Jeanne perdeu o pai, a irmã, amigos, primos, tios e tias. "Eu tento não contar", disse ela.  

"Eles colocaram armas em nossas têmporas no dia que vieram nos matar", lembrou.

- Silêncios -

Mudar-se para a França "me deu a chance de estudar", porém, mais do que tudo, "me ajudou porque não tinha que ver os assassinos todo dia". 

Logo depois de chegar, Jeanne ajudou a fundar o coletivo Ibuka, um grupo de sobreviventes que mantém a memória do genocídio viva, visitando escolas para contar o que aconteceu.

Jeanne agarrou com as duas mãos sua "segunda vida", começou uma família e trabalhou para a Prefeitura de Paris.

"Senti que ao falar disso eu não estou calando os mortos que foram silenciados", disse ela.   

Contudo, um silêncio pesado pairou sobre a infância de Manzi Rugirangoga. 

Hoje de volta à capital ruandesa, Kigali, Rugirangoga sobreviveu ao impensável quando ainda era um bebê.

Ele tinha apenas 15 meses de idade quando sua família buscou refúgio em uma escola com outros tútsis na cidade de Butare, no sul de Ruanda. Em 29 de abril de 1994, a milícia hutu atacou. Sua mãe, que o carregava nas costas, foi morta junto com sua tia e seu tio.

Mas ele, sua irmã e seu irmão, que tinham quatro e sete anos na época, sobreviveram.

"Não é que os assassinos tenham nos poupado, eles só disseram que não queriam desperdiçar suas balas conosco", deixando-os para "morrer de fome e tristeza", contou.

O pai de Manzi o encontrou em um orfanato no Burundi três meses depois.

- Uma injustiça terrível -

As crianças sobreviveram graças a uma extraordinária operação de resgate da organização de caridade suíça Terre des hommes (Tdh), que só veio à tona recentemente graças a um livro intitulado "The Convoy" (O Comboio, em tradução livre), de Beata Umubyeyi Mairesse, um dos mil sobreviventes que seus socorristas tiraram do país.

"Dezenas de membros da minha família" foram mortos no genocídio, contou Manzi, hoje com 31 anos. "Meu pai é o único sobrevivente do lado dele", completou. Veterinário, ele estava fazendo um curso de treinamento na França quando o genocídio começou.

Ele levou as crianças para a França "porque tinha pouca esperança de encontrar qualquer coisa em Ruanda".  

"Eu ainda tenho esse imenso sentimento de justiça pelo acontecido", disse Manzi.

Em casa, pouco se falava a respeito. "As pessoas me perguntavam de onde eu era e eu sabia muito pouco", recordou. 

Foi apenas após o "choque" de voltar a Ruanda pela primeira vez aos dez anos de idade que ele sentiu "uma necessidade instintiva" de voltar para casa.

"Finalmente descobri de onde eu vim", disse ele.

Após uma adolescência difícil, Manzi retornou a Kigali por conta própria aos 15 anos para ficar com sua tia, e fez o ensino médio no leste do país, onde precisou aprender o idioma ruandês.

Após cursar a universidade na França, ele se mudou de volta para Kigali.

"Naquela época, eu não via meu futuro na França", disse ele.

Sandrine Lorusso cresceu cercada por um silêncio semelhante. Caçula de nove irmãos, ela perdeu o pai, a mãe e três irmãos nos massacres.

Adotada pela irmã mais velha e o marido dela que moravam na França, sua entrevista para a AFP foi a primeira vez que esta mãe de dois filhos de fala suave contou publicamente o que viveu em Kigali. 

"Não era algo sobre o qual conversássemos", disse esta enfermeira.

"Os assassinos se reuniram em frente à nossa casa. Eles levaram minha mãe, mas deixaram a mim e à minha irmã, Aline. Nós corremos até a casa dos nossos vizinhos, e minutos depois ouvimos disparos", disse ela, com a voz embargada pela emoção.

- Ataques de pânico -

Ela ainda não sabe como seu pai morreu. Ele foi encontrado em uma vala comum.

À medida que crescia, "meu cérebro trabalhou duro para esconder" as lembranças. Mas as coisas ficaram "complicadas" quando Lorusso se aproximou da idade adulta. Tudo ficou pesado demais "entre os 17 e os 24 anos e eu tive depressão". 

O trauma voltou quando ela ficou grávida do primeiro filho. "Eu tinha ataques de pânico inexplicáveis. A gente tenta segurar, mais cedo ou mais tarde, porém, isso vem à tona", disse ela.

Quando foi para a França, Jeanne pensou que também estivesse "deixando o genocídio" para trás.

"Pensei que fosse viver uma vida boa, tinha a esperança de nunca ter que ver imagens de ossos e ruínas. Mas mesmo que você se mude para seis mil quilômetros, você leva o genocídio com você", relatou.

Ela descreveu como esse fantasma a perseguia pelas ruas da França, onde notava "locais onde as pessoas poderiam se esconder" ou se assustava com o "som de tiros" quando ia ao cinema.

"Os pesadelos duraram por muito tempo", relatou.

As lembranças de Gaspard Jassef tampouco o deixaram em paz. Aos seis anos, ele se escondeu sozinho durante cinco meses para fugir do genocídio.

"A rememoração dos 30 anos [do genocídio] me afetou intensamente... E eu quero resolver tudo o que é desconhecido na minha cabeça sobre o que me aconteceu", disse à AFP em um café parisiense.

Sua irmã mais nova e sua mãe - uma tútsi que se casou com um hutu - foram envenenadas por seus familiares hutus no início do genocídio.

Temendo pelo filho "mestiço", seu pai lhe disse para se esconder na floresta. Mas ele nunca conseguiu encontrá-lo. Ele também foi morto, segundo informações que Gaspard conseguiu reunir.

Em outubro de 1994 - três meses depois do término do genocídio - uma enfermeira francesa chamada Dominique Jassef, que havia trabalhado em um hospital beneficente, o encontrou na floresta com desnutrição avançada. "Eu comia o que podia. Cacei pequenos animais. Permaneci nas árvores", afirmou.

"Quando minha segunda mãe me encontrou, provavelmente sobreviveria por uma semana", contou. Os médicos pensaram que "não havia esperanças", mas a enfermeira francesa se recusou a desistir dele, lhe deu tratamento e depois o adotou, mudando sua vida.

- O legado vergonhoso da França -

Gaspard ainda tem problemas para dormir e é assombrado pelo dia em que teve que enterrar sua mãe e sua irmã.

Mas, em "minha tristeza tive a grande sorte de ter duas mães muito amorosas", acrescentou.

Apesar do trauma, ele foi um aluno brilhante e trabalhou vários anos em um 'think tank' e cofundou o grupo de apoio The Adopted of Rwanda (Os Adotados de Ruanda). 

Mesmo assim, "cada dia pode ser uma luta e às vezes me sinto muito velho", admitiu.

Muito sociável, Gaspard adora conversar sobre política francesa por horas e horas. "Meu sangue e minha pele são ruandeses, e também me sinto totalmente francês", disse.

No entanto, o papel da França no genocídio dos tútsis se tornou um assunto extremamente delicado.

Paris, que tinha relações muito próximas com o regime hutu assassino, foi durante muito tempo acusado por Kigali de "cumplicidade" no genocídio.

Em 2021, uma comissão de historiadores descobriu que a França da época do falecido presidente François Mitterrand teve uma "responsabilidade pesada e extraordinária" no genocídio, mas não havia sido cúmplice.

A escritora Beata Umubyeyi Mairesse faz uma distinção entre "o povo francês absolutamente fantástico que a acolheu" e "os políticos e militares franceses, cujas ações devem ser condenadas".    

A família que a recebeu "realmente cuidou de mim" e inclusive a levou a um psicólogo.

Apesar do trauma, ela conseguiu "reconstruir" sua vida. "Certamente, você se sente frágil", admitiu. "Quando você foi excluída da humanidade... O caminho de volta é longo", disse.

Trabalhando para uma ONG dedicada às pessoas com Aids e dependência química, ela disse ter optado por uma carreira em que "luta contra a morte". 

- Reconexão -

O 30ª aniversário do genocídio tem sido um momento importante para muitos sobreviventes.

No ano passado, Jeanne se mudou de volta para Ruanda com o marido e o filho.

"Senti que estava perdendo alguma coisa na França", disse ela à AFP em Kigali. "Eu queria viver com minha família e minha mãe novamente. Ela tem mais de 80 anos. Queria mostrar minha terra natal e minha língua ao meu filho, e talvez ajudar a reconstruir o país".

Gaspard disse finalmente ter encontrado uma "forma de estabilidade" e que quer voltar à sua cidade e entender o que aconteceu com seu pai. 

Manzi tem um monte de projetos para desenvolver em Kigali. Ele escreveu um romance "africano futurista", fundou uma editora e investiu em fazendas que cultivam pimentas, feijões e melancias.

"Me reconectar com minhas raízes, minha família e minha história me ajudou", disse.

Mas, "a ideia de que nós podemos nos reconstruir totalmente, e que não pensamos sobre o que aconteceu é fora de questão", acrescentou Manzi. 

De volta à França, Sandrine quer se envolver mais em um grupo que mantém viva a memória do que foi feito.

Ela também pensou em procurar um psicólogo. "Há coisas sobre o que ocorreu em 1994 que eu não consigo lembrar, e o genocídio também roubou de mim minhas memórias sobre o que aconteceu antes, dos primeiros anos da minha infância".   

Desde que voltou a Ruanda, Beata tem encontrado felicidade na "luz e nas paisagens" particulares do país e no astral do lugar.

"Toda vez que eu volto, eu me reconecto com quem eu era", disse ela.

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