Rebeldes na Síria disseram neste domingo (8/12) terem tomado controle de Damasco — e afirmaram que o presidente Bashar al Assad deixou o país. A Rússia confirmou que Assad não está mais na Síria.
Na mensagem transmitida pela estação de televisão estatal e pela Rádio Damasco, os rebeldes disseram ter acabado com o regime de Bashar al Assad e libertado os presos políticos.
O líder do grupo insurgente fundamentalista Hayat Tahrir al Shams (HTS), Abu Mohammed al-Jawlani, que liderou o avanço dos grupos rebeldes na última semana, ordenou às suas forças que não se aproximem de instituições públicas na capital síria, afirmando que elas permanecerão sob a supervisão do primeiro-ministro até serem entregues "oficialmente".
A agência Reuters e vários outros meios de comunicação afirmam que Al Assad deixou a Síria em um avião privado do aeroporto internacional da capital, onde se viviam cenas de caos, com dezenas de pessoas tentando abandonar o país.
Esse parece ser o fim de um regime brutal. O presidente Assad controlou a Síria com mão de ferro desde que chegou ao poder em 2000 (antes dele, o seu pai, Hafez, governou o país durante 29 anos), O período foi marcado pela guerra civil que eclodiu em 2011, com dezenas de milhares de mortos e milhões de refugiados.
Um acidente que marcou sua vida
Bashar al Assad teve muitos momentos marcantes em sua vida, mas talvez o mais notável tenha sido um acidente de trânsito ocorrido em 1994, a milhares de quilômetros de onde ele morava na época.
Naquele acidente perto de Damasco, morreu seu irmão mais velho, Bassel, e isso mudaria a vida de Bashar, que então estudava oftalmologia em Londres. Ninguém imaginava que ele herdaria o poder de seu pai, Hafez al Assad, então presidente da Síria.
Após a morte de Bassel, foram feitos planos para preparar Bashar para assumir o poder na Síria.
Como Bashar al Assad passou de um estudante de medicina a líder autoritário acusado de crimes de guerra?
O legado de seu pai
Bashar nasceu em 1965, filho do casal Hafez al Assad e Anisa Makhlouf.
Essa foi uma época repleta de acontecimentos dramáticos na Síria e no Oriente Médio em geral. O nacionalismo árabe dominou a política regional na Síria e em outros países da região.
O partido Baath tomou o poder após o fracasso de uma união de curta duração entre o Egito e a Síria, entre 1958 e 1961, e promoveu o nacionalismo árabe. Assim como a maioria dos Estados árabes da época, a Síria não era uma democracia multipartidária.
A comunidade alauita, à qual pertencem os Assad, era uma das mais mal tratadas na Síria, e as dificuldades econômicas levaram muitos dos seus membros a se alistarem no exército sírio.
Entre as suas fileiras, Hafez al Assad, um militante do partido Baath, conseguiu ascender, se tornando Ministro da Defesa em 1966.
Hafez foi conquistando cada vez mais poder. E em 1971, tornou-se presidente da Síria, cargo no qual ficou até sua morte, em 2000. Seu regime contrastou com a tendência dominante na história da Síria independente — que tinha experimentado vários golpes militares e mudanças de governo.
Hafez Al Assad governou o país com mão de ferro. Ele esmagou a oposição e rejeitou a realização de eleições livres.
Na política externa, seguiu uma linha pragmática. Alinhou-se primeiro com a União Soviética. Mas na Guerra do Golfo de 1991 juntou-se à coligação liderada pelos EUA contra o Iraque de Saddam Hussein.
Medicina em Londres
Bashar havia escolhido um caminho muito diferente para sua vida, longe da política e do exército. Ele queria estudar medicina.
Depois de se formar na Universidade de Damasco, mudou-se para o Reino Unido em 1992 para se especializar em oftalmologia no Western Eye Hospital, em Londres.
Segundo o documentário The Assads, a Dangerous Dynasty ("Os Assads, uma Dinastia Perigosa"), Bashar viveu bons momentos na capital britânica. Ele gostava de ouvir Phil Collins e admirava aspectos da cultura ocidental.
Em Londres, Bashar conheceu a mulher que se tornaria sua esposa, Asma al Akhras. Ela estudava ciência da computação e foi admitida em um programa de MBA na Universidade de Harvard.
Bashar era o segundo filho de Hafez. Seu irmão mais velho era visto pela maioria dos observadores como o provável herdeiro do poder de Hafez.
Mas a morte de Bassel mudou radicalmente o curso da vida de Bashar, e ele foi imediatamente convocado a Damasco para iniciar a sua preparação como potencial sucessor do poder do seu pai.
Assim, Bashar juntou-se ao exército e começou a forjar a sua imagem pública em preparação para o papel que sabia que a história lhe reservava.
Primavera de Damasco
Hafez al Assad morreu em junho de 2000 e seu filho Bashar, então com 34 anos, foi proclamado presidente após uma mudança constitucional que baixou a idade mínima para ocupar o cargo, que era de 40 anos.
O novo presidente tomou posse no verão de 2000, introduzindo um novo tom no país. Ele falava sobre coisas como "transparência, democracia, desenvolvimento, modernização, responsabilização e pensamento institucional".
Poucos meses depois de ser nomeado presidente, Bashar se casou com Asma al Akhras, com quem teria três filhos: Hafez, Zein e Karim.
No início, a retórica do novo presidente sobre abertura política e liberdade de imprensa deu esperança a muitos sírios. Seu estilo de liderança, aliado à educação ocidental de Asma, pareciam o prenúncio de uma nova era de mudanças.
A Síria viveria um breve período de abertura e relativa liberdade de expressão conhecido como Primavera de Damasco. Mas já em 2001 as forças de segurança haviam retomado as suas práticas de prisões em massa e repressão.
Bashar introduziu reformas econômicas limitadas para encorajar a atividade privada. Mas nos primeiros anos da sua presidência, seu primo Rami Makhlouf estabeleceu um império econômico que, segundo os seus críticos, era fruto das ligações que tinha com o poder.
Iraque e Líbano
A Guerra do Iraque de 2003 deteriorou substancialmente as relações do regime de Assad com as potências ocidentais. Assad se opôs à invasão do Iraque por uma coalizão liderada pelos EUA — alguns diziam que por medo de que a Síria fosse o próximo alvo de Washington na região.
Os EUA, por sua vez, acusaram Damasco de permitir o contrabando de armas destinadas aos insurgentes contra a ocupação do Iraque e a passagem de militantes extremistas pela fronteira.
Em dezembro de 2003, Washington impôs sanções à Síria pelo seu papel na crise do Iraque. Mas o envolvimento da Síria no Líbano também preocupava Washington.
O antigo primeiro-ministro libanês Rafik Hariri foi assassinado em fevereiro de 2005 em um ataque no centro de Beirute que foi rapidamente atribuído ao regime sírio e aos seus aliados.
Protestos em massa no Líbano e a pressão internacional levaram à retirada da Síria de um país onde os seus militares estiveram presentes durante quase 30 anos.
Mas Assad e o seu grande aliado libanês, o partido da milícia Hezbollah, negaram repetidamente qualquer envolvimento no assassinato, mesmo depois de um tribunal internacional ter condenado um membro do Hezbollah em 2020 por envolvimento no crime.
Primavera Árabe
A primeira década de Bashar al Assad no poder viu as relações da Síria com Irã, Catar e Turquia, se fortalecerem. As relações com a Arábia Saudita tiveram altos e baixos, apesar de Riade inicialmente apoiar o jovem presidente.
Em geral, Bashar seguiu os passos de seu pai na política externa, com prudência e evitando confrontos militares diretos.
Mas dez anos de governo deixaram clara a inclinação autoritária de Assad — e a perseguição à oposição continuou.
Em dezembro de 2010, Asma al-Assad disse à revista Vogue que o seu país era governado "democraticamente".
Nesse mesmo dia, na Tunísia, um lojista chamado Mohamed Bouazizi ateou fogo a si mesmo na rua após ser agredido por um policial — desencadeando uma revolta popular naquele país que acabou derrubando o presidente Zine El Abidine Ben Ali.
A revolta tunisina inspirou movimentos revolucionários semelhantes em vários países árabes, incluindo Egito, Líbia, Iêmen, Bahrein e Síria.
A Síria "livre de bombas, tensões e sequestros" de que falava a revista Vogue seria dramaticamente transformada em pouco tempo.
Em meados de março de 2011, ocorreu um grande protesto em Damasco que, dias depois, se espalhou pela cidade de Daraa, onde um rapaz tinha sido preso por escrever mensagens contra Assad nos muros.
Assad demorou duas semanas para responder. Ele se dirigiu ao parlamento e prometeu acabar com o que chamou de "conspiração" contra a Síria, embora tenha admitido que muitas pessoas não estavam conseguindo viver com necessidades básicas.
Quando as forças de segurança dispararam contra os manifestantes em Daraa, o descontentamento aumentou e clamores por renúncia de Assad surgiram em muitas cidades sírias.
As autoridades responderam com violência e atribuíram a agitação a "sabotadores e infiltrados liderados por forças estrangeiras".
A situação piorou em apenas alguns meses, com confrontos cada vez mais frequentes entre as forças governamentais e as facções rebeldes que decidiram pegar em armas.
Crimes de guerra
À medida que o conflito se agravava, outros atores internacionais se envolveram.
A Rússia, o Irã e grupos armados apoiados por Teerã, como a milícia libanesa Hezbollah, aliaram-se ao exército de Al Assad. Já a Turquia e vários Estados do Golfo Pérsico tomaram partido de facções da oposição.
Os pedidos por democracia e liberdade deram lugar à crescente violência sectária. Alguns grupos rebeldes acusaram o regime de favorecer a minoria alauita em detrimento da maioria sunita da Síria.
E a intervenção de potências estrangeiras apenas aprofundou a divisão sectária. As facções islâmicas voltaram-se contra os alauitas, enquanto as milícias xiitas leais a Teerã, lideradas pelo Hezbollah, enviaram cada vez mais homens e armas para a Síria.
No vizinho Iraque, surgiu o grupo fundamentalista Estado Islâmico que aproveitou o caos para assumir o controle de parte do território sírio, estabelecendo a sua capital na cidade de Raqqa.
Em agosto de 2013, centenas de pessoas foram mortas em um ataque com armas químicas em uma área controlada pelos rebeldes perto de Damasco.
As potências ocidentais e a oposição culparam o regime de Assad, embora o governo tenha negado envolvimento. Finalmente, face à pressão internacional, Assad concordou em desmantelar o seu arsenal químico.
Mas isso não acabou com a longa lista de atrocidades na guerra civil. Houve mais ataques químicos e as comissões das Nações Unidas acusaram todos os lados no conflito de crimes de guerra, como homicídio e tortura.
Em 2015, o regime parecia pronto para cair, pois tinha perdido o controle de grandes áreas do país. Mas a intervenção militar da Rússia mudou o curso do conflito e permitiu que Al Assad recuperasse territórios importantes.
A guerra em Gaza
Entre 2018 e 2020, vários acordos internacionais estabeleceram que as forças governamentais controlavam a maior parte da Síria, e os rebeldes islâmicos e os guerrilheiros curdos mantinham redutos no norte e nordeste do país.
O panorama fortaleceu Assad, que aos poucos voltou ao cenário diplomático. A Síria foi readmitida na Liga Árabe e em 2023 os países árabes começaram a reabrir as suas embaixadas em Damasco.
Embora o país vivesse uma situação econômica cada vez pior, castigada por anos de guerra, o presidente parecia ter resistido aos insurgentes.
Mas em outubro de 2023, a organização armada palestina Hamas lançou um ataque contra o sul de Israel, desencadeando uma guerra em Gaza que rapidamente repercutiu no Líbano, causando um impacto notável no Hezbollah, um dos principais apoiadores de Assad.
A ofensiva israelense causou pesadas baixas ao Hezbollah, inclusive com a morte do seu líder, Hassan Nasrallah.
No mesmo dia em que entrou em vigor um cessar-fogo no Líbano, os rebeldes sírios, liderados pelo Hajar Tahrir al-Sham (HTS), lançaram um ataque surpresa e tomaram Aleppo, a segunda cidade do país.
Quase sem qualquer oposição, os insurgentes continuaram avançando e a tomando cidades. Areas do sul começaram a escapar ao controle governamental.
À medida que se tornou claro que nem a Rússia nem o Irã poderiam estar em posição de ajudá-lo desta vez, a situação do presidente sírio ficou precária.
As notícias das últimas horas sugerem que Al Assad não resistiu desta vez ao impulso dos seus inimigos, com informações em vários meios de comunicação — confirmada pela Rússia — de que ele deixou o país em um avião privado.