
Tempos de incerteza
A curiosidade sobre o Brics deve-se ao fato de o primeiro-ministro Anwar Ibrahim ter anunciado, em junho do ano passado, que a Malásia desejava ser membro
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Sábado passado, aqui em Kuala Lumpur, fiz uma apresentação para cerca de 80 jovens malásios. O convite partira de Danial Rahman, CEO do grupo de reflexão Asian Strategy & Leadership Institute (ASLI). O título da palestra foi escolhido pelo próprio Instituto: “Do BRICS à ASEAN: Liderança Global de Brasil e Malásia em Tempos de Incerteza".
Danial Rahman costuma ser listado como um dos malásios mais influentes com menos de 40 anos. Além de dirigir o ASLI, mantém coluna mensal em um dos principais jornais do país, é apresentador na televisão de um programa sobre temas da atualidade e detém cargo de direção em uma das mais conceituadas universidades malásias.
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A tônica da minha palestra foi sobre como, nos últimos anos, a relação bilateral se diversificou. De um diálogo anteriormente baseado em comércio e investimentos – e a troca comercial vem sendo de fato cada vez mais importante, tendo atingido praticamente 6 bilhões de dólares em 2024 – passaram os dois países a conversar sobre meio ambiente e mudança do clima, saúde, semicondutores e energia renovável.
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Mencionei também as atividades culturais, focalizando duas delas. Houve a publicação pela Embaixada, no início de 2024, com recursos do Instituto Guimarães Rosa, de um livro, com fotos e material inéditos, sobre o parque projetado em Kuala Lumpur por Roberto Burle Marx. E houve as duas edições, em 2023 e 2024, do Festival de Cinema Brasileiro. Para a edição do ano passado, a Embaixada selecionou filmes de diretoras mulheres. O longa “Que Horas Ela Volta?”, de Anna Muylaert, abriu o Festival. A prefeita de Kuala Lumpur, Maimunah Mohd Sharif, convidada de honra da cerimônia de abertura, disse-me depois que poderia se identificar com Jéssica, a personagem de Camila Márdila, símbolo no filme das possibilidades de ascensão que a educação proporciona. Meu objetivo, ao criar o Festival em 2023, foi justamente fornecer aos malásios um elo a mais de aproximação com o Brasil.
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Opinei, junto à plateia convidada pelo ASLI, que poucas coisas tornam uma sociedade estrangeira mais próxima de nós do que uma história que mostra a vida e o cotidiano das pessoas daquele outro país. Se os Estados Unidos são uma realidade tão presente para todo o mundo, é em parte porque todos crescemos assistindo a filmes de Hollywood.
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E justamente os Estados Unidos foram o centro de muitas das perguntas que me fizeram quando terminei a palestra. A posse de Donald Trump, acontecida cinco dias antes, é o dado mais marcante da atualidade no imaginário coletivo, na Malásia como em outros países. Resumo algumas das perguntas a que respondi: Donald Trump é anti-Brics? Donald Trump vai taxar as importações dos países do Brics? Por que o Brasil, país do futebol, não implementa uma política de cooperação esportiva com a Malásia, país que nunca conseguiu ser classificado para uma Copa do Mundo? Um maior conhecimento mútuo não teria de passar por uma melhor ligação aérea? A Embraer tem uma política para entrar no mercado dos países da Asean? Os membros do Brics querem uma moeda única? A Malásia virará membro do Brics? Convém à Malásia querer pertencer ao Brics?
A curiosidade sobre o Brics deve-se ao fato de o primeiro-ministro Anwar Ibrahim ter anunciado, em junho do ano passado, que a Malásia desejava ser membro do agrupamento. A notícia parece ter causado surpresa. Para mim, com base em entendimentos com funcionários do governo, já ficara claro que a iniciativa estava sendo cogitada, embora o anúncio tenha sido feito repentinamente. Durante várias semanas, embaixadores de países ocidentais em Kuala Lumpur questionaram-me, de forma crítica, sobre as motivações da Malásia a respeito.
Não vi razão para tanta inquietação. Nas entrevistas para a mídia que fui solicitado a fazer sobre o assunto, frisei que, não sendo o Brics, por si, um grupo antiocidental, era compreensível o pleito da Malásia. Este é um país que, como os membros do agrupamento, deseja uma reforma das instituições de governança global que satisfaça a legítima aspiração das nações em desenvolvimento de exercer papel mais importante nos assuntos internacionais.
Essas observações levaram às perguntas finais do público: o que acontecerá no dia em que o presidente Lula e o primeiro-ministro Anwar Ibrahim deixarem de governar Brasil e Malásia? Continuarão os dois países a se aproximar? Continuarão Brasília e Kuala Lumpur a ser lideranças a pleitear por uma voz mais firme dos países em desenvolvimento no cenário internacional?
São indagações pertinentes e de difícil resposta, que demonstram uma noção acertada da política internacional, área em que as certezas mais seguras, as visões mais adequadas podem ser, abruptamente, eliminadas.
Ary Quintella, diplomata de carreira, é desde janeiro de 2020 embaixador do Brasil na Malásia, escreve quinzenalmente no Estado de Minas.