Esperança primeira autobiografia de um papa
Prestes a ser lançada, obra escrita pelo chefe da Igreja Católica aborda reflexões sobre a própria trajetória e temas atualíssimos
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Siga no“Ainda que eu falasse línguas, as dos homens e as dos anjos, se eu não tivesse a caridade, seria como o bronze que soa.” Parte da Primeira Epístola aos Coríntios, a frase é uma das três epígrafes escolhidas pelo papa Francisco, de 88 anos, para abrir sua autobiografia, “Esperança” (Selo Fontanar/Companhia das Letras), com lançamento na próxima terça-feira (4/2), sob o ineditismo de ser a primeira obra de um sumo pontífice nesse gênero.
Durante seis anos, o chefe da Igreja Católica trabalhou no livro em que aborda questões cruciais do pontificado e temas como guerras, migração, crise ambiental, políticas sociais, condição das mulheres, sexualidade e desenvolvimento tecnológico, além do futuro da Igreja e das religiões. A palavra futuro remete a outra epígrafe escolhida pelo papa nascido em 17 de dezembro de 1936, em Buenos Aires, e batizado Jorge Mario Bergoglio. “O futuro entra em nós, para transformar-se em nós, muito antes de acontecer”, do poeta Rainer Maria Rilke (1875-1926).
Em suas memórias, permeadas de revelações e reflexões, e ilustradas por muitas fotos, Francisco tem a sintonia perfeita com o tempo em que vive. Na introdução, “Tudo nasce para florescer”, ele se apresenta, com delicadeza, fé e espírito coletivo, ao leitor: “O livro da minha vida é o relato de um caminho de esperança que não posso imaginar separado do caminho da minha família, da minha gente, de todo o povo de Deus. É também, em cada página, em cada passagem, o livro de quem caminhou junto comigo, de quem veio antes, de quem seguirá.”
Então, no plural, escreve o papa: “Uma autobiografia não é nossa literatura particular, e sim nossa bagagem. E a memória não é apenas o que lembramos, mas aquilo que nos cerca. Não fala apenas do que foi, mas também do que será. A memória é um presente que nunca acaba de passar, como disse um poeta mexicano. Parece ontem, e, no entanto, é amanhã.”
FRUTOS DOENTES
No momento em que centenas de pessoas são deportadas dos Estados Unidos, e que o mundo ainda assiste aos conflitos na Ucrânia e à fragilidade do cessar fogo em Israel, a palavra do chefe dos católicos vem em cima dos fatos. Junto a isso, se destacam a necessidade de justiça social e a atenção máxima às mudanças climáticas. “Emigração e guerra são duas faces de uma mesma moeda. Como bem se escreveu, a maior fábrica de migrantes é a guerra. De um modo ou de outro, porque as mudanças climáticas e a pobreza também são, em boa medida, o fruto doente de uma guerra surda que o ser humano declarou: a uma distribuição mais justa dos recursos, à natureza, a seu próprio planeta. O mundo hoje nos parece a cada dia mais elitista, a cada dia mais cruel com os excluídos e os marginalizados.”
Cenários de guerra são criados “por novos e velhos interesses, disparatados planos geopolíticos, avidez por dinheiro e poder”. O papa não se cala. “Hoje, também os planejadores do terror, os organizadores do embate, bem como igualmente os empresários de armamentos esculpiram no coração a mesma frase: ‘E o que me importa?’ Uma frase que polui e distorce todas as coisas. Mesmo o que temos de mais sagrado. Mesmo Deus. Não existe um deus da guerra: quem faz a guerra é o maligno. Deus é paz.”
Conforme a orientação de Francisco, é preciso empenhar todos os esforços para pôr fim à corrida armamentista e à preocupante difusão de armas. “As guerras contemporâneas afetam algumas regiões do mundo, mas as armas com que são travadas vêm de outras regiões muito diferentes, aquelas mesmas que depois rejeitam e rechaçam os refugiados gerados por essas armas e esses conflitos.”
Tais teatros da guerra conduzem o autor à infância, aos primeiros atos da existência. “Aprendi o que é a guerra com meu avô, Giovanni, quando criança. Foram seus lábios que me contaram, pela primeira vez, aquelas histórias dolorosas. Ele lutou em Piave (Itália).”
Giovanni Angelo Bergoglio e a mulher, Rosa, deixaram a Itália em 1929, num inverno com temperaturas de até 25 graus abaixo de zero – “Venderam os poucos bens que tinham na Região do Piemonte e chegaram ao porto de Gênova para zarpar no ‘Giulio Cesare’ com uma passagem só de ida”. Duas semanas depois, chegaram a Buenos Aires “com um calor úmido beirando os 30 graus”. Foram registrados como “migrantes ultramar”.
MELANCOLIA E FUTEBOL
Embora dizendo que “nós, irmãos, éramos vivazes”, Francisco confessa uma tendência para a melancolia, a qual sempre foi uma companheira de vida. “Não contínua, claro, mas boa parte da minha alma, um sentimento que me perpassava e que aprendi a identificar. Muitas vezes, me reconheci nos poemas de Paul Verlaine (1844-1896, poeta francês): 'Os soluços longos dos violinos do outono ferem meu coração'.” Ele conta, na autobiografia, que “às vezes, a melancolia volta, vez ou outra é um lugar onde me vejo e que aprendi a reconhecer”.
A paixão pelo futebol e pelo time argentino San Lorenzo entra em campo no capítulo “Brincando sobre a superfície da Terra”. “Sempre gostei de jogar futebol, e pouco importa se eu não era grande coisa. Em Buenos Aires, os que jogavam como eu eram chamados de ‘pata dura’ – algo como ter dois pés esquerdos. Mas jogava. Muitas vezes, ficava como goleiro, que considero uma ótima posição: ensina a encarar a realidade, a enfrentar os problemas; talvez a gente não saiba bem de onde veio aquela bola, mas de qualquer modo precisa tentar pegá-la. Como acontece na vida.”
O CONCLAVE
No livro escrito com o editor Carlo Musso, o papa narra sua trajetória religiosa até chegar à eleição para ocupar o trono de São Pedro, no Vaticano, revelando algo muito curioso: como nasceu o nome Francisco. “Quando o meu nome foi pronunciado pela septuagésima vez, explodiu um aplauso, enquanto a leitura dos votos continuava. Não sei quantos foram exatamente no final, não conseguia ouvir mais nada, o barulho encobria a voz do escrutinador. Nesse momento, enquanto os cardeais ainda aplaudiam e o escrutínio seguia, o cardeal Hummes (dom Cláudio Hummes, gaúcho, 1934-2022), que tinha estudado no seminário franciscano de Taquari, no Rio Grande do Sul, levantou-se e veio me abraçar. ‘Não se esqueça dos pobres’, disse-me. Aquela frase me marcou, eu a senti na minha carne. Foi ali que surgiu o nome Francisco.”
E qual o futuro da Igreja? Segundo Francisco, a Igreja deve crescer na criatividade, na compreensão dos desafios da contemporaneidade, abrir-se ao diálogo, não se isolar no temor. “Uma Igreja fechada e assustada é uma Igreja morta. É preciso ter confiança no Espírito, que é o motor e o guia da Igreja, e faz barulho. Basta pensar no relato do Pentecostes, que foi uma verdadeira algazarra: 'De repente, veio do céu um ruído como o agitar-se de um vendaval impetuoso, que encheu toda a casa onde se encontravam' (At 2,2), e todos começaram a falar em línguas desconhecidas, e saíram. Saíram à rua. Todos fora. Fora das nossas zonas de conforto. Porque só a partir dessa abertura é possível gerar harmonia.”
Após a leitura de “Esperança”, faz todo sentido a terceira epígrafe escolhida pelo papa, desta vez do poeta italiano Nino Costa (1886-1945). “Diretos e sinceros, aquilo que são parecem: cabeça quadrada, pulso firme e fígado saudável, falam pouco, mas sabem o que dizem; embora caminhem devagar, chegam longe.”
Trechos do livro
“Esperança: a autobiografia”
Pobreza e desenvolvimento
“Os países em desenvolvimento continuam a ser depauperados de seus melhores recursos naturais e humanos em benefício de poucos mercados privilegiados. Enquanto o desenvolvimento autêntico é inclusivo, fecundo, projetado para o futuro e para as próximas gerações, o falso desenvolvimento torna os ricos mais ricos e os pobres mais pobres, sempre e em todas as partes. E aos pobres não se perdoa nada, nem sua própria pobreza. Não podem se permitir ser tímidos ou desanimados, são vistos como ameaçadores ou incapazes, não lhes é autorizado enxergar o fim do túnel da sua miséria. Chegou-se ao ponto de teorizar e implementar uma arquitetura hostil para se desembaraçar da sua presença, até mesmo de vê-los nas ruas.”
Esporte e sociabilidade
“Jogar é um direito, e existe o sacrossanto direito de não ser campeão. Por trás de toda bola rolando sempre há um garoto com seus sonhos e suas aspirações, com seu corpo e seu espírito. Está tudo envolvido, não só os músculos, mas também a personalidade inteira em todas as dimensões, mesmo as mais profundas. De fato, quando alguém se empenha muito em alguma coisa, dizemos: 'Está dando a alma'.
O jogo e os esportes são uma grande ocasião para aprender a dar o melhor de si, mesmo com sacrifício, e, principalmente, não sozinho. Vivemos hoje uma época em que é fácil se isolar, criar ligações apenas virtuais, à distância. Na teoria em contato, mas na prática sozinhos. A beleza de jogar bola é, justamente, o corpo a corpo, passar a bola um para o outro, aprender a construir os lances, crescer como indivíduos e nos harmonizar como equipe… Então a bola se torna não apenas uma ferramenta, mas um instrumento, convidando pessoas reais a partilhar uma amizade verdadeira, a se reencontrar num espaço concreto, a se olhar de frente, a se confrontar e pôr à prova as habilidades de cada um. Muitos definem o futebol como 'o jogo mais bonito do mundo', e para mim era mesmo. Vivido dessa maneira, como uma atividade que ensina sobretudo a sociabilidade e a gratuidade, ele realmente faz bem ao corpo todo, não só às pernas, mas também à cabeça e ao coração.”
Pecado e misericórdia
“Até nos momentos mais sombrios, mesmo nos momentos de pecado, senti que o Senhor não me abandonou; que – e é isto que significa etimologicamente a palavra “misericórdia” – abriu seu coração ao miserável. Para mim esta é a verdadeira identidade de Deus, a misericórdia. Sempre me impressionou a história de Israel como é contada na Bíblia, no capítulo 16 do livro de Ezequiel: compara Israel a uma menina recém-nascida, de quem não foi cortado o cordão umbilical, e que é deixada suja de sangue, abandonada. Deus a vê enquanto se debate em meio ao sangue, limpa-a, unge-a com óleo, veste-a, e quando cresce enfeita-a com seda e joias.
Mas ela, arrebatada pela própria beleza, se prostitui, sem cobrar, pagando, aliás, ela mesma a seus amantes. Deus, porém, não se esquece de seu compromisso e a põe acima de suas irmãs mais velhas, para que Israel se lembre e se envergonhe (Ez 16,63), quando lhe será perdoado tudo o que fez. Esta, para mim, é uma das maiores revelações: continuará a ser o povo eleito, seus pecados serão perdoados. Jesus disse que não veio pelos justos, mas pelos pecadores. Não pelos saudáveis, que não precisam de um médico, mas pelos doentes. É isto: a misericórdia é profundamente ligada à fidelidade de Deus.”

Capa do livro
“Esperança: a autobiografia”
• Do papa Francisco
• Editora Fontanar/Companhia das Letras
• 368 páginas
• R$ 54,90 (livro físico) e R$ 29,90 (e-book)