80 anos do fim da segunda guerra

"Depois de Tanto Sangue, Um Soldado Quer se Divertir"

A vitória soviética em Berlim trouxe terror: milhões de mulheres foram estupradas em atos de vingança. A violência foi naturalizada sob o comando de Stálin

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JÚLIO MOREIRA

Embora tenha simbolizado o colapso do nazismo, a vitória soviética em Berlim veio acompanhada de um rastro de violência, vingança e terror contra civis — especialmente mulheres. Historiadores e sobreviventes denunciam as marcas profundas deixadas pela ocupação.

Quando as tropas soviéticas finalmente tomaram Berlim em 2 de maio de 1945, o mundo celebrou o fim do Terceiro Reich. Contudo, por trás das bandeiras vermelhas fincadas no Reichstag, da rendição do general Weidling e da imagem da cidade devastada, se escondiam relatos silenciosos de horrores que não estavam no campo de batalha.

Documentos, pesquisas e testemunhos ao longo das décadas revelaram que a vitória soviética foi acompanhada por uma série de atrocidades sistemáticas, cometidas principalmente contra a população civil alemã — um ato de vingança que transformou a capital derrotada em um campo de abuso generalizado.

Segundo estimativas de historiadores como Antony Beevor, autor de Berlin: The Downfall 1945, até 2 milhões de mulheres alemãs foram estupradas durante os meses finais da guerra, sendo cerca de 100 mil apenas em Berlim. A maioria dos ataques ocorreu entre abril e maio de 1945, quando o Exército Vermelho entrou na cidade. Muitas mulheres foram violentadas repetidamente, e algumas não sobreviveram às agressões. Há registros de estupros cometidos contra crianças, adolescentes e idosas, além de casos de suicídio em massa motivados pelo trauma ou pelo medo da violência iminente.

“Foi uma vingança dirigida não apenas aos soldados inimigos, mas também às mulheres alemãs — vistas como símbolos do povo que havia provocado anos de destruição em solo soviético”, afirma Beevor. O historiador britânico ressalta que, apesar da censura soviética e do silêncio institucional, os abusos foram registrados por médicos, religiosos e até por autoridades do Exército Vermelho.

Milovan Djilas, representante da missão militar iugoslava em Moscou durante a guerra, relatou em seu livro Conversations with Stalin uma frase atribuída ao próprio líder soviético: “Vocês não compreendem que, depois de atravessar milhares de quilômetros sob fogo e sangue, um soldado queira se divertir com uma mulher ou levar uma lembrança?”. A citação, brutal em sua naturalização da violência, ajuda a entender o clima permissivo instaurado sob o comando de Stálin.

Relatos de sobreviventes colhidos após a guerra reforçam a dimensão do horror. Marta Hillers, autora do diário Uma Mulher em Berlim, publicado anonimamente anos depois, narra em detalhes sua experiência de abuso, humilhação e sobrevivência. Em seu testemunho, ela relata ter sido estuprada por soldados soviéticos em um porão e depois se submetido voluntariamente a um oficial em troca de proteção: “A única moeda que tínhamos era o nosso corpo”.

Médicos da Cruz Vermelha e da Caritas estimaram milhares de internações de mulheres com ferimentos decorrentes de agressões sexuais nos hospitais da capital. Um relatório da igreja protestante enviado secretamente à Suíça, em meados de 1945, contabilizava uma “epidemia de violência sexual” e alertava que “toda mulher entre oito e oitenta anos foi em algum momento vulnerável a ataques”.

A historiadora alemã Barbara Johr, coautora do livro BeFreier und BeFreite (Libertadores e Libertadas), enfatiza que a violência sexual em massa foi usada como ferramenta de dominação: “Não foi um desvio de conduta individual. Foi parte do comportamento de uma tropa alimentada pela retórica de vingança e incentivada por seus comandantes a ver o inimigo como sub-humano”.

Além dos estupros, houve saques sistemáticos a residências, bibliotecas, igrejas e até laboratórios, de onde substâncias químicas foram roubadas e consumidas como álcool improvisado. O Reichsbank foi pilhado: 2.388 kg de ouro, 12 toneladas de moedas de prata e milhões em notas dos países ocupados pelos nazistas desapareceram sob custódia soviética.

Entre os próprios soviéticos, havia quem denunciasse os abusos. O general Vassili Grossman, jornalista de guerra e autor de Vida e Destino, descreveu em suas anotações a perplexidade diante da selvageria cometida por seus compatriotas em nome da vitória. Seus escritos, porém, foram censurados durante décadas.

Apesar do heroísmo incontestável de muitos soldados soviéticos que tombaram na luta contra o nazismo, os crimes cometidos contra civis em Berlim deixaram uma mancha profunda sobre o final da guerra. Uma vitória manchada por sofrimento — e por décadas de silêncio imposto pela Guerra Fria e pelo culto ao “libertador soviético”.

Para muitos dos sobreviventes, a paz de 1945 veio tarde demais. E chegou acompanhada de um novo tipo de opressão.

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