Afonso Henriques Neto
Engole o peixe
engole o peixe com a espinha
e tocarás a guelra de Deus
aprende todas as palavras
antes de reduzi-las a Uma
ser infinitas palavras
não precisar de Nenhuma
Dos olhos do não
se lhes derem o líder a ordem o partido
não acreditem nesta imposta realidade
neste implacável colar de conchas de ar
se lhes derem os códigos os gestos as modas
não acreditem nesta enlatada realidade
nesta implacável aranha de invisíveis fios
se lhes derem a esperança o progresso a palavra
não acreditem na vazia realidade
na implacável engrenagem das hélices de vácuo
aprendam a olhar atrás do espelho
onde a história jamais penetra
a profunda história do não registrado
aprendam a procurar debaixo da pedra
a estória do sangue evaporado
a estória do anônimo desastre
aprendam a perguntar
por quem construiu a cidade
por quem cunhou o dinheiro
por quem mastigou a pólvora do canhão
para que as sílabas das leis fossem cuspidas
sobre as cabeças desses condenados ao silêncio
Poema
A paisagem não vale a pena.
Pesa dizê-lo assim tão duramente,
mas o que posso fazer contra os mascarados
que penetraram os altos muros
e agora coabitam os aposentos desolados?
Já não vale a pena a manhã.
Os embuçados chegaram em surdina
e foram destroçando todos os pilares,
todas as primaveras, as lúcidas esperanças,
vultos tão horrendos que paralisaram o dia.
A noite não significa mais nada.
As casas dormem e não significam nada.
O vento cortou-se em mil fatias de desespero.
Que dimensão canta além da treva,
a face repousada, os olhos claros?
Oração urbana
pai nosso massacrado na cidade
santificado seja o martírio da carne
venha a nós o espetáculo de sombra
pânicos animais no cósmico matadouro
seja feita a treva singular
que clama pela aurora do divino
o labirinto nosso e o pão do mistério
caiam em tempestade
sobre os ossos do universo
amém
Quase cinza
eu sei onde ladram os ventos pelos ladrilhos
dos mistérios inexistentes.
eu sei de que matéria esta sensação de derrota
é feita, moldada, entre instrumentos de tortura
e pálpebras e espelhos amassados.
eu sei dos que falam no escuro a flauta da voz
das fábulas.
eu sei através do vídeo o vácuo do sangue atrás e além
da imagem, violentos planetas vomitando o drama.
eu sei as tartarugas infinitas.
os bodes expiatórios.
os lavabos cheios de unhas vivas.
a eternidade do gesto humano
morrendo no longo tombadilho.
sei das certezas e incertezas verdes.
sei do resumo de tudo a dançar na chuva mais cotidiana.
só não sei do teu sorriso se diluindo em nuvem.
só não sei do teu corpo quase infantil
de mulher amanhecida.
só não sei do timbre de tua voz
entre borboletas e musgos fluindo do único verbo.
só não sei do opalescente rastro de teus pés
entre cachoeiras apagadas.
só não sei da galáxia a resumir vazia
o silêncio mortal de tua alma quebrada.
ai de mim
que eras ouro e breve.
Das opacidades urbanas
há um silêncio tão terrível
tão devastador
sob o arruído azucrinante da cidade
que é sempre melhor
ampliarmos a catástrofe sonora
a propagação alucinada das imagens
ao máximo grau possível
à obscenidade absoluta
e assim afastarmos o vácuo
e assim evitarmos o congelamento
do sangue e do espírito
pelo silêncio infinito
pela boca vazia de palavra
e sentido
pelo universo cego a pulsar
em demência extática
na carne das pedras mais fundas
no carvão dos alicerces inenarráveis.
Exercício
empurre as mãos lentamente
através da pele do rio
até tocar o coração da beleza
(ruína do tempo impenetrável)
depois as retire lentamente
como se puxasse do infinito
a respiração
da criança nascendo
Torno a repetir
o papel para sempre em branco.
entanto o poeta bebia o dia.
era um banco de jardim
mariposa a cuspir luz e lua
as coisas passeavam.
papel branco de todas as palavras.
um ritual acima do anjo
acima do entendimento celestial
por isso todos viam
o poeta sonhar incólumes avenidas.
e as avenidas eram avenidas
não um gracejo de óleo inexistido.
o papel ou branco se ardia.
o poeta nem ao menos
ou desenhando o dia.
Nada a desenhar
nada a desenhar
sob o diamante do olhar
poeta no abismo
medular
nem há no fundo
do coração do mundo
sonho ou vento demiurgo
que tudo venha explicar
carne ou metáfora – não importa –
sendo nada tudo alcança:
o poeta é a viagem
mesmo contra a esperança
Logopeico
Manter viva a língua; fazê-la sempre nova; decadência
é a palavra a se perder do sentido
(noite que apaga o entardecer em laivos de ferrugem);
quando flui abortos por todo lado: no fogo, na mídia,
no chão, na internet, na água, na política: rugem nuvens;
manter viva a língua é o poeta outra vez a deslizar
em mar grego, em campina latina, nos verbos de sons
da Provença, nos encaracolados, barrocos cabelos
camonianos; e de toda parte cantar a cristalina matriz;
manter viva a língua é dar nova luz a cada palavra,
é mergulhar na tradição para respirar a raiz,
sangue a cobrir de seda um sol de aromas;
e não se satisfazer com isso, e tramar
a crítica mais ácida sobre a complexa herança;
e outra vez arder nas árvores da invenção,
despersonalizar-se para se alçar na imensidão;
pois sonhar o novo poema
é diverso da mera ironia, mero sarcasmo,
do infantil quebrar de louças nas lojas da estupidez
ou nos relâmpagos de poentos clichês; manter viva a língua
é ofício de amor e suor insanos; leitura e escrita
de treva e delírio; coragem, vertigem, ritmos e miasmas
dos pântanos a se dissolverem na suculenta alvorada.
Manter viva a língua é ir sempre além de cuspo e porrada.
Discurso
nada existe, celebremos
a alegria.
o nascer e o morrer
não nos acontece.
só para os outros
somos espetáculo.
há vento em excesso
pelos buracos da linguagem.
um jardim muito espesso
labirinto de ideias
flocos de imagens sobre natais de fumaça.
nada existe, celebremos
aventura.
tudo se instala
o sentido esvaziou-se do oceano
praias da totalidade.
o que não existe
celebra a concretude.
é grave a pedra
a pele desgarrada
o esqueleto do silêncio.
lábios se tocam em alegria
beijo seco
jardim de séculos.
quase nenhuma fala
ninguém
mas os caminhos.
recordemos:
infância veloz
olfato de espantos
estátua ardente arfando
no sonho.
apenas não há
ninguém
mas os espaços
(apenas o já nascido
previamente ido).
infinito buraco sem tempo
celebração.
“Névoas de sonho/Brumes de songe”
De Afonso Henriques Neto
Harmattan Édition
Edição bilíngue
166 páginas
R$ 100
Lançamento na próxima terça-feira, às 19h30, na Academia Mineira de Letras (R. da Bahia, 1466).