As eleições presidenciais de 2022 aconteceram em um dos momentos mais conturbados da história do Brasil. O antagonismo dos concorrentes ao Palácio do Planalto Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e Jair Bolsonaro (PL) transbordou em muito os debates na esfera política e inundou a vida dos brasileiros nas mais diversas esferas. Os efeitos desse maniqueísmo são objeto de análise do cientista político Felipe Nunes e do jornalista Thomas Traumann em “Biografia do abismo: como a polarização divide famílias, desafia empresas e compromete o futuro do Brasil” (Harper Collins, lançado neste dezembro.


O livro é municiado por dezenas de pesquisas do instituto Genial/Quaest, que oferecem um arcabouço para as discussões e análises da polarização entre Lula e Bolsonaro. Os autores mostram como a disputa sacralizada nas urnas em 2022 é resultado de um cenário que veio sendo construído anos a fio, reflete efeitos similares em outros países e, principalmente, deve seguir ditando as relações entre brasileiros no futuro não apenas na esfera política, mas nas famílias, escolas, ambientes de trabalho e as mais diversas esferas sociais.


Ao longo de sete capítulos, Nunes e Traumann discorrem sobre o contexto atual do acirramento de opiniões do país, contextualizam com elementos do passado e de fora do Brasil e introduzem classificações mais adequadas ao cenário contemporâneo, como a ‘polarização afetiva’ e a ‘calcificação’. Em entrevista ao Estado de Minas, os autores de “Biografia do abismo” comentam detalhes sobre o livro e apresentam seus principais conceitos.

Como foi organizar os dados das pesquisas Genial/Quaeste elaborar cada capítulo temático?
Thomas Traumann: Quando a gente começou, queríamos contar a história da eleição durante a eleição de 2022. A gente conversava muito, discutia o que estava acontecendo e tentava compreender o cenário. Conforme a gente foi analisando, acrescentando literatura internacional, demos dois passos atrás e percebemos que essa eleição é muito mais que uma eleição, era algo maior. Então, a gente começou a discutir esse processo de como a polarização tinha alcançado esse nível que a gente falou de calcificação tão cristalizada, tão sedimentada. Os dois lados iriam votar daquela forma, não importa o que o Lula ou o Bolsonaro dissessem. Até dezembro era um livro, a partir do 8 de janeiro o livro foi se mexendo e tornou-se outra obra. Ele parte dessa ideia básica que é dessa constatação. Como deixou de ser simplesmente uma disputa eleitoral e passou a interferir na vida das pessoas. Acho que o livro foi evoluindo no processo. Se a gente tivesse nosso deadline de exatamente um ano atrás seria um livro muito circunscrito à eleição. Mas, com o tempo, a gente foi vendo que isso havia contaminado a sociedade de tal forma que era outro livro.

Felipe Nunes: Ter a maior série histórica de pesquisas sobre um processo eleitoral já feita no Brasil foi fundamental, porque, ao invés de simplesmente ter hipóteses e falar de maneira normativa, a gente também foi capaz de ir medindo enquanto os fenômenos iam acontecendo. De fato, foi uma experiência muito rica.

Vocês separam um capítulo específico para debater o conceito de ‘calcificação’, mas este é um termo utilizado ao longo de todo o livro. Vocês consideram que essa é uma ideia mais precisa que ‘polarização’ para descrever o cenário brasileiro?
Nunes: O livro tem uma série de conteúdos, mas acho que uma das inovações é essa diferenciação entre polarização e calcificação. Acho importante a gente falar sobre isso. A gente reforça que o Brasil sai das urnas em 2022 afetivamente polarizado e socialmente calcificado. Essa polarização afetiva tem a ver exatamente com a ideia de que o outro passa a ser seu inimigo. A polarização é uma coisa normal na história brasileira, você já teve Getúlio e anti Getúlio, já teve regime anti regime, PT e PSDB. Mas, durante o governo Bolsonaro, essa polarização virou identitária e quando ela vira uma polarização identitária, passa a ocupar o lugar da afetividade, o lugar das emoções, o lugar em que eu olho para o meu adversário como inimigo.

Sobre a inserção das pesquisas, um dos dados que vocês usam logo na introdução é a baixa volatilidade da aprovação do governo Jair Bolsonaro mesmo com a pandemia e falas polêmicas. Esse foi o ponto pelo qual vocês partiram para discutir o conceito de calcificação ou houve outros fatores?
Nunes: Esse foi o primeiro elemento. Enquanto a gente lia as pesquisas de avaliação do governo Bolsonaro e percebia que oscilava muito pouco na comparação com FHC, Lula, Dilma e Temer. Imagine que você tivesse contando a história de 2022 sem o resultado. Era mais ou menos assim: pandemia, problemas econômicos, falas polêmicas. Era de se esperar que também houvesse muita volatilidade na avaliação e o que a gente captava era o inverso. Então se fez necessário explicar esse fenômeno e o que o que a gente descobriu foi muito mais profundo do que isso. A gente foi olhar para o padrão de votação dos estados brasileiros e das cidades brasileiras de 1998 para frente e percebeu que esse processo que se consolidou em 22, vem sendo construído ao longo das eleições. A cada nova eleição a variação no voto PT e anti-PT foi se aproximando de zero.Ouseja, para saber como é que um eleitor de uma cidade vai votar em 26 basta olhar em 22. Você quer saber como é que vai votar em 22 basta olhar 18 por aí vai. A gente foi percebendo que essa avalia ção ao longo do mandato é fruto de uma mudança na sociedade que foi constituída ao longo do tempo e foi apenas quando a gente viu que a avaliação do Bolsonaro variava pouco que formamos a opinião de que havia um cenário calcificado. Ou seja, as pessoas votam cada vez mais parecido, têm visões de mundo cada vez mais homogêneas e isso vai fazendo com que elas formam uma camada de proteção que filtra a maneira que elas enxergam a realidade. A melhor evidência disso hoje, para concluir, é que se você perguntar para o eleitor do Lula como vai a economia, 57% diz que está melhorando e, se você perguntar a mesma coisa para o eleitor do Bolsonaro, 57% diz que está piorando. Existe um filtro que impacta a maneira como a gente está olhando para a realidade.


Sobre essa questão do filtro, o primeiro capítulo do livro já trata sobre a ‘um novo ecossistema de comunicação política’. Vocês avaliam que esse contexto é primordial para entender o cenário calcificado?
Traumann: Essa questão é primordial e por isso que foi nosso primeiro capítulo. Foi intencional. Você não conseguiria ter esse tipo de sociedade tão acirrada, se não fosse esse tipo de comunicação. Isso não é nenhuma jabuticaba, o que estamos vendo aqui não é muito diferente do que os americanos estão passando desde a eleição do Trump em 2016, não é diferente da situação do Modi na Índia, ou da Argentina agora. Quer dizer, você tem uma uma situação mundial em que as redes sociais passam a ser o campo para um tipo novo de política. Você pode até dizer que os políticos são velhos, mas eles conseguiram se remodelar e refazer essas linguagens de uma forma que dá efeitos muito mais rápidos. A grande diferença, e eu acho que é uma parte fundamental nesse livro, é a forma como as pessoas consomem informação. As pessoas já não esperam que as notícias saiam em um jornal no dia seguinte, as coisas são muito mais rápidas. Além disso, as pessoas não estão mais preocupadas que um jornalista faça uma matéria equilibrada, por exemplo. Elas querem uma matéria que diga exatamente o que querem ouvir. Esse é um dos grandes desafios para o futuro da mídia, não só para a política. Porque, no momento em que você tem uma parte gigantesca das pessoas que consomem política interessadas em saber se um conteúdo é a favor ou contra o governo, tudo vira uma coisa de torcida de futebol. O próprio consumo de informação passa a ser parte desse sistema político que fortalece um núcleo, uma bolha. Casa a forma como as pessoas se informam e como elas tomam decisões políticas.

A questão da polarização afetiva não está relacionada à participação ativa das pessoas no cenário político? Não seria uma consequência direta de um envolvimento mais incisivo dos eleitores?
Traumann: “Tem saída?” é a pergunta de um milhão de dólares do nosso livro. Porque no fundo a resposta é: tem. Se houvesse um congraçamento mundial, as pessoas se decidissem, todo mundo tivesse mais paciência e mais tolerância. Enfim, tem saída. Mas vai acontecer? Provavelmente não da forma como a gente imagina. A polarização per se não é ruim. Não é ruim ter um país polarizado, porque o país polarizado é um país de debate e é bom que o país debata ideias, é bom que o país seja plural, que as pessoas pensem diferente e que tenham um lugar para falar que elas acham. Esse livro não é um livro contra a polarização de jeito nenhum, mas a questão chega no limite quando esses dois lados não estão escutando um ao outro. Uma coisa é quando você tem ideias que se batem, com tese e antítese que formam uma síntese. Outra coisa é ter dois grandes grupos que estão, no fundo, tentando destruir o outro. Eu acho que essa é a diferença entre polarização e calcificação. Hoje temos duas duas questões básicas: não tem uma saída de cima para baixo nem saída de baixo para cima. Enquanto os políticos utilizarem o discurso polarizante, o discurso do radicalismo, do ‘contra o outro’ como a base da sua política, eles estão só alimentando isso. Enquanto eles jogarem para seus cercadinhos, eles estão incentivando isso. Enquanto eles acham que derrotar o outro é mais importante do que fazer, eles estão jogando a favor desse cenário. Isso vale para o Supremo, para o Congresso, para o Planalto e para a oposição. Quando você pensa nessa mudança vinda de baixo, você tem que pensar na linha de: como é que as famílias vão se reunir para o peru de Natal? Como você vai sobreviver num ambiente em que você só aceita conviver com quem pensa igual a você? Você realmente quer viver numa sociedade em que todos pensam como você? Em que só se fala com iguais e deixo de conversar com quem pensa diferente, com seu irmão, com sua tia porque há divergências em temas como orientação sexual, como o aborto? Esse tipo de sociedade que a gente quer ter?
Nunes: É mais ou menos assim, no Planalto, a responsabilidade é deixar de pautar os valores e deixar de reforçar o identitarismo, ou seja, mudar a agenda. Na planície é torcer para que o afeto entre as pessoas seja maior do que as diferenças políticas. É possível. A gente só não acha que vá acontecer, porque os incentivos do sistema de comunicação, dos sistemas eleitorais e dos sistemas afetivos nos levam para outros lugares. A gente (os autores) está doido para saber quem é que vai odiar o livro, se serão os dois lados, se um lado só. Porque a gente não acha que vai escapar disso não, o livro é parte desse novo ecossistema.

O livro também traz a discussão sobre os espectros abarcados nos dois polos, já que existem diferentes perfis dentro do lulismo e do bolsonarismo. Quando uma figura como o presidente do Congresso, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), hostilizado por bolsonaristas, se movimenta para limitar as ações do STF, outro alvo da extrema-direita, não pode favorecer com que essa tolerância seja exercida? Não pode influenciar para que as pessoas tenham opiniões mais razoáveis?
Nunes: Se eu responder a sua pergunta lendo esse livro, o que eu te diria é que o Pacheco simplesmente acirrou a disputa. A imagem dele deve piorar para os dois lados. Ao invés dele resolver o problema, ele só comprou inimigos. A visão vai ser de que ele não é bolsonarista, a gente sabe que ele está a favor das prisões do 8 de janeiro, por exemplo, e nem é lulista porque está indo contra o Supremo.O problema não é o que as pessoas fazem, mas como as pessoas interpretam isso e a interpretação depende exatamente daquele filtro que eu falei. O mesmo fato é interpretado dos dois lados de maneiras completamente diferentes, desgastando aquela figura de alguma maneira. Eu vou dar um outro exemplo que é totalmente atual que é a indicação do Flávio Dino ao STF. O Lula hoje agrada e desagrada a base dele ao mesmo tempo. Ele coloca umministro progressista, portanto agrada e deixa os bolsonaristas insatisfeitos. Por outro lado, o Dino não é mulher não é não é negro é está ocupando o lugar de uma mulher na corte e isso vai de encontro a ideia identitária que uma parte importante da esquerda tem. Nesse mundo calcificado, a chance de desagradar com uma decisão é muito maior do que a de agradar porque está todo mundo míope, olhando sobre o resultado sobre sua própria ótica.

Traumann: O Pacheco tentou uma política antiga, a de tentar trazer o adversário para perto. Isso funcionava até dez anos atrás. O tom ofendido dos ministros do Supremo mostra isso, eles dizem algo como ‘você era do nosso lado, você está nos traindo’. É o jogador que sai de um time e vai para o rival, em todo jogo ele vai levar vaia dos dois lados e nunca vai ser bom o suficiente. Não estou entrando no mérito da decisão, mas falando como efeito de popularidade. A ideia dele era ampliar o eleitorado dele dentro do espectro conservador em Minas e isso não deu certo, porque ele nunca vai ser considerado bom o suficiente para esse grupo. Ao passo que para o eleitorado mais progressista ele passa a ser visto como alguém que cede demais, que é flexível demais. 

 

"Biografia do Abismo: como a polarização divide famílias, desafia empresas e compromete o futuro do Brasil"

Reprodução

“Biografia do Abismo: como a polarização divide famílias, desafia empresas e compromete o futuro do Brasil”
Felipe Nunes e
Thomas Traumann
Harper Collins Brasil
240 páginas
R$ 59,90

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