Casas, lojas, escolas e prefeitura submersas, animais mortos em telhados e na rede elétrica, ruas transformadas em rios de lodo. Esse foi o cenário encontrado por um grupo de voluntários de Torres, no litoral norte do Rio Grande do Sul, ao chegar a um município do vale do rio Taquari no qual as chuvas torrenciais e a cheia do rio deixaram a trilha mais funda de mortes e destruição.
O município era Muçum. Não em maio de 2024, mas em setembro de 2023.
A imagem da carcaça de uma ovelha pendurada em um poste, que correu mundo e virou símbolo da enchente na região em 2023, foi registrada em Muçum.
Das 31 pessoas que morreram na catástrofe, 15 viviam no município.
Ao longo de dois dias, deslocando-se em dois carros carregados com mantimentos, os voluntários se dedicaram a auxiliar na limpeza de casas e ruas.
Não cogitavam a possibilidade de que, passados sete meses, voltariam a se reunir em circunstâncias ainda mais dramáticas com os mesmos propósitos de socorro e solidariedade.
Desde sábado (4/5), remanescentes do comboio puseram em marcha uma operação de solidariedade que rapidamente superou a de 2023.
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O grupo, com mais de 500 voluntários e apoiadores, é responsável pela coleta, transporte e distribuição de doações a atingidos em Porto Alegre, Canoas, Gravataí e outros municípios. A organização ocorreu essencialmente por meio de redes sociais.
Para armazenar os donativos, foi utilizado, na terça-feira (7/5), o pavilhão de um clube no centro de Torres. Nas primeiras horas, o grupo reunia cerca de 10 pessoas. Quatro dias depois, nem a chuva incessante detinha o movimento de doadores e voluntários no local.
A responsável pela logística, Rita Helena Ferreira, de 40 anos, foi uma das participantes do grupo que esteve em Muçum em setembro. A corretora imobiliária se lembra de ter feito a limpeza de uma casa onde morreram cinco pessoas – um terço do total de mortes registradas no município.
Com memória treinada pelo ofício, Rita guardou detalhes precisos do local: uma edificação térrea, de alvenaria, não mais de 200 metros quadrados, com garagem e pomar, em um final de rua. "O vizinho chegou e nos disse que os ocupantes, um casal de idosos, não quis sair quando a enchente começou", recorda-se. Na tentativa de salvá-los, um filho e dois vizinhos também pereceram.
As paredes internas ainda guardavam as manchas deixadas pela água ao atingir o nível mais alto, perto do teto. "Acima daquele ponto, as paredes tinham marcas escuras de mãos. Eles tentaram encontrar uma saída para o telhado, que não existia", relata.
Organizado pelas redes, grupo tem mais de 500 participantes
No depósito em Torres, há alas para cada tipo de doação identificados por cartazes. "Alimentos – Precisamos de açúcar, feijão/lentilha, óleo, massa, leite, bolacha", "Limpeza, pets, utensílios", "Higiene pessoal" são alguns dos dizeres escritos à mão em folhas de cartolina.
Turmas de voluntários fazem a separação de itens para embarque rumo às áreas afetadas pela catástrofe. O ritmo do trabalho é frenético. Todos parecem extremamente concentrados e absorvidos, como se fizessem parte de um corpo treinado e acostumado a trabalhar em equipe.
Como se organizam? "Temos um grupo no WhatsApp", diz Rita, enquanto degusta o almoço acondicionado em uma marmita de isopor fornecida por doadores. Com mais de 500 participantes no dia 12, o grupo Voluntários Torres SOS recebia novas adesões a cada minuto.
À BBC News Brasil, Tatiana Schuck, 37 anos, garante que a maioria não se conhecia há uma semana. "Adicionei a Bruna no Instagram ontem", diz a autônoma, que designa voluntários para cada equipe.
A Bruna mencionada por Tatiana é a empresária Bruna Woiciechoski, 27 anos, responsável pelo cadastramento de voluntários. Ela participa do esforço desde o primeiro dia, sempre em tarefas de organização.
"Aqui faço meu máximo porque não tenho psicológico para ver essas coisas (perdas humanas e materiais decorrentes da enchente)", afirma.
A entrevista é interrompida para que Bruna comande o carregamento de uma remessa. Em segundos, forma-se uma linha de montagem na qual sacos de mantimentos são passados de mão em mão.
São homens e mulheres de todas as idades. "Quando as cargas são maiores, usamos caminhões. Para quantidades pequenas, servem carros e caminhonetes", explica Bruna.
Os estudantes de Fisioterapia Vitor Delavald, 26 anos, e Matheus Seidel, 23 anos, têm uma T-Cross, uma caminhonete do tipo SUV, e voluntariam-se para levar uma segunda carga a Porto Alegre. A primeira foi repartida no dia 9 entre a Casa da Criança e a Igreja Auxiliadora, ambas na capital.
Com as aulas na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) suspensas até o dia 17, os dois alunos transferiram-se para Torres, onde vivem os pais de Vitor. O mato-grossense Matheus, do município de Sorriso, diz que em sua terra natal há comoção com a situação dos gaúchos.
'Tu sabe dobrar roupa?'
No dia 11, o nível do Taquari voltou a subir perigosamente, levando as autoridades a emitir ordens de evacuação no município.
A influenciadora Nina Schneider, com 43 mil seguidores no Instagram, faz parte do grupo que esteve em Muçum.
"É muito triste a gente saber que o rio novamente está subindo. A população de lá tem um pouco mais de idade, são mais debilitados também. É muito triste passar por tudo isso outra vez", afirma.
O que é preciso para colocar em marcha um trabalho eficaz de solidariedade em momentos como o atual?
"Paciência, força de vontade e organização", Bruna enumera. "Empatia", acrescenta ela, depois de uma pausa. Esse último ingrediente é essencial quando se lida diretamente com as vítimas.
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No depósito, não há espaço para acomodar grupos provenientes de áreas alagadas, mas muitos dos que chegam estão em abrigos ou em casas de parentes e amigos.
"As histórias são todas muito parecidas", diz Rita. "São pessoas que perderam tudo." No dia 11, chegaram três famílias com bebês: um de sete dias, outro, de 11 e outro, de 18. Buscavam fraldas e roupas de criança e não ficaram muito tempo.
"Quando as pessoas chegam com criança, a gente dá prioridade para atender às necessidades da criança" explica Rita.
A entrevista é novamente interrompida, desta vez pela chegada de uma mãe e uma filha de quatro anos. Querem ajudar no trabalho.
"Duas voluntárias?", pergunta Tatiana, sorrindo. E, dirigindo-se à criança: "Tu sabe dobrar roupa?"