Sala de emergência de hospital em Canoas repleta de lama; desastre como esse envolve uma série de fatores que aumentam as chances de se cometer erros, como a urgência de todas as demandas -  (crédito: REUTERS/Diego Vara)

Sala de emergência de hospital em Canoas repleta de lama; desastre como esse envolve uma série de fatores que aumentam as chances de se cometer erros, como a urgência de todas as demandas

crédito: REUTERS/Diego Vara

Com o nível das águas baixando em Porto Alegre e em outras cidades atingidas pelas inundações recentes, vai ficando cada vez mais evidente a extensão da destruição causada pelas chuvas em todo o Rio Grande do Sul. Agora, o grande desafio das autoridades é dar início às obras de reconstrução.

Priorizar as múltiplas demandas urgentes, quantificar a enorme necessidade de dinheiro e utilizar os recursos que chegam de diferentes fontes em prazos distintos aumentam a probabilidade de se cometer erros.

Um mês após o início das inundações, os planos para recuperar o Estado prometem a maior operação do tipo na história brasileira: estimativa da Confederação Nacional de Municípios (CNM) contabiliza mais de 581 mil desabrigados ou desalojados e prejuízos que já superam R$10,4 bilhões.

 

 

A BBC News Brasil consultou vários especialistas em reconstrução de diferentes perfis incluindo ecólogos, geógrafos, planejadores urbanos e até cartilhas da Organização das Nações Unidas (ONU) para descobrir que tipos de erros devem ser evitados na reconstrução do Rio Grande do Sul.

Conheça 7 equívocos comuns que podem colocar em xeque os esforços para reconstruir as cidades destruídas pelas inundações.

1. Demorar para resolver o que é urgente

 

 

Em uma situação de calamidade, um dos grandes desafios é equilibrar a tensão entre a necessidade de tomar decisões rapidamente e, ao mesmo tempo, evitar erros. É o que explica professor da Universidade de Illinois, Robert Olshansky, que pesquisa o processo de recuperação de cidades após desastres naturais.

"A velocidade de recuperação é importante para manter as empresas vivas, reconstruir a infraestrutura e fornecer alojamento temporário e permanente às vítimas de desastres. Se o poder público não agir rapidamente, muitas vítimas começarão a reconstruir por conta própria de maneiras e em locais que eles determinam", alerta Olshansky, que ajudou a planejar a reconstrução de Nova Orleans após a devastação da passagem do Katrina, em 2005.

Ele acrescenta que apesar da urgência é fundamental que o uso dos recursos e as decisões sobre como se dará cada obra e investimento sejam planejados, para que a versão reconstruída seja o mais permanente possível.

"O planejamento pode maximizar as oportunidades de se coordenar o uso da terra e a infraestrutura, garantir segurança, usar design para melhorar a qualidade de vida dos moradores e reconstruir de maneira que atenda as preocupações de todos os cidadãos", afirma o professor e urbanista.

"Mas se o planejamento demorar muito, será ineficaz", alerta ele.

Macas de hospital repletas de lama
REUTERS/Diego Vara
Sala de emergência de hospital em Canoas repleta de lama; desastre como esse envolve uma série de fatores que aumentam as chances de se cometer erros, como a urgência de todas as demandas

2. Ser pouco transparente sobre o uso do dinheiro

 

 

Henrique Evers, gerente de desenvolvimento urbano do World Resources Institute Brasil (WRI Brasil), organização que pesquisa soluções sustentáveis para cidades e clima, diz que é fundamental que o poder público aja com bastante transparência a respeito das decisões sobre o uso e distribuição do dinheiro, com regras claras para acesso ao financiamento e comunicação eficiente.

"Estabelecer uma governança clara para as decisões sobre esses recursos é fundamental, porque existe um grande risco de mau uso, seja técnico ou ético", diz Evers.

O sociólogo Victor Marchezini, coordenador do Projeto Capacidades Organizacionais de Preparação para Eventos Extremos (COPE) no Cemaden, diz que é essencial que os governos federal, estadual e municipais mantenham um portal da transparência atualizado para que a sociedade saiba o que está sendo feito com o dinheiro destinado à reconstrução, inclusive os valores vindos de doações.

Segundo os especialistas, é importante garantir a credibilidade geral sobre o uso adequado de verbas para não prejudicar os fluxos de aportes. O desafio é também não engessar o sistema de aplicação de recursos a ponto de dificultar e retardar sua utilização.

Olshansky, do pós-Katrina, diz que garantir o bom uso do dinheiro é requisito para conseguir mais fundos de doadores internacionais que possam colaborar com a reconstrução, por exemplo. Mas é preciso cuidado para não burocratizar demais a liberação de dinheiro.

"Colocar burocracia impede o processo de reconstrução. Uma recomendação seria a de acelerar a liberação do dinheiro para atender a população e, ao mesmo tempo, investir em uma auditoria boa e sistema de contabilização, para investigar e corrigir eventuais erros durante o processo. Liberar primeiro e investigar depois", diz.

3. Reconstruir exatamente como era antes

 

 

Avião em área inundada
REUTERS/Adriano Machado
Aeroporto em Porto Alegre repleto de água; na hora planejar as obras e construções, é preciso considerar vários tipos de eventos climáticos

É consenso entre especialistas que não é possível reconstruir ou projetar infraestruturas no Rio Grande do Sul da mesma maneira que se fazia antes.

O Estado, que nos últimos anos sofreu uma sequência de eventos climáticos extremos, entre estiagens e inundações, precisa ser reconstruído para ser mais resistente ao clima do que antes.

Os especialistas apontam que as novas construções têm necessariamente que levar em consideração a realidade climática mais instável atual para terem capacidade de prevenir destruição.

Obras de contenção serão necessárias para proteger a população e a infraestrutura contra ameaças de estragos potenciais em maior dimensão.

"O clima continuará mudando nos próximos anos, mesmo se pararmos hoje de emitir gases causadores do efeito estufa. É preciso planejar estruturas adequadas a esse novo cenário, o que vale para casas, edifícios, espaços comunitários, estradas, infraestruturas urbanas e rurais, sistemas de transporte, equipamentos de saúde e outros, que precisam ser preparadas para choques e efeitos de longo prazo do "novo normal", além de ter capacidade de rápida reconstrução em caso de desastres", recomenda o Observatório do Clima.

4. Não ouvir a ciência

 

 

O Rio Grande do Sul tem uma vasta e qualificada comunidade acadêmica dedicada a pesquisar e sugerir caminhos para tornar o Estado mais preparado para enfrentar eventos climáticos extremos.

Walter Collischonn, hidrólogo e professor do Instituto de Pesquisas Hidráulicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), destaca que a reconstrução do Estado exigirá a mobilização de cientistas, com dados e estudos aprofundados.

Ele cita o exemplo dos dados obtidos a partir da análise topográfica de Porto Alegre, que permitiram projetar quais as áreas seriam afetadas em caso de falha do sistema de proteção hidráulica.

"Fizemos mapas rapidamente indicando quais seriam as profundidades da água e decisões foram tomadas. Mas, para Canoas, a gente não tinha essa informação de topografia de alta resolução disponível. A reconstrução vai exigir essa informação bem detalhada", diz ele, em nota do Observatório do Clima.

No dia 17 de maio, a Rede Sul de Restauração Ecológica, formada por integrantes da Secretaria do Meio Ambiente e Infraestrutura (Sema), universidades, ONGs, entidades ambientais e setor empresarial, enviou ofício à Secretaria do Meio Ambiente do Rio Grande do Sul e ao Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima propondo articular a criação de um grupo multi-institucional de especialistas, composto por pesquisadores de Universidades, instituições de pesquisa, secretaria e Fundação Estadual de Proteção Ambiental para construir um plano estratégico para o enfrentamento das emergências climáticas.

"Entendemos que o enfrentamento das emergências climáticas deve se dar em uma perspectiva temporal de curto, médio e longo prazo", afirma o grupo.

5. Não ouvir os moradores atingidos

 

 

O fortíssimo terremoto que atingiu a China e destruiu diversas cidades em 2008 é apontado por Olshansky como um exemplo dos riscos de não envolver os moradores atingidos nas decisões de reconstrução das casas e da infraestrutura planejada.

O governo chinês reconstruiu tudo em tempo recorde, em uma operação bem-sucedida e impressionante, mas o projeto foi criticado pelo distanciamento da população e falta de atendimento às reais necessidades.

"A reconstrução da China após o terremoto de 2008 enfatizou excessivamente a necessidade de uma reconstrução rápida, ignorando muitos problemas sociais e econômicos", diz o urbanista.

"A rápida reconstrução de novas unidades habitacionais em terrenos prontamente disponíveis, como em uma antiga usina siderúrgica, em vez de construir em lugares com acesso às redes da população e a serviços de transporte, inviabilizaram o projeto", acrescenta ele.

No condado de Beichuan, onde 80% dos edifícios desabaram, 6 mil pessoas morreram e deslizamentos de terra e inundações causaram grande devastação - o governo decidiu transferir os moradores para uma nova cidade: uma nova Beichuan, construída a 23 km da original. A cidade foi construída para receber 35 mil habitantes e, no futuro, chegar a 70 mil, mas, até 2015, permanecia desocupada.

Para o Observatório do Clima, é essencial que a reconstrução do Rio Grande do Sul não reproduza as vulnerabilidades dos terrenos e não mantenha a degradação ambiental existente antes do evento extremo, e para isso é fundamental escutar as demandas de diferentes grupos sociais atingidos pelas chuvas.

Os esforços de reconstrução podem ser desperdiçados caso não atendam as necessidades da população atingida.

De acordo com o sociólogo Victor Marchezini, é importante incluir audiências públicas, bem como formar associações de afetados para que se possa garantir um "peso político maior nas rodadas de discussão pública sobre os rumos do processo de reconstrução e recuperação do desastre".

6. Construir apenas infraestrutura 'cinza' e não 'verde'

 

 

Soldados observam ponte caída em rio
REUTERS/Amanda Perobelli
Militares observam ponte que desabou com a cheia do rio Taquari, em Arroio do Meio

A degradação ambiental do Rio Grande do Sul, com muitas margens de rios desprotegidas sem vegetação nativa, e pouca capacidade de escoar e absorver a água das chuvas, teve papel relevante no desastre ambiental que vive o Estado, segundo ambientalistas ouvidos pela reportagem.

Para criar resiliência a ondas de calor, tempestades, enchentes, secas, frio intenso, aumento do nível do mar, ventos fortes e outros extremos, as chamadas soluções baseadas na natureza são indispensáveis, como aponta o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma).

"É urgente iniciarmos ações de restauração ecológica em áreas de risco e nas bacias hidrográficas afetadas. A reconstrução não pode se dar nos moldes do passado, acreditando que os eventos climáticos extremos serão raridade e controláveis por obras de engenharia", diz o grupo Rede Sul de Restauração Ecológica.

"Os eventos são mais frequentes e a transformação de áreas de risco em áreas de restauração ecológica auxiliará para que as populações humanas sejam menos afetadas no futuro".

"Se nós tivéssemos mais banhados nesse momento, para absorver e para estacionar a água das chuvas, o impacto [das chuvas e inundações] teria sido menor", diz o pesquisador Rualdo Menegat, doutor em ciências na área de ecologia de paisagem e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

"Como os banhados foram drenados e estão todos ocupados por plantações, ou por cidades, foi bem pior. Precisamos recuperá-los quando possível, plantar muito mato, muita mata nativa, e limitar a devastação."

7. Não repensar estratégias e decisões

 

 

Na nova realidade climática, decisões que não previam eventos extremos devem ser reavaliadas pela sociedade.

Leis ambientais existentes, assim como as regras para ocupação da terra e estratégias de crescimento urbano, por exemplo, podem não funcionar para o cenário atual, na opinião da engenheira florestal Ana Rovedder, coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Recuperação de Áreas Degradadas (Neprade/UFSM), e uma das fundadoras da Rede Sul de Restauração Ecológica.

"É um dever do governo do Estado retomar o debate de uma série de medidas e possibilidades que foram aprovadas antes de toda essa catástrofe, e que já se mostraram ineficientes para a realidade atual de necessidade de conviver com os eventos climáticos", diz.

"Se nós formos ser realmente responsáveis com o futuro do Estado, com o futuro das novas gerações de gaúchos e gaúchas, nós precisamos parar e rever tudo que sabíamos", acrescenta ela.

Nesse contexto, os municípios precisarão rever seus planejamentos regionais e planos diretores alerta o Instituto de Arquitetos do Brasil, escritório do Rio Grande do Sul.

Além disso, o órgão defende que é necessária a elaboração de planos setoriais, como de drenagem urbana e de ação climática, e que esses dialoguem com os novos planos diretores.

"Entender a realidade urbana sob os efeitos da crise climática é imperativo. O planejamento e a legislação devem acompanhar a realidade que se apresenta, de modo a mitigá-la e transformá-la."