Johann Dantas, diretor-presidente da Anciti, durante evento em São Paulo sobre cidades inteligentes -  (crédito: Marcello Zambrana/Anciti)

Johann Dantas, diretor-presidente da Anciti, durante evento em São Paulo sobre cidades inteligentes

crédito: Marcello Zambrana/Anciti

Neste ano de eleições municipais, a agenda da emergência climática entrou definitivamente no rol de interesse do cidadão, que vê sua cidade despreparada para enfrentar os desafios impostos pelo aquecimento global, após a catástrofe que abalou o Rio Grande do Sul. Para a Associação Nacional de Cidades Inteligentes (Anciti), esse é mais um tema que passa, obrigatoriamente, pela tecnologia. Mas não como fim em si. Para a entidade, cidade inteligente não é sinônimo de cidade tecnológica, é aquela “boa para se viver”, segundo o diretor-presidente Johann Dantas e o diretor do conselho fiscal Walter Júnior, que concederam entrevista exclusiva à reportagem do EM e do Correio. Para eles, a tecnologia entra como vetor de desenvolvimento econômico e social.

 

É para disseminar ideias inovadoras como essas que a Anciti trabalha. A organização não governamental reuniu, em São Paulo, representantes de mais de 40 cidades grandes e médias e empresas do setor da tecnologia para trocar experiências e estimular o intercâmbio de informações e projetos.


A capital paulista, por exemplo, apresentou um sistema inovador de monitoramento dos buracos nas ruas da maior metrópole da América do Sul. Lá, a prefeitura instalou sensores e câmeras na parte de baixo de carros de aplicativo que monitoram, em tempo real, o estado do pavimento e gravam imagens de cada trajeto. Os dados vão para uma central que identifica as ruas, os buracos, as consequências em relação à redução de velocidade e os riscos de acidentes. A partir desses dados, a prefeitura monta a estratégia dos programas de recuperação e pavimentação de ruas e avenidas.


Para enfrentar a emergência climática, muitas cidades já adotam sistemas digitais, de monitoramento de áreas de risco de deslizamento de encostas, de alagamentos ou de desmoronamentos, que são compartilhados entre outros prefeitos para orientar melhor o destino dos recursos públicos e facilitar o acompanhamento das políticas de prevenção.


Nada disso, porém, dará certo se os prefeitos não souberem como usar as ferramentas digitais de forma eficiente ou se os servidores não se qualificarem para usar as novas tecnologias. “Há muitos prefeitos que têm o fetiche tecnológico, que alardeiam suas cidades como ‘conectadas’, mas não têm organização de dados, não usam os dados para sua missão. Dizem que têm drones, mas nem sabem o que é possível fazer com eles”, provoca Johann Dantas, em entrevista que você confere a seguir:


O conceito de cidade inteligente faz parte de um debate global, de adaptação das estruturas urbanas aos novos tempos de emergência climática, à revolução tecnológica e à inteligência artificial. No Brasil, a tragédia do Rio Grande do Sul expôs de forma dramática as fragilidades das cidades brasileiras para enfrentar eventos naturais potencialmente devastadores. Em que ponto está esse debate no Brasil?


Mais do que repensar, torna-se urgente enfrentar esses temas. Não estamos falando só da tragédia no Rio Grande do Sul, estamos falando do Rio de Janeiro, que também teve deslizamentos (recentes). São Paulo também é atingida por chuvas excepcionais. O próprio conceito de cidades inteligentes varia. Para mim é uma coisa, mas no Piauí pode ser diferente. Cidade inteligente é uma cidade conectada com uma série de serviços públicos disponíveis? Pode ser um modelo. Ou é uma cidade que pensa à frente, no futuro? Como escutar os cenários da ciência, que há muito tempo vem falando que isso iria acontecer e nenhuma providência foi tomada? O que aconteceu no Sul foi um chacoalhar. Não basta ficar só falando, é preciso agir, botar ideias em prática.


Como a Anciti analisa, quase dois meses depois, os impactos nas cidades gaúchas? Quais lições tiramos disso?


A cidade inteligente é uma boa cidade para morar. A cidade inteligente passa por um nível de resiliência que as mudanças climáticas estão impondo para todos nós. A gente tinha um Rio Grande do Sul antigo, uma Porto Alegre antiga, que teve uma transição para o novo que impactou não só a capacidade de resiliência, mas a capacidade de antever desastres. O uso da tecnologia tem que ser muito mais voltado à segurança, afinal, os municípios vão continuar alagando. Há uma discussão no Sul se é preciso mover essas áreas, mudá-las de lugar. As cidades gaúchas não devem ser reconstruídas. Devem ser repensadas. Há prefeituras que, provavelmente, vão sumir. O nível de inteligência não se mede por dispositivos eletrônicos, digitais. É pela capacidade de resiliência, de sustentabilidade, de pronta resposta. Vamos passar por uma ressignificação de “inteligente”. Inteligente não significa só a aplicação da tecnologia. Ela por si só é fetiche.


O Brasil tem mais de 5 mil municípios, cada um com sua realidade específica. Como trazer esse debate das cidades inteligentes para lugares e populações tão diferentes?


A Anciti tem três anos, com um propósito muito específico de compartilhar informações, experiências e soluções. A gente tinha acabado de passar pela crise da pandemia de Covid-19. Sistemas desenvolvidos no Recife foram utilizados em Belo Horizonte e em outras capitais. Ali nasceu a primeira forma de compartilhamento entre as cidades. Também criamos uma rede de relacionamento entre nossos associados, que se colocam à disposição uns dos outros. Tem muita coisa acontecendo aqui. Compartilhamos até atas de registros de preços, termos de cooperação. Agora vem a inteligência artificial. Finalmente, iniciamos neste ano a capacitação de pessoas. Estamos fechando parcerias no setor de educação para não só qualificar, como também estabelecer um processo de comunicação mais disseminado. O trabalho de comunicação é o que permite chegar na ponta.


Quais exemplos podem ser dados?


Temos prefeitos que fazem compras públicas compartilhadas com outros entes. Isso nos interessa. A gente não sabia que São Paulo tinha um sistema de zeladoria que funciona. É preciso fazer as pontes para que essas experiências cheguem a outros lugares. Nós estamos falando de compartilhamento.

 

Como a questão das mudanças climáticas entra nesse debate?

 

A cidade inteligente está preocupada com as mudanças climáticas que acontecem do norte ao sul e que impactam aqui, no Brasil. É a cidade que se vale da tecnologia para fazer predição climática, acompanhamento, previsão de resgates de vítimas das catástrofes. Que se vale da qualificação dos seus gestores. Não basta ter uma cidade inteligente, é preciso ter um corpo para gerir. Isso é novo no mundo todo. Não é mais um mote, é uma realidade. Mudanças climáticas impactam a saúde, a educação, tudo. Tem que ser levada muito a sério, assim como levamos a educação e a saúde.

 

No Brasil, como está a caminhada das cidades na direção desse futuro mais sustentável, mais inteligente? Ainda estamos muito analógicos, burocráticos?

 

A gente tem um movimento importante, que independe de governos, que é o tecnológico. Todos nós consumimos tecnologia ‘na veia’. Se cair a internet aqui (no encontro regional da Anciti), vamos ter um caos! Independentemente da nossa vontade, estamos sendo inundados pelas novas tecnologias. A inteligência artificial já chegou, o que traz a exponencialidade. Isso não vale só para o mercado, é para todos nós. Meu filho de 12 anos já começou a usar IA.

 

Os gestores municipais têm essa consciência da magnitude da revolução tecnológica?

 

Muitas cidades não tratam ainda a tecnologia como vetor de desenvolvimento, como tratam a saúde, a educação e a segurança. A tecnologia precisa ser incluída nessa operação. Ela vai ajudar em tudo: no planejamento e na execução. Um hospital público, hoje, tem uso de tecnologia maciça lá dentro, na marcação de consultas, nos prontuários. Na pandemia, o primeiro aplicativo que a Anciti compartilhou foi o de gestão das filas. Cada cidade queria fazer sua própria marcação para aplicar vacina, cada cidade criou a sua estrutura própria. Recife criou um aplicativo, o Conecta Recife, e disponibilizou o código. Todo mundo adorou e chegou ao Conecta SUS. Isso é show! Isso é ser inteligente.

 

Qual a avaliação que a Anciti faz do governo, do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação?

 

A ministra Luciana Santos tem feito um trabalho bom, ela tem uma missão e tem se aproximado bastante de alguns municípios. Está aberta para apoiar e nós estamos elaborando uma proposta com sugestões nossas, das cidades inteligentes. Não estamos falando em mudar o mundo, mas só de questões práticas. Não basta querer ser uma cidade inteligente, é preciso ter ferramentas, financiamento. Mas o momento atual não é dos melhores, discute-se limitações de orçamento e dificuldade de investir. Se o MCTI conseguir emplacar uma política de apoio às pequenas cidades – as médias e grandes têm capacidade de fazer isso pelas suas próprias forças – vai ser um grande salto de transformação. Temos municípios que carecem de tudo, se não recebem o FPM (Fundo de Participação dos Municípios) não conseguem pagar sequer os salários. Se faltar o Bolsa família, a economia não gira. São os que mais precisam de apoio do governo federal.

 

O que a Anciti pode fazer para ajudar os municípios nesse processo?

 

Aracaju tem uma plataforma de compras públicas que encantou o Rio de Janeiro, que quer levar a solução para lá, adaptada às suas próprias especificidades. Aracaju não se preocupa com geadas, mas São Joaquim (SC), sim. A Anciti tem o papel de explorar o que municípios e empresas públicas têm para compartilhar e adequar às realidades das outras cidades. As diferenças existem, mas os problemas são basilares na educação, na saúde, buracos nas ruas, poda de árvores etc.. Aracaju tem um arcabouço de monitoramento climático e territorial muito bom, que Teresópolis (RJ) está levando para monitorar suas encostas. E Aracajú só tem uma encosta, o problema maior lá é alagamento.