LUTA SEM FRONTEIRAS

Mães brasileiras fogem da violência, mas perdem tutela dos filhos

Agredidas pelos cônjuges no exterior, elas foram punidas com base no Tratado Internacional de Haia após tentar proteger os próprios filhos contra os agressores

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"Eu voltei ao Canadá e encontrei meu filho emocionalmente destruído, sem contato com sua língua, sua cultura, e, principalmente, sem vínculo comigo”. Essa é a realidade da paulista Carolina Gouveia, que enfrenta cortes internacionais para reaver a guarda do filho, Christopher, de 8 anos. Ela faz parte das 96,1% mulheres imigrantes que sofreram violência doméstica nos países onde vivem. Nesses casos, 84,6% das agressões são cometidas por cônjuges nativos e 15,4% por brasileiros que também vivem no exterior. Os dados são do Grupo de Apoio a Mulheres no Exterior (Gambe).

Segundo o Tratado Internacional de Haia, a Justiça deve repatriar crianças levadas internacionalmente sem a autorização de um dos genitores imediatamente para os países de residência habitual. Mas a convenção não prevê casos de evasão do país por violência doméstica e risco à vida da mãe ou da criança. Carolina se relacionou com um libanês quando se mudou para o Canadá, em 2017, e as primeiras agressões foram quando ela estava grávida.

“O relacionamento foi rápido e, com o tempo, se transformou em algo que jamais imaginei que viveria. Ele começou a se tornar cada vez mais controlador, até que, com 20 semanas de gestação, comecei a sofrer agressões físicas. Mesmo depois de se declarar culpado pelas agressões, ele continuou na minha vida, se tornando uma figura constante no sofrimento que viria”, contou Carolina à reportagem do Estado de Minas.

Para dar fim ao sofrimento, ela decidiu voltar para o Brasil com o filho e pediu autorização ao pai da criança. “Depois de um período de muita dor e separações, decidi mudar para o Brasil com a permissão dele. Assumi a custódia legal de nosso filho e procurei dar a ele uma vida mais segura e estável. Porém, em junho daquele mesmo ano, o pai entrou com um pedido baseado no tratado de Haia, exigindo o retorno de Christopher ao Canadá. Essa foi a primeira vez que ele mudaria de postura, invertendo completamente sua posição anterior, quando havia me dado permissão para ir embora”, conta.

“Em fevereiro de 2023, uma decisão judicial me tirou a custódia de Christopher e deu-a ao pai, ignorando evidências claras de alienação parental e manipulação. Eu me mudei para Kimberley, na Colúmbia Britânica, em maio de 2023, para tentar estar mais perto do meu filho, mas as batalhas continuaram. Em agosto de 2023, George levou Christopher para o Líbano sem minha autorização ou ordem judicial”, relatou.

A dor de Carolina se intensificou. O filho já não a chamava mais de mãe e apresentava sinais de violência física e psicológica. “Durante as visitas em Ottawa, em outubro de 2024 e janeiro de 2025, percebi sinais de que ele estava emocionalmente abalado e até exposto a possíveis abusos. Ele me chamava de ‘Carol’ e fazia declarações muito perturbadoras sobre as punições que estava sofrendo. Quando eu estava em Ottawa, em janeiro de 2025, o pai dele ainda consumiu álcool em excesso, pressionou-me a fazer o mesmo e tentou me forçar a ter contato físico contra a minha vontade”, afirmou.

A brasileira relatou que a Justiça canadense ignorou os indícios de violência do pai de Christopher. Incluindo os relatos da madrasta da criança que confirmou os abusos do ex-companheiro de Carolina contra o filho. Ela relata que pediu audiência e aguarda um posicionamento da Corte canadense. “A Justiça falhou comigo, o sistema falhou. A convenção de Haia, que deveria proteger as crianças, está sendo usada por homens como arma contra nós, permitindo que continuem a nos prejudicar”, disse.

Condenada a 34 meses de prisão


A brasileira Neide da Silva desafia a convenção de Haia para retomar a convivência com a filha Moara, de 15 anos, que vive na Suíça com o pai e a madrasta. Assim como Carolina, Neide disse que era agredida pelo ex-companheiro e decidiu deixar o país com a filha e retornar ao Brasil. Dos 8 aos 12 anos, a menina viveu com a mãe no Maranhão, até que a Justiça suíça, a pedido do pai, solicitou a guarda da menina com base no tratado.

“Ela nunca conseguiu apresentar denúncia. O pai fez tudo sem o conhecimento dela, fez denúncias invertendo a situação, tentou prender ou internar a Neide numa clínica psiquiátrica. O genitor e agressor nunca sofreu punição, pelo contrário, é protegido pelas autoridades. Agressor não só da Neide mas também da Moara”, contou o atual companheiro de Neide, Mario Valentino, que está tentando se mudar para a Suíça para apoiá-la.

 

Neide foi condenada a 34 meses de prisão na Suíça sob a acusação de sequestrar Moara. Durante o primeiro ano, ela conseguiu visitas supervisionadas à filha a cada 15 dias, mas há 11 meses, após decisão judicial favorável ao pai, as visitas foram suspensas. No mês passado, Neide voltou a fazer visitas supervisionadas.

“Moara foi repatriada por uma decisão de primeira instância, onde um auxílio psicológico robusto e o Ministério Público Federal enquadraram o caso nas exceções da convenção de Haia. O juiz ignorou os fatos e não quis ouvir Moara, já com 12 anos na época. Os direitos da Moara estão sendo ignorados na Suíça, mesmo perante vários pedidos de ajuda dela mesma para instituições de proteção e inclusive para a própria juíza são ignorados”, relatou o padrasto da adolescente.

Valentino informou ao Estado de Minas que Neide vive em um estúdio sem aquecimento em Interlaken, com apoio limitado do governo suíço, enquanto trabalha para custear sua defesa jurídica. Moara vive em condições precárias, sob severas restrições impostas pelo pai, em uma vila isolada, sem acesso às redes sociais. Neide recorreu à condenação e aguarda o resultado judicial.

Legislação falha

A professora de relações internacionais da Escola Superior de Propaganda e Marketing (SPM), Eveline Brigido, comentou o caso. “Moara chegou a ficar mais de um ano aqui no Brasil, então não foi respeitada a previsão que está na própria convenção, de que quando se passa mais de um ano que a criança já está estabelecida no novo ambiente, ela não precisaria ser devolvida”, explicou.

Eveline ainda detalhou que o tratado internacional, com 103 países signatários, incluindo o Brasil, foi elaborado em outro contexto. “Quando a maioria dos casos de sequestro internacional de crianças acontecia por parte do pai, era muito difícil reaver a guarda dessas crianças. Hoje, a maioria dos casos acontece por mães que fogem da violência doméstica com seus filhos”, informou a professora.

Tratado Internacional de Haia, com sede na Holanda, manda repatriar crianças levadas sem autorização do pai ou da mãe para os países de residência habitual
Tratado Internacional de Haia, com sede na Holanda, manda repatriar crianças levadas sem autorização do pai ou da mãe para os países de residência habitual Robin Utrecht/ANP/AFP

“O que pode ser feito para proteger brasileiras é lutar no Judiciário para que não devolvam essas crianças. Porque senão a gente vai estar incorrendo em um ato criminoso, por enquanto a lei não está favorável, mas precisamos trabalhar nas exceções que estão previstas na própria convenção”, afirmou a internacionalista.

Tramita no Supremo Tribunal Federal (STF) a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4245, que questiona regras da Convenção de Haia sobre o sequestro internacional de crianças.

O texto foi protocolado em 2009 e, de acordo com a última movimentação que consta nos dados abertos da corte brasileira, foi excluído do calendário de julgamento em maio de 2024. Em fevereiro deste ano, no entanto, a ADI foi a julgamento no Supremo Tribunal Federal. Segundo presentes, a sessão suspensa para avaliação das sustentações orais e será retomada em data ainda a ser definida.

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