Rosane Chene
Empreendedora social, cofundadora e CEO da ONG Projeto Amigos da Comunidade (PAC)
Acordar, preparar o café da manhã, trocar a criança pequena, se arrumar para o trabalho, deixar a criança na creche ou até mesmo na avó, babá ou cuidadora, e seguir para mais um dia de trabalho. Sem dúvidas, essa é a rotina de mais de 11 milhões de brasileiras, que criam seus filhos sem a ajuda do pai, segundo dados da FGV. Para muitas mulheres essa dinâmica é cronometrada, qualquer chuva, trânsito ou intercorrência maior pode resumir o dia em um verdadeiro caos. Essa realidade dura e compartilhada entre mães, infelizmente, é ainda mais complexa para algumas delas, especialmente as mulheres da periferia.
Organizar uma rotina para ir ao trabalho sendo mãe solo deveria ser, teoricamente, no mínimo desgastante, entretanto para muitas mães periféricas nem a possibilidade de trabalhar é uma realidade. Cerca de 63% dos lares nas periferias do país são chefiados por mulheres pretas e pardas, segundo dados do IBGE. Além de serem a maioria nesses territórios, são elas que enfrentam maior desvantagem no mercado de trabalho, com uma taxa de desemprego de mais de 13%.
Mesmo com os entraves, as mães solo periféricas que conseguem subverter a estatística e alcançar uma oportunidade no mercado de trabalho se deparam com um mesmo questionamento: “Quem vai ficar com meu filho?”.
No topo da lista de possíveis soluções, certamente estão as creches e pré-escolas da rede pública, que recebem crianças de 4 meses até 3 anos e 11 meses e crianças de 4 a 5 anos e 11 meses, respectivamente. Ambas são reconhecidas como responsáveis pela primeira etapa da educação básica nacional, a partir do Plano Nacional de Educação (PNE) e ampliada com lei 13.257/2016 do Marco Legal da Primeira Infância. Mas nem sempre as mães periféricas com seus filhos totalmente aptos a ingressarem no ensino conseguem e podem contar com esse apoio.
A falta de vagas nas creches é um dos problemas, porém não é o único. Em muitos municípios a vaga existe, entretanto, a unidade de educação infantil não é próxima à casa da família, podendo ser até mais de 2 quilômetros de distância. Nesse contexto, é preciso considerar que muitas periferias possuem territórios facilmente equiparáveis a cidades inteiras. Em alguns casos os municípios até disponibilizam transporte gratuito para a criança, mas não é difícil encontrar relatos sobre atrasos e até mesmo a não disponibilidade do serviço. (...)
Por ser distante de sua casa, ela não conhece a creche. Assim como em outras realidades mais favorecidas, essas mulheres também querem referências do local onde seu filho passará uma parte fundamental do seu desenvolvimento. Poder ter familiaridade com o bairro, conhecer os profissionais que atuarão com a criança – que certamente ela já teria contato se a unidade de educação básica fosse próxima a sua casa – e diante de qualquer eventual emergência com seu filho, poder acolhê-lo mais rápido. Entretanto, para as mães periféricas as opções são poucas. (...)
As creches da rede pública de ensino, em geral, iniciam suas atividades às 7h da manhã e encerram entre 16h e 17h, variando de município para município. Apesar de o horário contemplar algumas famílias, o período está muito longe da realidade das mães periféricas, principalmente as mães solos. Explico o motivo.
Ao conseguirem oportunidades no mercado de trabalho, muitas delas assumem cargos operacionais, o que por vezes exige sua presença quase na madrugada. São postos de atuação em que essas mães precisam estar 7h ou até mesmo 6h da manhã “passando o cartão de ponto” no trabalho. Já as que não conseguem trabalhos em empresas, geralmente, atuam como diaristas ou empregadas domésticas, o que também exige a presença praticamente no alvorecer para garantir tempo hábil na execução do trabalho. (...)
É nesse contexto que muitas mães recorrem a redes de apoio. Podem ser babás, avós, tias, primas que consigam levar ou buscar a criança na escola, alimentá-la e dar a devida atenção, enquanto a mãe está no trabalho. Porém, essa realidade dificilmente se reflete para as mães solo, em que 72,4% sequer possuem rede de apoio, quem dirá na realidade das mães periféricas.
Sem mencionar a escassez financeira que coloca a mãe solo em desvantagem. Segundo pesquisa da FGV, mães solo têm a renda 20% menor que mulheres casadas com filhos, o que colabora para que ela não consiga, por exemplo, pagar – seja uma creche particular ou uma pessoa – pelos cuidados do filho nesse intervalo em que ela está a caminho, retornando ou no trabalho.
Sem trabalho e sem escolha, esses fatores condicionam a mãe periférica a vulnerabilidade, e infelizmente a uma mesma pergunta: “Quem vai ficar com meu filho?” ou melhor “Como trabalhar se preciso cuidar dos meus filhos?”.
As creches e pré-escolas, de acordo com a Constituição Federal, exercem esse papel, principalmente pensando na formação e proteção da criança, mas esse modelo atual, na prática, não é possível para todos, especialmente para as mulheres mais pobres.
Para de fato torná-las visíveis, é imprescindível que na construção de políticas públicas, as creches públicas ampliem seu horário de funcionamento. Algumas redes municipais de ensino, como em São Paulo, já trabalham em um projeto piloto e a estimativa é atender 2,6 mil crianças de 13 unidades de ensino, que saem às 17h e, agora, poderão ficar na escola até as 19h. Entretanto, em geral, esses projetos ainda estão em fases embrionárias e se resumem a pouquíssimas cidades do país. (...)
Segundo dados da FGV, mais de 50% das mães solo não possuem ensino superior ou ensino médio completo, por isso, é fundamental pensar em políticas públicas que abram espaço e tornem possível para essas mulheres o retorno aos estudos e principalmente à formação profissional.
Um aliado que contribui na construção e aplicação dessas políticas são as organizações do terceiro setor. Presente nas periferias do país, as ONGs têm sido um alicerce para mulheres que, sem redes de apoio, encontram nelas o suporte e espaço seguro para sobreviver e muitas vezes subverter a dura realidade. É por meio delas que mães solo encontram oportunidades para mudar de vida.
A verdade é que é difícil falarmos sobre acesso a direitos básicos como a vida digna e educação, quando não consideramos as desigualdades e invisibilizamos a realidade de inúmeras mulheres-mães da periferia.
Por isso, mais que pensar em respostas prontas, como aumentar o número de creches em regiões periféricas ou oferecer transporte gratuito para as crianças, é preciso ir além, pensar e trabalhar políticas públicas que olhem os desafios que inúmeras mães periféricas travam diariamente. Para que um dia elas realmente possam ter escolha.