“Os Sertões”, de Euclides da Cunha (1866-1909), publicado em 1902, teve grande impacto na elite política, militar e intelectual da época, que havia apoiado com entusiasmo as expedições do Exército contra o arraial de Antônio Conselheiro em Canudos, no interior da Bahia, a pretexto de que o líder messiânico era uma ameaça monarquista à República. A visão idealista do índio herói e do negro trabalhador do romantismo fora ultrapassada pelo realismo de Euclides da Cunha.
O último capítulo do livro descreve a forma como os remanescentes do arraial foram tratados, a mesma que levou ao extermínio os últimos soldados e familiares de Solano Lopes na Guerra do Paraguai, cujos arquivos são mantidos em sigilo até hoje. No final da refrega da Guerra de Canudos (novembro de 1896 a outubro de 1897), conta o escritor, “uma dúzia de moribundos, vidas concentradas na última contração dos dedos nos gatilhos das espingardas, combatiam contra um exército.” No início, eram 20 mil seguidores.
“Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a história, resistiu até ao esgotamento completo (...) Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente 5 mil soldados”, conta Euclides. Suas 5.200 palhoças foram destroçadas.
As mesmas iniquidades sociais e a violência oficial de Canudos, ao longo desses 120 anos, migraram para as favelas e periferias das cidades brasileiras, inclusive médias. O próprio nome favela é uma herança de Canudos, pois a primeira delas, que surgiu no Morro da Providência, no Bairro da Saúde, no Rio de Janeiro, abrigava os soldados remanescentes de Canudos, que foram desmobilizados.
Um estudo do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), a partir das análises dos boletins de ocorrência de todos os estados, constatou que o Brasil tem uma média de 6,97 mil mortes violentas intencionais de crianças e adolescentes por ano. Segundo o Panorama da Violência Letal e Sexual contra Crianças e Adolescentes no Brasil, entre 2016 e 2020 foram ao menos 34,9 mil mortes violentas intencionais contra pessoas de até 19 anos.
A maior parte das mortes atingiu adolescentes entre 15 e 19 anos. Essas vítimas têm um perfil predominantemente masculino (92%) e negro (79%). A maioria dessas mortes foi causada por arma de fogo (85%) e classificada como homicídio (87%). No entanto, também aparecem como razão das mortes os feminicídios (1%) e as intervenções policiais (10%). Em 2020, o índice de mortes causadas por ação policial chegou a 15%, ficando em 44,4% no estado de São Paulo.
Na faixa entre 10 e 14 anos, o perfil ainda é parecido com o dos adolescentes mais velhos – 78% são do sexo masculino, 80% negros e 75% das mortes causadas por arma de fogo. Entre as crianças, há uma mudança do perfil, das vítimas de 5 a 9 anos, 55% são meninas, e, de até 4 anos, 35% são do sexo feminino. As armas de fogo foram usadas em 47% das mortes de 5 a 9 anos, e em 45% das crianças de até 4 anos.
Faz todo sentido a prioridade dada pelo governo federal aos jovens negros, que são uma população em risco permanente. O Plano Juventude Negra Viva, lançado pelo presidente Luiz Inácio lula da Silva na quinta-feira, no Ginásio regional de Ceilândia, a 30 quilômetros do Centro de Brasília, prevê investimento de mais de R$ 665 milhões nos próximos anos, em ações transversais de 18 ministérios, para a redução da violência letal e outras vulnerabilidades sociais que afetam essa parcela da população. Considerando políticas que englobam os jovens negros, mas não são exclusivas para este público, o montante ultrapassa R$ 1,5 bilhão.
Como disse Lula, não é possível “achar normal” o extermínio de nossa juventude negra. Articulado pelo Ministério da Igualdade Racial e pela Presidência da República, cerca de 6 mil jovens negros foram ouvidos na elaboração do plano. Representam aproximadamente 23% da população brasileira.