Bruno Freire de Jesus
Defensor público de Minas Gerais com atribuição no Direito Cível e Processo Civil.
Membro da Câmara de Estudos Cíveis, Processo Civil e de Direito Público da DPMG.
Mestre em Direito pela UFMG.
Pós-graduado pela Uerj
Em rodas de conversas informais é comum que se dispare a afirmação que, no Brasil, as únicas medidas do Poder Judiciário que são rápidas são as prisões dos devedores de alimentos e a busca e apreensão de veículo pelos bancos. De fato, essa percepção sensorial da população possui um fundo de verdade, principalmente em relação às buscas e apreensões de veículos pelas instituições financeiras.
Aqui, para melhor entendimento do assunto que será tratado, é importante esclarecer um pouco sobre os contratos de alienação de bens móveis realizados com intuições financeiras.
Para trazer o exemplo mais comum e que terá maior relevância no cotidiano das pessoas, vamos tratar de um automóvel comprado por José. José fez um financiamento bancário com garantia de alienação fiduciária. José então leva o carro para casa e utiliza normalmente, tem a posse do bem. Contudo, no documento do veículo, consta que o veículo pertence ao banco, pois a propriedade do bem é da instituição financeira, até que haja o pagamento integral do financiamento. A propriedade do banco é resolúvel, condicionada ao pagamento de todo o financiamento.
Se José se enrolou nas contas de casa e em um determinado mês atrasou uma única parcela do financiamento (e sim, basta o atraso de uma parcela apenas), o banco pode reaver a posse do carro e alienar em hasta pública.
Com esse “atraso do financiamento” o banco pode promover a ação de busca e apreensão. Haverá uma notificação informando que já que José atrasou o financiamento, perderá a posse do carro, e esse será leiloado, salvo se houver o pagamento de todo o débito em cinco dias. Veja que aqui, para impedir a perda do carro, José deverá pagar a parcela em atraso e todas as demais prestações que estavam para vencer ao logo do financiamento.
A vida cotidiana e a realidade da maioria dos brasileiros nos ensinam que, se a pessoa atrasou um mês, certamente não possuirá dinheiro para pagar todo o financiamento em apenas cinco dias. A perda do veículo é algo inevitável.
Percebe-se da dinâmica resumida acima que o banco está razoavelmente seguro nos contratos de financiamento com alienação fiduciária, pois entrará com uma ação judicial e obterá a liminar de busca e apreensão do automóvel. O empréstimo possui como garantia o próprio veículo.
Contudo, com a alteração promovida pela Lei 14.711/2023, a vida das instituições financeiras ainda estará mais segura e tranquila. Essa então é a pedra de toque dessa nossa conversa.
Até hoje, a busca e apreensão era realizada dentro de processo judicial, e justamente a dispensa do processo que foi a inovação promovida pela Lei 14.711/2023. A legislação permite, agora, que haja a busca e apreensão fora do Poder Judiciário. As modificações normativas irão promover uma maior facilidade e celeridade para as instituições financeiras “tomarem” os veículos financiados, pois afastará a reserva de jurisdição, ou seja, dispensará a necessidade de instaurar um processo judicial e a análise por um magistrado. As buscas e apreensões se darão em cartórios de títulos e notas.
Caso José venha atrasar uma única parcela, a instituição financeira irá ao cartório de título e notas, que contará com um agente designado, sem qualquer vínculo com o poder público. Esse agente privado inserirá a restrição de circulação e de transferência do bem na base de dados do Registro Nacional de Veículos Automotores (Renavam) e comunicará o fato ao Detran, para que se proceda à averbação da indisponibilidade do bem. Além disso, comunicará da realização da própria busca e apreensão extrajudicial, a ser realizada em nome do cartório de títulos e notas, e não mais pelo poder-juiz.
Dessa forma, a nova lei acaba permitindo que atos de força sejam praticados por pessoa estranhas ao poder público, pois confere aos cartórios, por meio de agentes contratados, a busca e apreensão de bens móveis. Veja que, para execução da busca e apreensão, agente privado poderá proceder com o arrombamento de uma garagem, por exemplo, violando garantias constitucionais e legais de todo cidadão. A Lei 14.711/2023 transferiu para o oficial de registro uma competência que a Constituição reservou ao Poder Judiciário.
O leitor atento pode, nesse exato momento, estar se perguntando, sobre os porquês dessa facilidade concedida às instituições financeiras.
A resposta padrão vai na linha de diminuição do congestionamento de processos no Poder Judiciário, já que os processos executivos formam um grande gargalo, que representa quase a metade dos processos pendentes na maioria dos tribunais. Além disso, afirma-se que o propósito da nova legislação é garantir uma maior segurança jurídica ao credor, o que importará na redução do risco das operações de crédito, permitindo o seu barateamento, e ainda que que se tenha um incentivo concorrencial no setor financeiro.
Por mais que os motivos acima possuam embasamento e sejam válidos sob determinada ótica, não se pode, em uma defesa desmedida do crédito, desproteger e vulnerabilizar ainda mais os consumidores frente às instituições financeiras, que já usufruem de enormes garantias do crédito comercializado, principalmente em contratos de alienação fiduciária, em que o bem já garante a dívida.
De fato, da forma com que se apresenta a nova legislação, pode se extrair que o objetivo principal não é o expresso e propalado nas palavras dos seus defensores, e sim está camuflado na defesa dos interesses exclusivos das instituições financeiras, pois acabam transferindo os riscos do crédito para a população, em especial as pessoas menos favorecidas.
A novidade legal foi inserida no ordenamento jurídico no final do ano de 2023 e merece muita atenção do Poder Judiciário, órgãos de defesa do consumidor e principalmente das Defensorias Públicas de todo o país, pois tem um grande potencial lesivo para os consumidores.
Ora, se é uma certeza que mesmo sob a batuta de regência de um Juiz, dentro de um processo em contraditório, existe uma quantidade expressiva de decisões que desrespeitam os direitos dos consumidores, essas lesões de direito serão expostas a uma acentuada elevação do risco de ocorrência, com as medidas executivas de busca e apreensão se dando extrajudicialmente, em cartórios de títulos e notas.
Fingir que a execução de atos de força, como o exemplo de um arrombamento, realizada por agentes contratados pelos cartórios de títulos e notas não traz potenciais riscos aos direitos dos consumidores, mormente os mais vulneráveis, é negar o óbvio! Os tabeliães dos cartórios e os agentes designados para execução da busca e apreensão não serão imparciais, independentes e zelosos dos direitos dos consumidores, permitindo uma infinidade de violações de direitos, sobretudo dos devedores mais carentes, haja vista que foram contratados, e bem pagos, para buscar o veículo financiado.
E agora, José? Agora é dever do Poder Público, e aqui ressalto o papel das Defensoria Públicas, verificar o potencial lesivo aos consumidores na aplicação da Lei 14.711/23. Deve ser observado os desdobramentos da lei bem de perto, com a lupa de desconfiança dos reais objetivos da facilitação a defesa do crédito das instituições financeiras, que já gozavam de enormes privilégios no contrato com alienação fiduciária, em detrimento dos consumidores.