Entra ano, sai ano, e alguns desafios da sociedade continuam a ser deixados de lado. Ou pelo menos não estão sendo tratados com a importância e a seriedade que o tema exige. O impacto dos transtornos de saúde mental no trabalho é um deles. Os números estão aí para comprovar: em 2023, o INSS registrou 288.865 afastamentos por trabalho causados por transtornos mentais, um crescimento de impressionantes 38% em relação ao ano de 2022.
Os dados do Ministério da Previdência Social trazem os motivos de afastamento mais frequentes: depressão, ansiedade, transtorno de adaptação e síndrome de Burnout. Em 2023, conduzimos na Vittude o estudo “Panorama de saúde mental nas organizações brasileiras”, que reuniu dados de mais de 24 mil pessoas da nossa base de clientes que responderam ao DASS-21, questionário que mensura os níveis de depressão, estresse e ansiedade.
Nesse levantamento, verificamos que 23% dos não líderes têm algum quadro de ansiedade, enquanto cerca de 15% dos líderes apresentam o problema. Um dado importante é que 10,12% apresentam um quadro extremamente severo de ansiedade. Outros transtornos, como a depressão e o estresse, têm incidência em 18% dos não líderes e 10% de incidência (depressão) e 12% (estresse) entre os líderes.
Ao olhar para o recorte de gênero, nos casos severos e extremamente severos de ansiedade, depressão e estresse, as mulheres são mais atingidas do que os homens: 6,6% dos homens contra 10,4% das mulheres apresentam níveis severos de estresse; 9% dos homens vs 15% das mulheres para ansiedade e 8% dos homens vs 10% das mulheres para depressão.
A forma como nossa sociedade está estruturada exige das mulheres múltiplas responsabilidades e esse é um dos principais fatores de desequilíbrio. Conciliar as necessidades da família, da casa e do trabalho pode elevar os níveis de ansiedade e estresse, contribuindo para o impacto na saúde mental. Segundo dados coletados em 64 países em 2019 pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), as mulheres dedicam, em média, 3,2 vezes mais tempo do que os homens com trabalhos não remunerados de cuidado, como planejamento e preparo da alimentação da família, cuidado de doentes, ou limpeza da casa. No Brasil, as mulheres dedicam até 25 horas por semana a afazeres domésticos e cuidados, enquanto os homens apenas 11 horas, segundo um estudo do FGV Ibre realizado em outubro de 2023.
As horas dedicadas à economia do cuidado pelas mulheres devem se intensificar nos próximos anos devido ao fenômeno conhecido como “geração sanduíche”. Com o aumento da longevidade da população e a tendência de terem filhos mais tarde, está se tornando cada vez mais comum o fato de as mulheres terem de lidar com o cuidado de pessoas de duas gerações: seus pais e filhos. Não há estatísticas precisas sobre o fenômeno no Brasil, mas dados da Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílio Contínua (Pnad Contínua) de 2019 apontam que 54,1 milhões de brasileiros com 14 anos ou mais cuidavam de outros moradores da casa ou de parentes.
O fato é que, por não ser remunerado, o trabalho exercido na economia do cuidado não é valorizado pela sociedade, mas tem impacto significativo na rotina diária das mulheres. O estudo da FGV Ibre estima que a economia doméstica e do cuidado acrescentaria 13% ao PIB se fosse remunerado. Isso sem falar no impacto dessa sobrecarga na saúde mental das mulheres. Para conciliar todas essas demandas, há maior dificuldade de priorizar o descanso e o autocuidado físico e mental, essencial para garantir um maior equilíbrio da saúde mental.
Independente da questão de gênero, se os transtornos de saúde mental estão com índices tão gritantes e o impacto (e custo) nas empresas está cada vez mais insustentável, por que o cuidado das pessoas nesse tema avança tão pouco nas organizações?
Ao longo dos últimos 5 anos, tive a oportunidade de conversar com líderes de mais de 3 mil empresas, para entender os maiores desafios relacionados à gestão de saúde mental nos ambientes corporativos. O primeiro deles é tangibilizar, em números, o impacto da saúde mental nos negócios. Levantar os dados para embasar a decisão estratégica de um programa de cuidado de saúde mental é um passo importante dessa jornada.
Nos trabalhos que desenvolvemos nas empresas, avaliamos diversos indicadores: absenteísmo, aumento do FAP (pagamento de maiores contribuições previdenciárias), licença médica por CID-F, aumento do turnover voluntário, sinistralidade descontrolada e alto índice de reajuste nos planos de saúde, presenteísmo e desengajamento (que impactam o atingimento de metas) são alguns deles. E esse número não é baixo: nas empresas investigadas por nós, temos identificado cerca de 30% a 40% de populações impactadas pelo presenteísmo. Isso significa jogar no lixo de 30 a 40% da folha de pagamento todos os meses.
Segundo desafio: desinformação e estigma sobre o tema. As instituições mais reativas alegam que estes desequilíbrios estão relacionados exclusivamente a questões da vida pessoal dos colaboradores. Só que não adianta tapar o sol com a peneira, é preciso um olhar mais cuidadoso sobre como o ambiente organizacional afeta o bem-estar das pessoas. E o cenário não está muito favorável.
Não por acaso, a OMS reconheceu a síndrome de Burnout como um fenômeno ocupacional em janeiro de 2022, ou seja, um quadro relacionado exclusivamente a estressores do trabalho. De acordo com dados da Associação Nacional de Medicina do Trabalho (Anamt), aproximadamente 30% dos trabalhadores brasileiros sofrem com a síndrome de Burnout, tornando o Brasil o segundo país com mais casos diagnosticados no mundo.
Não há mais tempo e o tema é urgente! Em primeiro lugar, as empresas devem garantir a segurança psicológica do ambiente de trabalho e entender quais processos estão levando parte de seus colaboradores ao adoecimento. Assumir essa responsabilidade é o primeiro passo para iniciar um processo de mudança. Seja pela conscientização do tema e pelo letramento das equipes, seja pelo treinamento dos líderes, ou pela oferta de benefícios de apoio ao bem-estar, como a psicoterapia, o fato é que para mudar essa realidade é necessário um programa estratégico desenhado para atender as particularidades de cada cultura organizacional.
E as organizações que investem de forma estratégica em saúde mental colhem os resultados: aumento do bem-estar das pessoas, redução dos indicadores de absenteísmo e das licenças médicas por CID-F (entre outros indicadores), e maior engajamento das equipes, que leva a um aumento da produtividade. Evitar a fuga de talentos e desenvolver uma cultura corporativa com segurança psicológica é a única maneira de manter a produtividade sustentável.